Apesar do seu brilhantismo no raciocínio, Kant desceu ao magma de alguma confusão de ideias no que respeita à definição de fenómeno e de intuição. O filósofo alemão definiu assim fenómeno:
«O objecto indeterminado de uma intuição empírica chama-se fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).
É óbvio que Kant distingue entre fenómeno - por exemplo, cadeira - e intuição do fenómeno - ver ou tocar a cadeira, neste exemplo. Mas o que constitui o fenómeno? As intuições empíricas e, essencialmente, as intuições puras: a figura e a extensão. E alguns conceitos a priori. O fenómeno, como por exemplo, bicicleta, cão ou nuvem nada é em si mesmo: é apenas uma figura sem cor, nem som, nem cheiro, nem matéria, inscrita num espaço que é irreal, intuição a priori. Kant é um idealista ontológico: os objectos materiais não existem fora do espírito humano, são complexos de sensações e intuições tridimensionais. Não há, por exemplo, cavalo-númeno e cavalo-fenómeno, como pensa a generalidade dos estudiosos de Kant. O cavalo é apenas representação de algo incognoscível. Kant escreveu:
«Assim, quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensibilidade como seja a impenetrabilidade, dureza, cor, etc, algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuiçao pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade.»(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 61).
Ora este texto desmonta o objecto real dos sentidos ou fenómeno mostrando que não passa de um complexo de intuições formais (figura, espaço) e de conceitos A cor, a dureza, de uma bicicleta não pertencem à bicicleta: são sensações, intuições empíricas, modos ilusórios de percepcionar esse veículo que é fenómeno. O carácter unitário da biclicleta como aglomerado de peças metálicas é um conceito do entendimento, é a categoria de substância e acidente, não está na bicicleta. E o problema coloca-se: ao vermos uma bicicleta que está fora do nosso corpo físico mas dentro da nossa mente que o circunda e constitui o espaço, estamos a ter um conjunto de intuição empíricas e sensações (visão da cor, sensação da dureza do metal ou do selim, etc) de um fenómeno que se reduz a intuições empíricas geométricas (as linhas da bicicleta), a uma matéria indeterminada (algo que não tem cor, nem peso, nem cheiro, nem ductilidade) e a conceitos (substância única e divisível em partes).
Assim, a noção de intuição empirica funciona ambiguamente em Kant: é a matéria do fenómeno («Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação» diz Kant; mas uma matéria absolutamente abstracta, como a hylé de Aristóteles, pois a cor, o cheiro, o som, a sensação de dureza são meras sensações, aparência), o objectivamente «real para nós» e é a percepção da matéria desse fenómeno, percepção esta que já inclui cor, som, cheiro, grau de dureza, etc. Note-se ainda que, seguindo a teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes, Kant estabelece duas modalidades de intuição empírica enquanto percepção, distinguindo sensação (subjectiva, ilusória) de intuição (objectiva):
«O sabor agradável de um vinho não pertence às propriedades objectivas desse vinho, portanto de um objecto mesmo considerado como fenómeno, mas à natureza especial do sentido do sujeito que o saboreia. As cores não são propriedade dos corpos, à intuição dos quais se reportam, mas simplesmente modificações do sentido da vista que é afectada pela luz de uma certa maneira. O espaço pelo contrário, como condição de objectos exteriores, pertence necessariamente ao fenómeno ou à intuição do fenómeno». (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 69, nota de rodapé; o destaque a negrito é de minha autoria).
Neste caso, o sabor e a cor de um vinho seriam a intuição subjectiva e o vinho a intuição objectiva e o fenómeno. Mas o que é o vinho sem cor, nem sabor?
Em suma, a contradição de Kant reside no facto de expulsar do fenómeno para o campo das sensações (intuições do fenómeno) e para o campo dos conceitos aquilo que realmente o caracteriza: a cor, o sabor, a dureza, a matéria concreta de que é feito (no caso de árvore: madeira e folhagem), tornando o fenómeno uma figura fantasmagórica, um esqueleto sem carne, pura forma num dado tempo.
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O grupo III do Exame Nacional de Filosofia 714, de Julho de 2006 em Portugal, é tributário da defnição hiperanalítica, errónea, do conhecimento como «crença verdadeira justificada».
