Segunda-feira, 6 de Outubro de 2014
Incoerências de Aristóteles sobre a verdade e o lugar da verdade

Sobre o que é a verdade, Aristóteles escreveu:

«A falsidade e a verdade não se dão, pois, nas coisas (como se o bom fosse verdadeiro, e o mau imediatamente falso) mas sim no pensamento e, tratando-se das coisas simples e do quê-é (tó tí), nem sequer no pensamento.» (...) «E posto que a combinação e a divisão têm lugar no pensamento e não nas coisas, e o que é neste sentido é distinto das coisas que são em sentido primordial (pois o pensamento junta ou separa seja o quê-é de uma coisa, seja a qualidade, seja a quantidade, seja alguma outra determinação sua) o que é no sentido de "é acidentalmente" e "é verdadeiro" há-de deixar-se de lado.»

(Aristóteles, Metafísica, Livro VI, Capítulo VI, 1027 b, 25-30; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Que significa esta tese aristotélica? Que os objectos físicos, em si mesmos, não são verdadeiros nem falsos. Uma planície de sobreiros no Alentejo não é verdadeira nem falsa mas o juízo «Esta planície do Alentejo está recheada de sobreiros» é verdadeira. Isto é, obviamente, errado porque reduz a noção de verdade ao juízo, excluindo dela a intuição sensível (exemplo: planície enquanto a vejo) e a intuição inteligível (exemplo: átomo, mundo de espíritos invisíveis e imperceptíveis).

 

É absurdo dizer que o conceito «Deus» não é verdade nem mentira e que o juízo «Deus existe» é verdadeiro ou falso porque a própria intuição intelectual «Deus» é verdadeira já no plano da imaginação. Dizer que o conceito não é verdadeiro nem falso mas que o juízo, que integra esse e outros conceitos, é verdadeiro ou falso abre a porta à incongruência do pensamento. As coisas ou são verdadeiras ou falsas, não há terceira via: a falsidade é a não verdade, contrapõe-se à verdade como o não-ser ao ser. Não há uma zona neutra entre verdade e erro, como supunham Aristóteles e, no século XX, Bertrand Russel e os adeptos da filosofia analítica anglo-saxónica. A neutralidade expressa no cepticismo ("Não sei se é verdadeiro ou falso que X...") é um modo gnosiológico não um modo ontológico ("As coisas X e Y ou são reais ou irreais..").

 

Aristóteles afasta-se do realismo modal - ou pelo menos reduz o âmbito deste - ao considerar que a combinação e a divisão não existem nas coisas mas apenas no pensamento. Ora, no pôr do sol, há uma combinação de cores - azuis, rosas, laranjas, vermelhos - que se vai alterando a cada momento, uma combinação objectiva, real em si mesma, que está para lá do nosso pensamento.

 

Quando acima refere as "coisas simples" e as "coisas que são em sentido primordial" Aristóteles refere-se, certamente, às formas eternas que Platão designa por Ideias, os arquétipos. Elas existem, pois, fora do pensamento e da realidade física. Como platónico «envergonhado», Aristóteles admite que o quê-é  (exemplo: a forma conceptual de cavalo, de triângulo, de número quatro, etc.) existe mas não nas coisas físicas nem no pensamento - o que equivale a dizer que existe em um mundo objectivo suprafísico ou infrafísico, metafísico, antes de haver coisas físicas. Isto é platonismo, com a diferença de que Aristóteles aboliu o lugar do mundo inteligível acima do céu visível e transferiu-o «para baixo», para lugar nenhum.

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 11:51
link do post | comentar | favorito

Quarta-feira, 11 de Janeiro de 2012
Luís Rodrigues e Luís Gottschalk não compreendem o idealismo de Kant (Crítica de Manuais Escolares- XL)

 

No seu manual para o ensino secundário, adotado em dezenas ou mesmo centenas de escolas em Portugal, Luís Rodrigues demonstra, à semelhança de Karl Popper, de Bertrand Russell e dos professores universitários portugueses e estrangeiros em geral, uma incompreensão fundamental da ontognosiologia de Kant. Escreve Rodrigues:

 

«Assim todo o conhecimento começa com a intuição sensível, ou seja, com a recepção de dados ou impressões sensíveis mediante duas formas com as quais a sensibilidade está equipada: o espaço e o tempo. Intuir é, portanto, receber dados empíricos, espacializando-os e temporalizando-os.»

