No excelente prefácio a «Modos de fazer mundos» do filósofo construtivista norte-americano Nelson Goodman, Carmo d´Orey, catedrático da Universidade de Lisboa, escreve:
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Simon Blackburn, filósofo inglês de renome, quis entronizar-se na história da ética como autor de uma teoria sonante que baptizou de "quase realismo". A posição não é original: afinal o quase realismo de Deus, da alma e da liberdade já foi arquitectado por Kant na sua "Crítica da Razão Prática". Empurrado para a parede do cepticismo no que respeita aos númenos, entes incognoscíveis, em particular Deus e a alma imortal, que não podem demonstrar-se experiencialmente - podem até não existir - Kant salvou essas certezas da metafísica medieval cristã transformando-as em "postulados da razão prática", isto é semi certezas, holofotes que iluminam a acção humana e lhe dão sentido. Da causa final ("o supremo bem", "o dever") extraiu Kant a causa formal, a quididade ou a ecceidade de "Deus", da "imortalidade da alma", de "liberdade".
Blackburn escreveu sobre a sua teoria, pretensa "terceira via" entre o realismo e o irrealismo dos valores:
«quasi-realism Term coined by the English philosopher Simon Blackburn (1944- ) to identify a position holding that an expressivist or projectivist account of ethics can explain and make legitimate sense of the realist-sounding discourse within which we promote and debate moral views. This is in opposition to writers who think that if projectivism is correct then our ordinary ways of thinking in terms of a moral truth, or of knowledge, or the independence of ethical facts from our subjective sentiments, must all be in error reflecting a mistaken realist metaphysics. The quai-realist seeks to earn our right to talk in these terms on the slender, projective basis. The possibility of quasi-realism complicates the methodology of realist/antirealist debates in many areas.» (Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford University Press, 2005, pag 304).
Blackburn pretende que a sua teoria é um intermédio entre realismo e irrealismo dos valores (os valores não são reais em si mesmos, são apenas entidades fictícias que a mente humana concebe). Trata-se de uma espécie de agnosticismo. No entanto, há que não esquecer que o agnosticismo ou cepticismo não apaga, em matéria de metafísica religiosa, a dualidade de fundo: ou Deus e deuses existem (realismo teológico) ou não existem (irrealismo teológico). A "terceira via" da social-democracia entre capitalismo e socialismo não existe: Tony Blair, Sócrates, Zapatero estiveram ou estão do lado do capitalismo financeiro e industrial contra o socialismo, que implica a desaparição da alta e da média burguesia e da correspondente economia privada. Logo, a teoria de Blackburn ou é realismo ou irrealismo (não realismo). O quase realismo tem de inserir-se num destes dois campos exclusivistas.
A meu ver, a teoria de Simon Blackburn não é, senão, um projectivismo objectivista, que entra na categoria do realismo. Por projectivismo deve entender-se a teoria ética segundo a qual os valores éticos e estéticos são meras projecções da sensibilidade de cada um e de uma colectividade humana. Projectivismo sugere irrealismo, à primeira vista. Em minha opinião, não é exactamente assim. Há um projectivismo realista - há valores reais na subjectividade de cada um, valores que são intersubjectivos, comuns a grande parte ou a toda a humanidade, como, por exemplo, o valor da "solidariedade" e o valor concreto do "acarinhar e proteger os bebés"; os valores são reais dentro e exteriorizam-se nas acções, leis e instituições sociais, projectam-se - e um projectivismo irrealista - os valores não existem, são projecções subjectivas do imaginário, como, por exemplo, o valor do "amor a alguém" é irreal, exprime apenas uma tendência hormonal, um desejo contingente, ama-se e deixa-se de amar tal pessoa concreta.
Simon Blackburn é um erudito, mas não um filósofo de águas profundas e céus infinitos. O seu meritório "The Oxford Dictionary of Philosophy," periodicamente reeditado, é uma obra rica em definições e referências úteis, sem embargo de padecer relevantes deficiências. Uma destas é a sua definição unidimensional de objectivismo que ele só consegue formular no plano ético (não existe a entrada "objectivism" no seu dicionário, versão de 2005):
«ethical objectivism. The view that the claims of ethics are objectively true; they are not relative to a subject or a culture, nor purely in their nature, in opposition to error theories, scepticism and relativism. The central problem is finding the source of the required objectivity.» Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, Oxford University Press, 2005, pag 121).
Blackburn não parece capaz de conceber que o seu «quase realismo» é um objectivismo de valores intra anima. Aliás não distingue objectivismo extra anima de objectivismo intra anima - e esta é uma das pedras de toque que distingue os filósofos profundos dos superficiais. Como se explica que Blackburn, profundo conhecedor das lógicas formal e proposicional, não consiga arquitectar um edifício coerente e multidimensional de teorias no campo da gnosiologia (objectivismo, subjectivismo, intersubjectivismo, etc)? Explica-se pelo facto de as leis da lógica serem meras estruturas abstractas de ordenação destituídas do poder de determinar a verdade material de conceitos e juízos, destituídas de intuição noética, isto é, do pensar intuitivo e a-lógico (noein) e Blackburn não possuir este noein em grau muito elevado. Neste caso, Blackburn não distingue entre objectivismo interior (intra anima) e objectivismo exterior (extra anima) e nem um «inspector de circunstâncias», instrumento da lógica, o pode ajudar a discernir isso. O muito saber na lógica formal não evita a má filosofia, recheada de paralogismos, porque a filosofia é substancial, não é feita apenas de raciocínios mas de intuições inteligíveis, como uno, ser, eterno, e de conceitos empíricos, como ditadura, democracia, utilidade, individualidade, cor, substância concreta, gerar-se, corromper-se. De qualquer modo, Blackburn parece-me intelectualmente superior a Peter Singer, um académico de mediana qualidade que goza de um prestígio exagerado e imerecido a nível internacional. Singer aliás ofuscou, pela marginalização (censura discreta), as teorias dos que o fariam revelar-se um filósofo de terceira classe: no seu volumoso " A companion to Ethics" (Compêndio de Ética, 1991, 1995) Singer evitou desenvolver, por pouco que fosse, a doutrina ética de Max Scheller que reduziria a proporções teóricas diminutas o teor das éticas de Singer, James Rachels, Jonathan Dancy e outros.
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