Vejamos o texto e as questões iniciais do grupo III desse Exame:
«Para sabermos alguma coisa, não basta adivinharmos, mesmo que acertemos, por maior que seja a confiança que depositemos no nosso palpite. Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? Não será ter provas? Isto é, para termos conhecimento, não será necessário estarmos ligados à verdade daquilo em que acreditamos por razões ou provas que temos para acreditar? E essas razões ou provas não terão de ser adequadas para justificarem a nossa crença?»
D.Kolak e R.Martin, Sabedoria sem Respostas: uma Breve Introdução à Filosofia, trad.port., Lisboa, Temas & Debates, 2004, p. 51 (adaptado)
1. Considere o texto.
1.1. Qual é a definição de conhecimento discutida no texto?
1.2. «Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? pergunta o autor.
Responda a esta pergunta, apoiando a resposta em um ou mais exemplos.»
Nos critérios de correcção da questão 1.2 deste Exame figura o seguinte:
-Para haver conhecimento, além de termos crenças verdadeiras, temos de ser capazes de justificá-las.
-Podemos ter crenças verdadeiras sobre algo, sem conseguirmos justificar tais crenças: por exemplo, quando jogamos às cartas, podemos acreditar que nos vai sair o ás de trunfo e isso acontecer de facto.
-Nesse caso temos uma crença verdadeira, mas não sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo. (Comentário nosso: A frase é um absurdo, pois se há uma crença verdadeira, que apreende o objecto (verdade), sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo...)
- Porém, podemos saber que nos vai sair o ás de trunfo por termos viciado as cartas nesse sentido: neste caso, a nossa crença além de verdadeira, é justificada.»
CONHECIMENTO NÃO IMPLICA, OBRIGATORIAMENTE, JUSTIFICAÇÃO, AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTAM OS AUTORES DA PROVA
Para haver conhecimento não tem que haver, necessariamente, justificação. O conhecimento é um fluxo de intuições sensoriais e intelectuais que se afirmam por si mesmas, isto é, possuem a dose de dogmatismo indispensável para nos colocar na posse de certezas. Por exemplo, a percepção do sol, da côr azul do céu, do sabor de um beijo não implica conhecer teoria nenhuma científica (heliocentrismo, astrofísica em geral, biologia humana, etc) mas tão somente sentir: não precisam de justificação.
O conhecimento é a certeza. É o contacto entre o sujeito humano e um objecto material, ideal ou de outra natureza, intrínseco ou extrínseco ao sujeito. Essa é a definição correcta. A justificação - conjunto de inferências para fundamentar, estruturar e consolidar o conhecimento obtido por intuição - vem, em regra, depois das intuições cognoscentes. Essa justificação não é condição do conhecimento: é um conhecimento suplementar que se adiciona ao conhecimento originário, intuitivo, destituído de justificação.
Se algum estudante escrevesse na prova de Exame de Filosofia o que aqui escrevo, seria penalizado, segundo os critérios de correcção...
E no entanto, senhores inquisidores da «filosofia analítica», gente da Arte de (Não) Pensar, a Terra da definição de conhecimento move-se! Não está imóvel frente ao sol da «crença verdadeira justificada» com que nos quereis queimar os neurónios pensantes, usando as insígnias dos vossos barretes cardinalícios de mestres ou doutorados! Há mais e melhores definições de conhecimento além da vossa...
Há conhecimento erróneo, ilusório e conhecimento verdadeiro, empírico, empírico-racional, racional ou supra-racional.
Os mentores ideológicos desta prova - isto é os autores do manual de Filosofia do 11º ano A arte de pensar, da Didáctica Editora, Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão - não atingiram, sequer, a margem do rio do conhecimento filosófico, que é uma corrente holística indivisível , perspectivada desde vários ângulos em redor: não percebem que escravizar alunos e professores à definição, dada em 1963 pelo filósofo norte-amercano de segunda categoria Edmund Gettier (n. 1927), de conhecimento como «crença verdadeira justificada» é uma ditadura antifilosófica de sectários, de gente incapaz de pensar com profundidade.
Ora os testes de Exame Nacional de Filosofia têm de ser muito bem concebidos, com grande amplitude de pensamento e sabedoria, o que, seguramente, não foi o caso.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
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