 

«Exemplificando:

 

«Um automóvel passa frente à minha casa ao meio-dia, fazendo muito barulho e buzinando constantemente. O automóvel provoca em mim uma determinada impressão sensível. Eu recebo esta impressão sensível de uma determinada forma, isto é, espacializo-a e temporalizo-a porque me refiro ao barulho do automóvel como verificando-se em frente à minha casa (espacialização) e a uma determinada hora (temporalização). Assim, vê-se que a intuição sensível consiste em estabelecer uma relação espácio-temporal entre as impressões sensíveis (sensações) provenientes das coisas (por exemplo, do automóvel).» (Luís Rodrigues, Filosofia 11º ano, Plátano Editora, página 198, consultor, Luís Gottschalk; a letra a negrito é um sublinhado meu).

 

O erro de Luís Rodrigues é não perceber que o automóvel não é uma coisa exterior ao espírito humano mas uma construção dentro deste, um fenómeno cuja consistência é ideal-sensorial, ou seja, é um conjunto de intuições empíricas geradas no espaço que constitui a «mente exterior do sujeito». Rodrigues e Gottschalk interpretam Kant como se este fosse um realista ontológico - no caso: como se o automóvel existisse fora do espírito do sujeito e circulasse por uma rua exterior ao espírito humano- quando Kant é um idealista ontológico ou idealista transcendental, isto é, alguém que diz que os objetos materiais são conjuntos de sensações ou ideias forjadas na parte da minha mente que extravasa o meu corpo físico e engloba o universo inteiro.

 

Que diz Kant sobre a matéria que compreende, no caso que estamos a considerar, a chapa, o volante, o motor, os estofos, os pneus do automóvel? Que a matéria é uma simples representação, um conjunto de imagens e conceitos no nosso espírito:

 

«Com efeito, a matéria cuja unidade com a alma levanta tão grandes dificuldades não é outra coisa que uma simples forma ou um simples modo de representação de um objeto desconhecido, formado por aquela intuição que designamos por sentido externo. Deve, portanto, haver algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria.» (Immanuel Kant, Crítica da razão pura, páginas 361-362, nota de rodapé, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra a negrito é colocada por mim).

 

A matéria não é um «em si». Não é algo que exista independente de nós. O fenómeno (automóvel, casa, gato, etc) não está fora de nós, do nosso eu-espírito-cosmos: está somente fora do nosso corpo físico. Mas Rodrigues e Gottschalk apresentam-nos o automóvel, que é matéria, como coisa em si, independente de nós. É ainda um erro falar nas «impressões sensíveis (sensações) provenientes das coisas (por exemplo: o automóvel) », coisas estas que estariam fora de nós. Os objetos fora de nós (númenos) não nos enviam sensações: estas são produzidas na nossa sensibilidade, dentro de nós, sob o influxo de uma desconhecida excitação exterior emanada dos númenos, o que é diferente.

 

Este equívoco de supor que segundo a gnosiologia de Kant, há um objeto material fora de nós é geral no meio dos professores universitários e leva-me a interrogar: há verdadeiros filósofos nas cátedras universitárias de hoje ou apenas reprodutores, algo inábeis porque deformantes, da tradição filosófica?  

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:14
link do post | comentar | favorito

Quarta-feira, 2 de Fevereiro de 2011
Incoerências de "Filosofia em directo" de Desidério Murcho

O mediático tradutor e autor de manuais escolares de filosofia, o luso-brasileiro Desidério Murcho, no seu recente livro "Filosofia em directo", posto à venda em conjunto com a edição do jornal «Público» de 27 de Janeiro de 2011, explana em 96 páginas o que entende ser a natureza e os problemas da filosofia. O livrinho divide-se em nove capítulos: 1. Democracia; 2. Liberdade; 3. Autonomia; 4. Valor; 5. Sentido; 6.Realidade; 7. Contingência; 8. Raciocínio; 9. Verdade.

