Sir Karl Popper, um filósofo de terceira categoria, que beneficiou da boleia que o avião das ciências e dos media lhe concedeu no século XX, é confuso na hierarquização e caracterização das teorias filosóficas :
«Temos agora perante nós uma lista de cinco teorias filosóficas. »
«Primeiro, determinismo: o futuro está contido no presente, na medida em que está inteiramente determinado por ele.
Segundo, idealismo: o mundo é o meu sonho.
Terceiro, irracionalismo: nós temos experiências irracionais ou supra-racionais em que nos experenciamos a nós mesmos como coisas-em-si; obtemos, dessa forma, algum tipo de conhecimento das coisas-em-si.
Quarto, voluntarismo: nas nossas próprias volições, conhecemo-nos a nós mesmos como vontades. A coisa-em-si é a vontade.
Quinto, niilismo: no nosso tédio, conhecemo-nos a nós mesmos como nadas. A coisa-em-si é o Não-Ser.»
»E é quanto basta para a nossa lista. Escolhi os meus exemplos de um modo que me permite dizer relativamente a cada uma destas cinco teorias, e após cuidadosa ponderação, que estou convencido da sua falsidade. Ou, para pôr a questão em termos mais precisos: eu sou, primeiro que tudo, um indeterminista, em segundo lugar um realista, em terceiro um racionalista.» (Karl Popper, Conjecturas e Refutações, Almedina, Pág. 266).
Várias confusões de Popper que afloram neste texto.
Uma é a confusão entre fatalismo (o destino está inexoravelmente escrito nas linhas gerais e particulares) e determinismo ou semi fatalismo (nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos mas nem tudo está predeterminado, há livre arbítrio humano e algum acaso).
A definição de irracionalismo é coxa: há irracionalismo ontológico - o ser entendido como natureza biofísica não é governado por uma razão universal mas por factores de desordem - que difere de irracionalismo gnosiológico cuja definição Popper esboça, equivocamente..
A definição de niilismo é unilateral: há niilismo ético, niilismo científico, niilismo ontológico. O niilismo científico, segundo o qual a ciência é nada - e a doutrina conjecturalista de Popper parece ser uma forma disso - não implica que nos conheçamos a nós próprios como nadas, nem que a coisa em si, a realidade incognoscível, seja nada.
A definição de voluntarismo é também vaga: há um idealismo voluntarista e um idealismo imaginacionista, mas Popper não se dá conta disto e hierarquiza idealismo e voluntarismo como extrínsecos entre si, como espécies de um mesmo género.
Popper é, deveras, fraco na sistematização das ideias e o facto de centenas de milhar de professores de filosofia e filósofos o incensarem no mundo inteiro prova a indigência da filosofia exotérica e mediática, .difundida, paga e editada para a massa popular. Dá vontade de rir o espectáculo mundial de as universidades estarem ocupadas, na área da filosofia, por uma esmagadora maioria de catedráticos e agregados acríticos, meros reprodutores de filósofos que alcançaram a fama.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
No seu artigo Epistemologia: Cepticismo, Relativismo e a Defesa da Razão (Plano de Curso), Eduardo Chaves, professor universitário no Brasil, afirma:
«A filosofia é, por muitos, considerada a mais perfeita expressão da racionalidade humana.»
«No entanto, a razão é freqüentemente utilizada para combater a razão. Dentro da filosofia existe uma corrente irracionalista tão forte que, atravessando os milênios, encontra no século XX um terreno fértil para a sua propagação. É a razão que perdeu o rumo, e que tenta agora demonstrar sua própria fragilidade.»
«As principais armas do irracionalismo são o ceticismo e o relativismo.»
«O ceticismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento não existem. Só existem pontos de vista, opiniões, crenças, coisas desse tipo. Mas nada disso é verdade, nada disso merece o título de conhecimento. Os pontos de vista que adotamos (se é que adotamos algum) são tão inválidos quanto quaisquer outros.»
«O relativismo é, fundamentalmente, a tese de que a verdade e o conhecimento existem, mas cada época, cada cultura, ou mesmo cada indivíduo, tem a sua verdade e o seu conhecimento. O relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade, dependendo do contexto. Quaisquer outros pontos de vista são tão válidos quanto os que adotamos.»
«Note-se que tanto o ceticismo como o relativismo apelam para sentimentos nobres.» (Eduardo Chaves, in www.chaves.com.br ; o negrito é nosso).
Classificar o cepticismo e o relativismo como correntes anti racionalistas é um erro profundo.
Afinal o que entende Eduardo Chaves por racionalismo? A nosso ver, racionalismo é toda e qualquer corrente que coloca a razão como fonte principal ou exclusiva do conhecimento humano, desvalorizando ou mesmo anulando as sensações e percepções empíricas. Só que há muitas modalidades de racionalismo: o cepticismo é uma delas, o relativismo, que em em muitos casos é um dogmatismo mutabilista, é outra.
Se um céptico afirma: «Duvido de esta árvore e este campo diante de mim serem reais e de os outros existirem», está a pensar racionalmente, a assumir uma forma de racionalismo. Se um dogmático afirma: «Esta árvore e este campo existem, seguramente, embora os meus olhos e narinas mos possam reproduzir de maneira deformada» assume outra forma de racionalismo.
Eduardo Chaves não se dá conta, sequer, que a palavra relativismo comporta duas definições diferentes e uma delas não se compatibiliza com sua definição de que «o relativismo, no fundo, afirma que tudo pode ser verdade»...