 

O livro é pouco esclarecedor sobre o que é a filosofia. Ausência de um quadro geral de referência à ontognoseologia e suas correntes fundamentais: realismo, idealismo, fenomenologia. Desidério evita a rocha de contornos bem marcados destas definições.. Não é o seu forte. Ausência de referência aos grandes contributos trazidos pelo rio da tradição filosófica: a matematização do mundo na filosofia pitagórica e galilaica; a formalização arquetípica do mundo nas filosofias de Platão, Aristóteles e da escolástica; a racionalização do mundo, em versão idealista de Kant, e em versão realista de Hegel e Marx; a sensorialização e insubstancialização do mundo por Hume, Mach, Avenarius, Russell, etc. Nada disto nos é referido. Sempre a velha preocupação de Desidério Murcho que faz lembrar os historiadores revisionistas que eliminam factos históricos: apagar a tradição filosófica, a filosofia que jorrou até nós pelas escadarias dos séculos, desde a Antiguidade.

 

PROCLAMAR O CEPTICISMO E APLICAR O MAIS ESTREITO DOGMATISMO

 

 Analisemos, com exemplos,  o tipo de argumentação desenvolvida por DM neste livro:

 

«Evolução

 

«Quem tiver a ideia de que a evolução biológica seria o fundamento do valor, comete igualmente dois erros. Primeiro, considera erradamente que o facto de termos certas preferências, explicáveis em termos de selecção natural, é razão suficiente para as aceitar. Isto é uma incompreensão dupla. Por um lado, as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas - a evolução não decide por nós, qual Deus benevolente. Por outro, a origem biológica de uma preferência não lhe dá uma prerrogativa especial - a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.»

«Em segundo lugar, quem põe a teoria da evolução no lugar ocupado pelo Deus judaico-cristão, comete o erro biológico de crer que a evolução tem uma direcção ou propósito; nós teríamos então o dever de obedecer a este propósito da evolução, como se fosse um Deus. Mas a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção. E, mesmo que o tivesse, daí não se concluiria que teríamos o dever de lhe obedecer. » (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 48, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Em primeiro lugar, Desidério não distingue, com clareza, valor, de preferência. O valor é um farol e a preferência um caminhar para esse farol.

 

Em segundo lugar, o facto de que «as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas» não invalida que possa haver um pólo dominante na génese dos valores- e que esse polo seja a constituição biológica- e pólos dominados - a sociedade, a consciência moral e religiosa, etc. Também a teoria psicanalítica de Freud considera uma fonte genética dos valores, o id ou infra-ego, com o princípio do prazer, sem embargo dos conflitos que o super-ego, portador dos valores sociais, vindos de fora do indivíduo, causa ao reprimir o id.  Em suma, a desarmonia entre as preferências de valores não impede que a génese destes possa estar no instinto biológico. O argumento de que «a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.» é confuso, falacioso porque não se cinge ao conflito de preferências no seio do mesmo indivíduo mas recorre a uma vontade externa, a de outro.

 

Em terceiro lugar, Desidério Murcho, calçando as botas ferradas de um dogmatismo pouco filosófico, define a sua posição eliminando as outras, sem argumentar com fundamento. Ele opõe-se ao vitalismo ou ao biologismo teleológico, com uma petição de princípio: «a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção porque é um substituto para a ideia de Deus.»

Falta demonstrar esta afirmação metafísica. A virtude filosófica de Desidério, se a possuir, e não fôr um sectário de uma corrente parcelar,  deveria ter a humildade de apresentar as duas teses que se opõem nesta matéria delicada e brumosa.

 

Poderia ter a liberalidade de citar, por exemplo, Bergson, que defende finalidade na evolução biológica:

 

«Em resumo, se nos exprimíssemos em termos de finalidade, diríamos que a consciência, depois de ter sido obrigada, para se libertar a si própria, a cindir a organização em duas partes complementares, vegetais e animais, procurou uma saída na dupla direcção do instinto e da inteligência. Não a encontrou com o instinto, e não a obteve, do lado da inteligência, senão através de um salto brusco do animal ao homem. De forma que, em última análise, o homem constituiria a razão de ser de toda a organização da vida no nosso planeta.» (Henri Bergson, A evolução criadora, pag 169, Edições 70).

 

Mas o mesmo tradutor que afirma que não há qualquer finalidade na evolução biológica contradiz-se ao escrever:

 

«Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos - cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes - tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 88, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Há uma evidente inconsistência entre esta posição céptica e a posição dogmática acima expressa na tese de que «não há qualquer finalidade ou direcção na evolução biológica e esta não é a fonte dos valores». Se afirma que nunca podemos ter a certeza de nada, como pode garantir que estão errados os que sustentam que a vida orgânica é dotada de sentido e finalidades? É nesta caldeira de incoerência que ferve o pensamento de Murcho.

UMA PSEUDO-REFUTAÇÃO DO IDEALISMO 

 

Visando refutar o idealismo ontológico material e o cepticismo de que deriva, escreve DM:

 

«Declarar que todas as nossas convicções são ilusórias, precisamente porque não podemos excluir a hipótese do sonho, é fazer duas confusões.»

«Primeiro, não pode ser verdadeiro que todas as nossas convicções são ilusórias, porque nesse caso também a convicção de que todas as convicções são ilusórias seria ilusória; e se esta convicção for ilusória, então as outras convicções não serão ilusórias.Por outro lado, se insistimos que só esta convicção não é ilusória, teríamos de explicar o seu carácter de excepção. Se estamos convictos de que todas as nossas convicções são ilusórias, não é coerente estar convicto de que essa convicção em particular não é ilusória.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 70, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

O idealismo material e o cepticismo não afirmam que todas as certezas são ilusórias: a ilusão é o carácter de quase todas, excepto o dogma base de que a realidade material é ilusória (idealismo) ou duvidosa (cepticismo). Desidério Murcho classifica de incoerência esta dualidade que, no fundo, é a dualidade observador-observado, máquina fotográfica/ fotos da paisagem. Não há nenhuma incoerência na doutrina idealista, ao nível racional: não há que explicar o carácter dogmático de excepção da tese «tenho a certeza de que toda a matéria e os entes dela formados são ilusão». É um axioma. Corresponde à divisão sujeito-objecto, que continua a existir no idealismo: o objecto material é aparência, o eu psico-espiritual é a realidade. O eu cognoscente é real para os idealistas, os entes materiais são ilusões, percepções corpóreas tridimensionais. Logo, não é possível aplicar os mesmos critérios de certeza e ilusão a estes dois níveis ontológicos.

 

A essência íntima das coisas é inexplicável: a explicação é sempre uma articulação de entidades em si mesmas incognoscíveis, no todo ou em parte. A pretensão de DM explicar tudo é anti filosófica: é um desvio logicista. Há mais mundo para além da lógica e da retórica. O inexprimível, o inefável, o alógico, existem. Há um intuir originário que está para além do "explicar", intuir esse que compreende mas não discursa, não explica. Lao Tse dizia: «Aquele que fala não sabe/ Aquele que sabe não fala.» Desidério raciocina mecanicamente na base do «8 ou 80», sem meio termo. Exige que, se há convicções ilusórias, todas as convicções sejam ilusórias - é a falácia da composição. O pensamento de Desidério é excessivamente linear, de superfície. Falta-lhe profundidade.

 

 

A CONFUSÃO SOBRE O QUE É VERDADE E SOBRE O QUE É CONHECIMENTO

 

Os equívocos de Desidério estendem-se às noções de verdade e conhecimento:

 

«Em suma, a verdade não é o mesmo que verificação ou confirmação. E também não é uma adequação entre o pensamento e a realidade, se por adequação entendermos uma cópia. A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam correctamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correcção da representação, mas nada se conclui daí excepto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é de minha autoria).

 

A verificação é o acto de encontro com a verdade. Portanto não é exacto dizer que verdade não é o mesmo que verificação: enquanto acto de descoberta (aletheia) a verdade coincide com a verificação, que é o abrir da verdade; enquanto objecto em si, interno ou externo, a verdade é diferente da verificação, do mesmo modo que actualização (passagem da potência ao acto) difere de acto. 

  Ademais, não é apenas a realidade que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas: é também o aparelho interno cognoscente, isto é, os nossos orgãos dos sentidos e a nossa inteligência. Um cego não pode ver a relva verde que a realidade da paisagem diante de si lhe oferece.

 Sobre o conhecimento, escreve: 

 

«Quando confusamente se fala de conhecimento falso, o que está em causa é falar de algo que parece conhecimento, mas não é; e do mesmo modo que o dinheiro falso não é dinheiro, também o conhecimento falso não é conhecimento. Consequentemente, se a Terra não está imóvel, nunca se pôde saber que a Terra estava imóvel - apesar de muita gente ter tido a convicção de que sabia tal coisa.».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 81, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Ao contrário do que afirma DM, dinheiro falso é dinheiro... sem validade legal. Certamente, no século XII, a generalidade das pessoas não conhecia, intelectual ou científicamente, que a Terra estava imóvel - conhecia, sensorialmente, a imobilidade da Terra - mas conhecia a teoria de que a Terra é imóvel. Mas hoje ninguém conhece factualmente que a Terra se move - para conhecer é preciso vê-la a mover-se. Hoje conhece-se, intelectualmente - um conhecimento indirecto, susceptível de dúvida - que a Terra gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que gira em volta do Sol. E nada impede que esta teoria seja falsificada, desmentida no futuro. Desidério Murcho fala como se a verdade nesta matéria estivesse conquistada de uma vez por todas. Não está.