O que vale a Universidade, especialmente em matéria de Filosofia? Que competência possuem os «filósofos» que nelas ocupam cátedras? Tirar um doutoramento em filosofia não prova que se pense com profundidade, como é o caso acima. Para ser filósofo, não é necessário tirar curso de filosofia nas instituições oficiais ou privadas: é necessário, sim, meditar, pensar com profundidade e originalidade, possuir um olhar crítico agudo e, quase obrigatoriamente, conhecer em detalhe algumas dezenas ou centenas de obras de filósofos consagrados e o respectivo vocabulário.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Alguns procuram cientificizar a ética (doutrina do bem e do mal em ordem ao comportamento humano) compartimentando-a, separando-a das religiões no seio das quais nasceu e se desenvolveu. É óbvio que há uma ética laicista que saiu do óvulo das religiões tradicionais mas outra ética antiga permaneceu dentro destas. Atentemos na visão e nas definições que nos propõe Desidério Murcho no seu artigo «O que é a Filosofia»:
«Comecemos pela ética. A ética não estuda os preconceitos comportamentais -- preconceitos como a ideia católica de que os homossexuais não podem casar e que ninguém deve ter relações sexuais antes do casamento. A ética nada tem a ver com este tipo de coisas. Este tipo de coisas emana de um certo código religioso de comportamentos, que pouco se relaciona na verdade com a ética -- é apenas uma manifestação de uma certa visão religiosa do mundo. Faz-se por vezes uma distinção entre "moral" e "ética" querendo reservar para esta última a acepção filosófica, ao passo que a primeira se referiria aos costumes sociais. Mas esta distinção é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo.
«A ética ocupa-se de vários tipos de problemas bastante distintos. Os mais fáceis de compreender são os da ética aplicada, que se ocupa de problemas como o aborto e a eutanásia. Será o aborto um mal que deve ser proibido? Repare-se que não se trata de saber se o aborto é um mal aos olhos de Deus ou do Papa ou de qualquer confissão religiosa; trata-se de saber se o aborto é, eticamente, e à luz da nossa razão, algo que deve ser proibido, tal como o assassínio é proibido independentemente das religiões. O que ocupa a reflexão filosófica não é apenas a tentativa de dizer "Sim, o aborto é um mal" ou "Não, o aborto não é um mal". O que distingue a reflexão filosófica é a fundamentação racional: os argumentos que sustentam as nossas posições. O que importa são os argumentos que se apresentam para dizer que sim ao aborto ou para dizer que não. O trabalho da filosofia consiste em estudar esses argumentos e avaliá-los criticamente. A filosofia é algo que cada um faz com a sua própria cabeça, em diálogo crítico com os outros. A filosofia não consiste em ler textos e "comentar" o que esses textos dizem. A filosofia consiste em pensar nos mesmos problemas que são tratados nesses textos, o que é muito, muito diferente. »
«Mas a ética ocupa-se de outras questões menos óbvias. Por exemplo, o que quer dizer "Matar inocentes é um mal" ou "Não devemos matar inocentes"? O que quer realmente dizer a palavra "dever"? Este tipo de problema é enfrentado pelo que se chama "metaética". A metaética ocupa-se da questão de saber qual é a natureza do juízo ético. É a área mais geral e conceptual da ética. Há várias teorias que tentam responder a este problema, algumas delas tecnicamente bastante complexas e precisas. » (Desidério Murcho, «O que é a filosofia», in www.pensologosou (o negrito é posto por mim).
Desidério Murcho usa a falácia da popularidade ou da mediatização ao escrever que a distinção entre ética e moral «é artificiosa e caiu em desuso desde há muito tempo». Na verdade, ética deriva de ethos que em grego significa carácter e moral deriva de mores que em latim significa costumes. Carácter e costumes não são exactamente o mesmo, ainda que se relacionem de perto. O carácter é capaz de rasgos individuais que quebram os costumes, que não fazem parte destes. É pertinente distinguir ética de moral, ainda que eu não me oponha aos que as identificam como sendo o mesmo.
Ao contrário do que sustenta Desidério Murcho, os preconceitos católicos contra o casamento homossexual e contra as relações sexuais antes do casamento são atitudes que transportam valores éticos, encontram-se no cerne da ética e esta estuda-os. Há ética religiosa e ética não-religiosa.
Desidério procura desligar, sem sucesso, a ética das religiões - tarefa impossível para um pensador imparcial, objectivo. Chega a ter graça: o Desidério que se levanta indignado contra a «morte da filosofia» decretada por alguns no século XIX com a invasão do positivismo na sua faceta extrema de cientismo, tenta construir um espaço de ética «científica» que, sofisticamente, nega às religiões a componente ética essencial destas. Reintroduz, pela porta do cavalo, no palácio da ética, o cientismo que, aos gritos, «expulsou» pela porta da frente em nome da «liberdade filosófica».
Dito de outra maneira: nega-se às religiões domínios sobre a ética, para que esta seja propriedade de Desidério e dos seus amigos, Sumos Sacerdotes da Religião (encapotada) da Ética Aplicada e da Metaética...
Não existe ética científica: toda a ética é subjectiva ou intersubjectiva. A ética do proletário não coincide por completo com a do capitalista, a ética do ladrão não coincide com a do polícia, a ética do heterossexual não coincide com a do gay...
O facto de Desidério ser, por hipótese, a favor do aborto livre «à luz da sua razão» não torna a sua posição eticamente mais científica do que a do papa que condena o aborto livre à luz da «revelação divina». Havia gnósticos no século II DC que sustentavam posição favorável ao aborto, em nome da divindade.
A suposta «ética racional científica» que Desidério Murcho e os seus amigos sustentam não existe: é uma apenas, entre várias leituras possíveis do bem e do mal no comportamento humano (perspectivismo), leituras essas que são, todas elas, um misto de irracionalismo e racionalismo.
Na base de todas as racionalidades, éticas ou de outra natureza, há um elemento irracional, impenetrável, opaco.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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