Há, de facto, um conhecimento de verdades e de falsidades. O conhecimento não é apenas uma relação entre o sujeito e o objecto exterior, factivo ou factual. Não é apenas um conhecimento de verdades. É também uma relação entre a mente percepcionante e a representação (imagem sensorial, ideia, juízo) que nela se forma.

 

O conhecimento tem duas vertentes: a objectiva, isto é, a do referente ou objecto a conhecer; a subjectiva, isto é, a do símbolo, representação do objecto. O conhecimento do átomo ou dos quarks e leptões - exceptuando os átomos maiores, visíveis a microscópio - é a relação da mente com uma imagem conceptual nela elaborada. Parece que Desidério não questiona a existência de leptões. Ele respeita, venera a ciência instituída. Mas e se os leptões não existirem? Ser-se-á forçado a dizer que não havia conhecimento dos leptões, foi tudo uma fantasia. De facto, não se conheciam os leptões mas um conceito símbolo de tais supostas entidades.

 

É ERRADO O RACIOCÍNIO QUE SE AFASTA DO ÓBVIO?

DM escreve ainda:

 

«Erramos ao raciocinar sobretudo quando nos afastamos do óbvio e do simples. Quem não sabe raciocinar proficientemente, não vê o que há de errado com o raciocínio "Há uma causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa" , mas facilmente vê o erro do raciocínio "Há uma mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe". (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 85, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

De facto, há vezes em que erramos no raciocínio ao afastarmo-nos do óbvio e do simples - por exemplo, é óbvio o raciocínio que diz´«Vacinar é infectar o sangue com vírus e toxinas, logo vacinar é mau para a saúde» . Mas há muitas outras vezes em que geramos um raciocínio profundo, ao afastar-nos daquilo que é óbvio ao senso comum. A teoria da relatividade de Einstein, contra o óbvio da teoria do espaço tridimensional feito de linhas rectas e planos, sustenta que o espaço é ondulatório, irregular, e encurva na proximidade de grandes massas.

ANDAMOS SÉCULOS A SUBSTITUIR O RACIOCÍNIO POR DEUS, PELA AUTORIDADE OU PELA OBSERVAÇÃO?

  

DM escreve ainda, como se tivesse descoberto o santo Graal da filosofia:

 

«O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controlos e ajudas permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 84, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Não faz sentido dizer que só o raciocínio está no centro da nossa estrutura epistémica. O centro do processo de conhecimento é triplo: raciocínio, intuição inteligível e intuição sensível. Que é o raciocínio sem a intuição inteligível? Um esqueleto descarnado. As intuições inteligíveis de números 3,7,8 e 18 é que permitem estruturar o seguinte raciocínio: « Se 3 adicionado de 7 perfaz 10, e dez adicionado de 8 dá 18, então 3 mais 7 mais 8 tem como resultado 18».

 

O raciocínio aristotélico «Há dois princípios, a forma e a matéria-prima, logo a combinação dos dois produz o composto, o ente individual» necessita previamente das intuições, inteligíveis ou sensíveis, de forma, matéria, composto, ente, indivíduo. O raciocínio sem as intuições ou conceitos que o musculam é vazio, é uma estrutura formal sem conteúdos. Há raciocínios metafísicos, antimetafísicos, etc, formalmente correctos que não conduzem necessáriamente à certeza. Porque esta só as intuições, sensíveis ou não, a fornecem. Ora o que DM faz é desprezar o papel fulcral da intuição inteligível (ideia, conceito) e  ignorar o carácter alógico desta.

 Quanto mais fala em raciocínio,menos DM raciocina!  Quanto mais brande a espada da lógica e do falibilismo, menos pensa!

 

 

A DISTINÇÃO SUBJECTIVO-OBJECTIVO NÃO EXISTE?  EXISTE, EM UM SENTIDO, NÃO EXISTE, EM OUTRO

 

DM sustenta ainda que subjectividade e objectividade não se distinguem, afirmando, com razão, que o que é subjectivo não é necessariamente errado ou incorrecto:

 

 «Tal como o consenso não implica a verdade, também a ausência de consenso não implica que o que está em causa é meramente subjectivo»(...)

 «A distinção entre objectividade e a subjectividade esconde geralmente uma confusão: pensar que da dificuldade de chegar a consenso se conclui que nenhuma convicção é genuinamente verdadeira, no mesmo sentido em que as verdades objectivas o são. ».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 93-94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

 Há uma certa nuvem de confusão nesta argumentação.Desidério Murcho não define com precisão o que entende por subjectivo, parece não se aperceber do desdobramento de sentidos deste termo. A distinção subjectivo e  objectivo não existe, de facto, quanto ao conteúdo substancial das nossas representações, isto é, objectivo e subjectivo não se distinguem epistemicamente - exemplo: eu posso estar perfeitamente certo, com toda a razão objectiva, ao defender, isolado, contra a «comunidade científica» que "a passagem de um planeta em 26º do signo de Sagitário causa, em regra, desaires para o PSD" - mas a distinção subjectivo-objectivo existe enquanto distinção numérica, por sim dizer, sociológica: o subjectivo é o pensamento singular, de um só indivíduo, o objectivo é o pensamento comum de muitos indivíduos.  

 

É POSSÍVEL PROVAR QUE DEUS NÃO É O FUNDAMENTO DO DEVER? ARBITRÁRIO OPÕE-SE A RAZOÁVEL?

 

DM desenvolve ainda o seguinte raciocínio sofístico contra a ideia de Deus como fundamento do dever: 

 

«Quem pensa que sem Deus, tudo seria permitido, considera que as nossas preferências não são suficientes para fundamentar o dever. Mas considera que as preferências de Deus o são. Interpretada literalmente, a ideia é implausível. Se a minha preferência, depois de passar pelo crivo do pensamento prudencial cuidadoso, não fundamenta o dever, a preferência de Deus ainda menos o poderia fazer. Se a minha preferência por beber água não me dá uma razão para beber água, a preferência de Deus não pode dar-me uma razão para a beber. Isto porque ou a preferência de Deus pela água é arbitrária, e nesse caso não me dá razão alguma para beber água precisamente por ser arbitrária, ou é razoável, e nesse caso é por ser razoável que me dá uma razão para beber água e não por ser uma preferência de Deus.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag. 44-45, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é colocado por mim).

 

Neste estilo "light", saltando de ramo em ramo na árvore da retórica do "bem falar", se desenvolve a vazia argumentação de Desidério Murcho. Por que razão Deus ou deuses não poderiam fundamentar o dever? Não é implausível haver deuses, embora seja indemonstrável, empiricamente falando. A natureza biocósmica não nos revela que haja Deus ou deuses mas não nos proibe de pensar que existam. Por que razão a preferência de Deus por eu beber água não pode ser razoável? Por que razão a razoabilidade não pode brotar do próprio Deus? Em Hegel, a ideia absoluta ou Deus é absolutamente racional, razoável, apesar de inicialmente arbitrária, encarna em natureza e nas leis biocósmicas desta. Pode Desidério refutar Hegel, de modo inquestionável e vencedor? Não pode. Na metafísica pura, ateus, teístas, panteístas e panenteístas terçam armas, isto é, argumentos, sem que se possa descortinar, objectivamente, quem tem razão.

 

Arbitrário opõe-se sempre a razoável? Não. É outra confusão de Desidério Murcho. Eu posso conduzir arbitráriamente um automóvel sem destino fixo, dormindo aqui ou acolá, mas isso é razoável pois não ultrapasso a velocidade de 90 quilómetros por hora e levo os documentos, o dinheiro e a roupa suficiente para realizar essa viagem de uma ou várias semanas. A máxima de cada indivíduo é arbitrária, segundo Kant: depende do livre arbítrio de cada um. Mas o facto de ser arbitrária - por exemplo, a máxima: «Divulga a toda a gente as virtudes medicinais das tisanas de tília, hipericão, erva de são roberto, malva e outras» é arbitrária, escolhi-a mas outros escolherão outras máximas - não impede que seja razoável. Razoável, isto é, racional, prudente e experimentado, opõe-se a irrazoável, não a arbitrário.

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:32
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Incoerências de Aristótel...

Luís Rodrigues e Luís Got...

Incoerências de "Filosofi...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds