A noção de libertismo é confusa no «Dicionário Oxford de Filosofia» de Simon Blackburn e nos manuais e provas de exames de filosofia do ensino secundário. Simon Blackburn escreveu:
«Libertismo. Esta posição advoga que o compatibilismo (determinismo moderado) é apenas uma fuga e que há uma noção mais substantiva e real de liberdade que pode ainda ser preservada em relação ao determinismo (ou ao indeterminismo).»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, Gradiva, Lisboa, 2007, pág 256).
O libertismo tal como Blackburn o define - a total liberdade isenta de pressões do determinismo - só pode existir no nível dos anjos e dos demónios, puros espítritos que não sofrem os dilemas que a matéria, o mundo corporal impõem. Não existe libertismo distinto de determinismo biofísico com livre-arbítrio (determinismo moderado) excepto o indeterminismo biofísico com livre-arbítrio (exemplo: a lei da gravidade não funciona sempre, sou livre de me atirar de um prédio de 10 andares ao solo rezando previamente a Deus). Libertismo é a existência de livre-arbítrio humano, é um género, não uma espécie, é um predicado comum a determinismo moderado e a indeterminismo biofísico (moderado) com livre-arbítrio. Libertismo não é uma corrente mas uma propriedade de duas correntes.
Só a miopia dos filósofos analíticos actuais como Simon Blackburn, Proudfoot ou Lacey aceita a quádrupla divisão das correntes da ação humana em determinismo radical, determinismo moderado, libertismo e indeterminismo. Não há aqui uma arrumação dialética de ideias mas uma confusão: o libertismo é um indeterminismo na medida em que é livre-arbítrio, por isso é idiotice separá-lo do indeterminismo ainda que, na qualidade de livre-arbítrio, faça também parte do determinismo moderado. E o que é indeterminismo na visão de Blackburn e discípulos? Escreve Blackburn:
«Indeterminismo. Concepção segundo a qual alguns acontecimentos não têm causas, limitam-se a acontecer e nada há no estádio prévio do mundo que os explique. Segundo a mecânica quântica, os acontecimentos quânticos têm esta propriedade.»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, Gradiva, pág 226).
Sem rejeitarmos esta definição, vemos que ela está mal posicionada, incompleta. Falta desdobrá-la em duas correntes: o indeterminismo biofísico sem livre-arbítrio - exemplo: começa a nevar com abundância em um dia de verão com a temperatura a 35º C e as pessoas não têm livre arbítrio, escolhem por instinto - e o indeterminismo biofísico com livre-arbítrio,isto é, libertista - exemplo: começa a nevar com abundância em um dia de verão com a temperatura a 35º C e as pessoas decidem racionalmente o que fazer, usam o livre arbítrio.
Por aqui se vê a mediocridade filosófica que impera no ensino da filosofia. Blackburn é um erudito confuso. As universidades foram tomadas por pensadores de segunda e terceira categoria que se multiplicam como metástases.
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Paul Davies escreveu no seu excelente livro «Deus e a Nova Física»:
«Um agente livre é aquele que pode causar certos actos no mundo físico. Num universo indeterminista, ocorrem eventos que não têm causa. Mas poder-se-á ser responsável pelos actos a não ser que sejam "causados" por alguém? Os defensores do livre arbítrio afirmarão que que as actividades da pessoa são determinadas, por exemplo, pelo seu carácter, inclinações, personalidade.»
«Suponhamos que um homem pacífico comete, repentinamente, um acto violento. O indeterminista diria: «Foi um acontecimento espontâneo, sem causa antecedente. Não se pode culpar o homem.» O determinista, por seu lado, declararia o homem responsável, mas confortar-se-ia com o facto de ele poder vir a ser reabilitado pela educação, persuasão, psicoterapia, drogas, que provocariam um comportamento diferente no futuro. » (Paul Davies, Deus e a Nova Física, Círculo de Leitores, 1989, pág. 171; o destaque a negrito é colocado por nós).
Ora o que sucede é exactamente o oposto do que diz Paul Davies. O que é o livre-arbítrio? É a escolha livre, ponderada, racional de um acto ou de valores sobrepondo-se ao determinismo biofísico. O livre-arbítrio é uma parte do indeterminismo, da inexistência de necessidade, de relações constantes causa-efeito. Portanto dizer que «Os defensores do livre arbítrio afirmarão que as actividades da pessoa são determinadas, por exemplo, por exemplo, pelo seu carácter, inclinações, personalidade» constitui um erro: se são determinadas pelo carácter ou inclinações, o livre-arbítrio desaparece.
Por outro lado, dizer, a respeito de um crime hediondo praticado por um homem até então bem comportado que « o indeterminista diria: «Foi um acontecimento espontâneo, sem causa antecedente. Não se pode culpar o homem.» é errado, pelo menos no que toca a uma parte dos indeterministas. Se há indeterminismo, maior é a responsabilidade de cada um, não há desculpas, o livre-arbítrio deveria ter-se exercido sobre a base da vigilância.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O manual «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, da Porto Editora apresenta diversas incorrecções teóricas. É inferior, em qualidade teórica, ao manual «Novos Contextos» de José Ferreira Borges, Marta Paiva e Orlando Tavares, da mesma editora, ainda que ambos estejam bem concebidos no plano gráfico.
A INCAPACIDADE DE DEFINIR CLARAMENTE DETERMINISMO E DE CRITICAR, NO ESSENCIAL, O «DILEMA DO DETERMINISMO»
Escrevem António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus:
«Hoje, como o determinismo se revelou duvidoso, poucos filósofos se descreveriam como deterministas radicais. Ainda assim, muitos negam o livre-arbítrio porque pensam que a verdade do determinismo é irrelevante para a questão: quer o mundo seja determinista quer seja indeterminista, não somos agentes livres. O seu argumento, conhecido por dilema do determinismo, é o seguinte:
(1) - Ou o mundo é determinista ou é indeterminista.
(2) - Se o mundo é determinista, não temos livre-arbítrio.
(3) - Mas se o mundo é indeterminista, também não temos livre-arbítrio.
(4)- Logo, não temos livre-arbítrio.
É na premissa (3) que temos de nos concentrar. Por que razão havemos de crer que o indeterminismo, como nos diz esta premissa, é incompatível com a liberdade humana?
Vimos já como se pode argumentar que o determinismo exclui o livre-arbítrio. Se o determinismo é verdadeiro, as nossas acções não são livres porque resultam de factores que estão fora do nosso controlo: as leis da natureza e as circunstâncias anteriores à nossa existência.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 62, Porto Editora).
Os autores passam por cima da premissa (2) sem detectar que ela se baseia na falsa dicotomia «ou há determinismo ou há livre-arbítrio». O que é o determinismo? Não definem com clareza. Aceitam acriticamente o «argumento da consequência» de Peter van Ingwagen, que reproduzem na página 59 do manual:
«Se o determinismo é verdadeiro, então os nossos actos são consequência das leis da natureza e de acontecimentos situados no passado remoto. Mas o que aconteceu antes de termos nascido não depende de nós; tão-pouco as leis da natureza dependem de nós. Logo as consequências destas coisas (incluindo as nossas ações) também não dependem de nós.» ( Um ensaio sobre o livre-arbítrio, pag 16).
O erro de Peter van Inwagen, filósofo norte-americano, - e de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, que o seguem, de forma acrítica - é considerar livre-arbítrio e determinismo como contrários excludentes (princípio do terceiro excluído) quando, de facto, são contrários coexistentes num termo intermédio: o determinismo limita-se ao mundo biofísico mas não penetra na esfera humana psíquica onde reina o livre-arbítrio, a razão que faz frente aos impulsos da natureza e delibera. Ambos, o determinismo e o livre-arbítrio, coexistem no tecido do ser, o ser cósmico e o ser humano. Portanto, a premissa (2) do dilema do determinismo é uma falácia. Isto é ignorado pelos autores do manual. A filosofia analítica não conceptualiza a diferença entre contrários excludentes, incompatíveis, e contrários coexistentes, compatíveis.
O FALACIOSO SILOGISMO «MODUS TOLLENS» DO LIBERTISTA
Prossegue o manual:
«Vamos examinar agora as perspectivas que nos dizem que os agentes humanos têm uma vontade livre. Uma delas é o libertismo, que é também uma forma de incompatibilismo. Porém, em vez de afirmar o determinismo para negar o livre-arbítrio, que é a via escolhida pelo determinista radical, o libertista afirma o livre-arbítrio e nega o determinismo. Partindo do argumento da consequência, ele raciocina desta forma:
(1) Se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio.
(2) Temos livre-arbítrio.
(3) Logo, o determinismo não é verdadeiro.»
«O grande desafio que se coloca ao libertista é defender a premissa (2), o que implica descobrir uma forma de escapar ao dilema do determinismo.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» páginas 62-63, Porto Editora)
A grande crítica que cabe fazer é à premissa (1). O erro deste silogismo condicional falácia de modus tollens está aí (para ser um modus tollens correcto a segunda premissa seria Não temos livre-arbítrio). O determinismo é verdadeiro em que região do ser? Na natureza biofísica. E o livre-arbítrio, onde vigora? No mundo psíquico e racional humano. Portanto, não podem excluir-se mutuamente, no quadro global. Há lugar para ambos. Os autores do manual não colocam assim a questão com esta clareza e arrastam uma nuvem de confusão raciocinante. Escapar ao dilema do determinismo? Mas é um falso dilema. É esta a mediocridade da filosofia analítica: pseudo dilemas, isto é, falácias de dicotomia, pseudo paradoxos como o de Russel, etc.
O ACASO NÃO CONTRIBUI PARA TORNAR AS ACÇÕES LIVRES?
Escrevem ainda os autores, a propósito de acções livres:
«Como devemos, então, conceber as acções livres? Estas têm de ser acontecimentos indeterminados, segundo o libertista. Mas os acontecimentos indeterminados parecem ser apenas aqueles que ocorrem em parte por acaso. E o acaso, como vimos, nada contribui para tornar uma acção realmente livre.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 63, Porto Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
É uma visão errónea: a acção livre comporta sempre uma certa dose de acaso psicológico, espiritual, interno ao agente. De facto, na essência da liberdade está o acaso, o não predestinado, o não determinado por um encadeamento rígido de causas e efeitos. O livre-arbítrio é uma estrutura psíquica mista de acaso e necessidade. Se não houvesse acaso nas escolhas racionais, não haveria livre-arbítrio.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
No manual «Filosofia 10º ano», da Raíz Editora, para o ensino secundário em Portugal, manual cujos autores são Adília Maia Gaspar e António Manzarra - e o catedrárico Michel Renaud como consultor científico - encontram-se, mais uma vez, as confusões inerentes à filosofia analítica contemporânea.
CONFUSÃO DE DETERMINISMO COM FATALISMO E NÃO DISTINÇÃO ENTRE LIBERTARISMO E COMPATIBILISMO
Aponta o referido manual quatro concepções acerca do determinismo e do livre arbítrio:
«Determinismo- Nega a existência do livre-arbítrio. O ser humano, tal como todos os fenómenos da natureza, está determinado pelo princípio da causalidade.
Indeterminismo - Não assume a existência do livre-arbítrio, assim como os fenómenos físicos se dão aleatoriamente e não segundo uma determinação prévia ou uma vontade, o mesmo acontece com a acção humana.
Libertarismo - Afirma a existência do livre-arbítrio, pois havendo separação entre a natureza física e a mental, esta última não é determinada pelo princípio da causalidade, mas sim pela vontade.
Compatibilismo- Afirma a relação entre determinismo e livre-arbítrio ao admitir que o ser humano é determinado, mas a sua acção pode ser livre dentro dos limites em que não existem constrangimentos.» (Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Filosofia 10º ano, pág. 74, Raíz Editora)
Comecemos por notar a ambiguidade da noção de determinismo: na primeira definição é dito que o determinismo exclui o livre-arbítrio, e é, portanto, uma lei totalitária sobre toda a natureza biofísica, incluindo a vida humana física, psíquica, social, espiritual. Na definição de compatibilismo, dada acima, a noção de determinismo já não exclui o livre-arbítrio. Onde está o erro? Na confusão entre determinismo e fatalismo. Onde se lê determinismo na primeira das quatro definições acima, deveria ler-se fatalismo, doutrina da predestinação absoluta. E note-se que o fatalismo pode, ou não, reger-se por leis fixas e imutáveis. Determinismo não é tudo estar predestinado: é o facto de, nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzirem sempre os mesmos efeitos, o que não exclui factores aleatórios exteriores como o livre-arbítrio.
Thomas Nagel, esse académico injustamente elevado à condição de «grande filósofo» por editores e académicos néscios, perfilha o mesmo erro de confundir determinismo com fatalismo:
«Algumas (pessoas) pensam que, se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode ser razoavelmente elogiado ou condenado por nada, tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair.» (Thomas Nagel, Que quer dizer tudo isto?, pag 57 citado in Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Filosofia 10º ano, pág. 75, Raíz Editora).
O próprio John Searle cai em contradição:
«Naturalmente, tudo no mundo é determinado mas, apesar de tudo, algumas acções são livres. Dizer que são livres não é negar que sejam determinadas; é afirmar que não são constrangidas. Não somos forçados a fazê-las.» ( John Searle, Mente, cérebro e ciência, citado in Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Filosofia 10º ano, pág. 77, Raíz Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Dizer que uma acção é livre não é negar que seja determinada? Claro que é: livre opõe-se a determinado. Como é que a acção livre de eu escolher entre tomar um café ou comer um bolo é determinada e livre ao mesmo tempo? Se é determinada, não é livre. E o determinismo não é um constrangimento da acção? Claro que é. Eis o «grande»John Searle, paladino da confusão analítica, no seu melhor! Como não hão-de os autores de manuais veicular erros se os teóricos que os inspiram mergulham no magma da confusão?
As definições, acima, de libertarismo e compatibilismo não se distinguem uma da outra: em ambas, se postula haver livre-arbítrio; em ambas (na primeira, de forma não explícita) se postula haver determinismo. É, pois, uma duplicação da mesma ideia, formulada em termos diferentes, um erro de «paralaxe». Não distinguindo correctamente os géneros das espécies e as diferentes espécies entre si, por ausência de racionalidade dialéctica, a filosofia analítica (Thomas Nagel, Simon Blackburn, Nigel Warburton, os autores do «Routledge Dictionary of Philosophy» como Michael Proudfoot e A.R. Lacey, e muitos outros) produz deformações teóricas da realidade.
A CONFUSÃO DE OBJECTIVISMO AXIOLÓGICO COM REALISMO AXIOLÓGICO
O manual define três correntes sobre os valores: subjectivismo axiológico, objectivismo axiológico e concepção relacional dos valores, divisão que só na aparência está certa. Sobre o objectivismo axiológico, escreve o manual:
«O objectivismo axiológico representado na época contemporânea por filósofos como Max Scheler (1874-1928) e Nicolai Hartman (1882-1950) que lhe aportaram um contributo próprio e original, remonta a Platão (século IV- a.c) e à Teoria das Ideias por ele defendida.(...)«
«Como podemos depreender, de acordo com esta concepção, os valores são independentes das coisas valiosas; estas só são coisas valiosas na medida em que deles participam; por exemplo, um quadro só é belo se conseguir corporizar o ideal de beleza...»(Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Filosofia 10º ano, pág. 92, Raíz Editora).
Ora, esta definição não está certa, é redutora. O objectivismo não implica, necessariamente, que os valores sejam independentes das coisas valiosas. A teoria de Aristóteles é um exemplo de objectivismo imanentista dos valores, em que os valores residem apenas nas coisas valiosas: o belo só existe imanente às flores belas, às mulheres belas, às paisagens belas, à escrita e à pintura ou escultura belas e a um sem número de coisas ou actos reais; não existe o Belo como arquétipo num mundo inteligível de Ideias, como teorizava Platão.
Por outro lado, a axiologia de Max Scheler não é um realismo axiológico mas fenomenologia axiológica: os valores são objectivos mas não existem por si mesmos, sem humanidade e sem homens individuais que os definam e experienciem. Ora isto é a «concepção relacional dos valores» que Adília Gaspar, António Manzarra e Michel Renaud distinguem, erroneamente, de objectivismo dos valores. De facto, Scheler veiculava essas duas posições: objectivista e correlacional dos valores, posições que pertencem a géneros diferentes e, portanto, podem coexistir na mesma teoria. Mais uma vez a superioridade da dialéctica, contida na minha crítica, sobre a filosofia analítica, desengonçada e caótica.
OS UTILITARISTAS ACTUAIS SUBSTITUIRAM A FELICIDADE PELA PREFERÊNCIA?
O manual escreve:
«Na época contemporânea, utilitaristas como Richard Hare e Peter Singer substituiram o conceito de felicidade pelo de preferência. Singer pretende mesmo explicar o comportamento moral recorrendo à teoria da evolução.» ...»(Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Filosofia 10º ano, pág. 151, Raíz Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
Mesmo que esta frase, assumida por Adília Maia Gaspar, António Manzarra e Michel Renauld, se possa imputar a Richard Hare e Peter Singer ela revela apenas a confusão intelectual dos filósofos analíricos e dos autores deste manual: a felicidade não pode ser substituída pela preferência porque são espécies de géneros diferentes, felicidade é um conteúdo hedónico e preferência é uma forma, um meio de manipular aquele conteúdo. Os universitários de filosofia não conhecem a dialética.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Kant definiu, de modo imperfeito,doze categorias ou conceitos puros do entendimento que permitem moldar e pensar os fenómenos. Como categorias da relação colocou:
Inerência e subsistência
(substantia et accidens)
Causalidade e dependência
(causa e efeito)
Comunidade
(acção recíproca entre
o agente e o paciente)
(Kant, Crítica da Razão Pura, página 111, Fundação Calouste Gulbenkian).
E como categorias da modalidade Kant definiu as seguintes:
Possibilidade-Impossibilidade
Existência - Não-existência
Necessidade-Contingência.
Por que razão sendo a necessidade a lei de causa-efeito uniforme e infalível não figura nas categorias da relação, junto da causa-efeito, mas sim nas da modalidade? A causa-efeito é género e a necessidade - as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos nas mesmas circunstâncias - é uma sua espécie. Outra espécie deste género causa-efeito é a contingencialismo ou indeterminismo - nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas não produzem sempre os mesmos efeitos.
Era pois mais lógico que Kant tivesse enunciado umas categorias da regularidade ou da causalidade que seriam:
Causa-efeito.
Causa-efeito uniforme e infalível (necessidade),
Causa-efeito falível (contingência).
Kant não possuía um pensamento completamente dialético em matéria de categorias do entendimento que permitisse arrumar estas de forma perfeitamente racional..
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O "Routledge dictionary of philosophy» diz o seguinte:
«Os deterministas moderados (soft determinists), de longe o maior grupo em tempos recentes, dizem que as nossas acções são, de facto, causadas mas não estamos, portanto, menos livres do que devíamos estar, porque a causação não é um constrangimento ou compulsão sobre nós. Enquanto as nossas naturezas e escolhas forem efetivas como itens na cadeia causal, o facto de elas próprias serem causadas é irrelevante e não as impede de ser o que são» ("The Routledge Dictionary of Philosophy, page 146, fourth edition).
Comecemos por apontar um erro no texto que acabamos de ler: os deterministas moderados não dizem que (todas) as nossas acções obedecem ao determinismo - «estão causadas», expressão de que não gosto por ser ambígua - mas sim que uma grande parte das nossas acções (exemplo: comer, beber, dormir, vestir roupa, andar, etc) obedecem ao determinismo neurofisiológico e não são livres. Escrever que «as nossas acções são causadas mas continuamos livres» é um contra-senso. Entrar no automóvel e guiá-lo é uma acção determinada ou uma acção livre? Segundo o Routledge Dictionary é ambas as coisas. Nuvem de Confusão! No mesmo aspeto e ao mesmo tempo, não podem dar-se os contrários (princípio da não contradição). Dizer que «o facto de as nossas naturezas e escolhas serem causadas (determinadas, não livres.).. é irrelevante» é um contrasenso. Se são determinadas, não são livres. Há aqui falta de poder de análise.
E o Routledge prossegue:
«Os deterministas moderados são compatibilistas. Os indeterministas podem ser ambas as coisas, mas são habitualmente incompatibilistas.»
«Uma dificuldade com o indeterminismo é que a mera ausência de causação parece não ser suficiente. Se as nossas ações não são mais do que intrusões aleatórias no esquema causal das coisas como podemos ser responsável por elas mais do que se forem causadas? Os indeterministas são, por vezes, denominados libertarianos. Mas mais estritamente, os libertarianos são aqueles que postulam uma entidade especial, o self, que usa o corpo para intervir de fora, por assim dizer, na cadeia causal dos acontecimentos, mas é, em si mesmo, imune à influência causal.» (Routledge Dictionary of Philosophy, page 146).
Há evidentemente, aqui uma confusão: segundo este dicionário, no indeterminismo «as nossas ações não são mais do que intrusões aleatórias no esquema causal das coisas» o que radica no «eu» (self), exterior aos determinismos, autor dessas acções. Mas isto é exatamente o determinismo conjugado com livre-arbítrio, isto é, o «determinismo moderado», um compatibilismo. Se o self está fora da cadeia causal dos acontecimentos, esta é admitida pelo libertismo. Logo este e o «determinismo moderado» são o mesmo. Está-se num jogo de palavras, no relvado das incoerências teóricas...O Routledge Dictionary desliza como a faca sobre a manteiga das imprecisões teóricas, dos equívocos.
O problema que os filósofos analíticos, e outros como Nietzschze, não conseguem conceber é que a articulação entre os acontecimentos do passado do presente e do futuro não é uma cadeia determinista contínua mas uma série de cadeias deterministas, descontínuamente articuladas entre si, uma das quais é accionada, rotativamente, a cada momento pelo livre-arbítrio dos homens ou pelo fator acaso que perpassa na natureza biofísica.
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O livro de exercícios «Filosofia para a prova de exame do 10º ano», de Luís Rodrigues, é um amontoado de confusões teóricas que impede os estudantes e professores de filosofia de divisarem claramente os contornos e o conteúdo de diversos conceitos e teses fundamentais na ética e metaética. Luís Rodrigues, como os outros autores de manuais de filosofia para o 10º ano em Portugal, propaga a errónea tese de Simon Blackburn de que são 4 as teorias sobre livre-arbítrio e determinismo: determinismo radical, determinismo moderado, libertismo e indeterminismo. A definição de libertismo é imensamente confusa e traduz a mediocridade que impera no ensino da filosofia em Portugal. Se a maioria dos professores de filosofia ensina deste modo os seus alunos, é a prova de que os antifilósofos, os preguiçosos ou inábeis do pensamento são a maioria na docência desta disciplina. Não admira: ser professor de filosofia não é ser filósofo necessariamente.
CONFUSÃO NA DEFINIÇÃO DE LIBERTISMO: NÃO É INDETERMINISMO NEM DETERMINISMO (VIOLA O 3º EXCLUÍDO), É «IMCOMPATIBILISMO» MAS COMPATÍVEL COM O DETERMINISMO
Escreveu Luís Rodrigues:
27. O libertismo é sinónimo de indeterminismo?
«Não. Segundo os libertistas, o determinismo é falso (o que significa que algumas acções são livres, não são causalmente determinadas] e o indeterminismo também. Isso significa que nem todas as acções são o desfecho necerssário de causas anteriores (negação do determinismo) ou o resultado do acaso (negação do indeterminismo)? Em ambos os casos, as acções dependem da nossa vontade. Não fazemos o que queremos fazer (não somos livres) porque não controlamos os acontecimentos.» (Luís Rodrigues, Filosofia para a prova intermédia do 10º ano, pag. 31, Plátano Editora)
O primeiro erro de Luís Rodrigues é não definir correctamente determinismo. Em vez de afirmar que se trata do princípio segundo o qual nas mesmas circunstâncias as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos - definição simultaneamente sincrónica e diacrónica - Luís Rodrigues fornece-nos uma definição unilateralmente diacrónica de determinismo: desfecho necessário de causas anteriores, cadeia de acontecimentos vinda do passado. Ora o determinismo é, por exemplo, neste preciso instante a luz solar embater nas moléculas do ar em múltiplos lugares da Terra, dispersar-se e dar a todos os que observam o céu a intuição de cor azul neste instante - e isso não implica necessariamente as causas e efeitos remotas do passado mas apenas a instantaneidade presente. A dimensão de simultaneidade - muitas causas idênticas produzindo efeitos idênticos entre si ao mesmo tempo - falta na definição do pequeno filósofo Blackburn e do seu imitador Luís Rodrigues.
Em segundo lugar, Rodrigues, tal como Blackburn e Desidério Murcho, violam o princípio do terceiro excluído ao colocar o libertismo fora da totalidade da contradição determinismo (campo A)/ indeterminismo (campo não A). O libertismo, se não é determinismo, tem de ser necessariamente indeterminismo. Não há terceira hipótese. Mas isto é incompreensível para as mentes anti dialécticas destes autores e de grande parte dos professores de filosofia que os reproduzem, acriticamente. Ora o libertismo é de facto indeterminismo tal como o livre-arbítrio e o acaso na natureza biofísica. Basicamente, as coisas reduzem-se a uma dualidade: necessidade (não liberdade) e liberdade ou acaso. Quem não for capaz de reduzir as correntes a esta dualidade e à tríade dela decorrente não sabe pensar filosoficamente, com rigor.
Em terceiro lugar, Luís Rodrigues e Blackburn não se dão conta que a sua definição de libertismo é a mesma, ao menos parcialmente, que a definição que fornecem de «determinismo moderado». Aliás, deveriam meditar: se o determinismo é "moderado", isto é, limitado, contrariado, quem o limita? O livre-arbítrio, ou seja, a característica essencial que eles mesmos atribuem ao libertismo.
Em quarto lugar, Rodrigues afirma que o libertismo é um incompatibilismo mas contradiz-se ao postular que esta corrente admite acções determinadas (obedientes ao determinismo), logo é compatível com o determinismo:
«O libertismo não diz que não há acções determinadas - uma constipação é uma acção determinada por factores que escapam ao nosso controlo - mas somente que algumas acções não são o desfecho necessário de causas anteriores. Há acontecimentos que estão fora do nosso controlo, mas nem todos os acontecimentos estão fora do nosso controlo.» (Luís Rodrigues, ibid, pag 31; o negrito é posto por mim).
Se o libertismo admite que há acções determinadas, é um compatibilismo: é compatível com essas acções e, sendo assim, é o mesmo que determinismo moderado, ou seja, determinismo ladeado por livre-arbítrio. (exemplo: as ondas do mar fortíssimas arrastar-me-ão se entrar no mar a fundo mas tenho a liberdade de entrar ou não no mar.
A definição de libertismo só poderia ter consistência se negasse em toda a extensão a existência do determinismo na natureza biofísica e no espírito. Mas nem Blackburn nem Luís Rodrigues e amigos intuem esta divisão dialéctica, perdidos na hiper compartimentação dos seus conceitos.
A SUPOSTA DIFERENÇA ENTRE DETERMINISMO MODERADO E LIBERTISMO, SEGUNDO RODRIGUES: O LIVRE-ARBÍTRIO BASEADO NAS CRENÇAS E NOS DESEJOS E O LIVRE-ARBÍTRIO BASEADO NO «EU»...
Para Luís Rodrigues, imerso nas confusões teóricas do seu mestre Simon Blackburn, a diferença essencial entre o determinismo moderado e o libertismo, para além do primeiro não enfatizar a influência dos acontecimentos anteriores e receber o incompreensível título de «incompatibilismo», residiria no facto de o livre-arbítrio pilar do primeirro assentar nos desejos e crenças do sujeito e o livre-arbítrio pilar do segundo estar consubstanciado no eu:
«O determinista moderado concebe a liberdade de outro modo: livre é a acção que tem como causa os desejos e crenças de um indivíduo, isto é, uma acção cuja causa não são forças externas ao agente. » (Luís Rodrigues, ibnid, pag 30).
«Aqui o libertista responde que os seres humanos não são seres simplesmente naturais porque as deliberações dos agentes humanos são acontecimentos mentais. Nem todos os acontecimentos do universo são o efeito do tipo de causas estudadas pelos físicos e pelos biólogos. Os seres humanos, como pensava Kant, são seres com um estatuto diferente e nem todas as suas acções seguem as leis que regem o comportamento das plantas, minerais e outros animais. Não escolho livcrementer ter agora tensão arterial elevada ou cumprir a lei da gravidade. Contudo, escolho livremente se caso ou não, se leio um livro ou uma revista. Embora essas decisões possam ser influenciadas por vários factores, não são causalmente determinadas por condições anteriores (estados psicológicos anteriores ou factores externos).» (Luís Rodrigues, ibid, pags 31-32; o negrito é colocado por mim).
Poderá separar-se, como supõem Rodrigues e Blackburn, os estados psicológicos internos e as crenças do sujeito, «fundamentos» da decisão livre no «determinismo moderado», do «eu livre do determinismo» , suposto «fundamento» do libertismo? Não, não pode. O eu não existe separado das suas crenças e estados psicológicos, logo a distinção desenhada por Rodrigues acima é uma miragem, um equívoco. Por que razão Blackburn e o seu discípulo Luís Rodrigues classificam Kant de libertista e não de determinista moderado, se Kant afirma que o eu fenoménico (o corpo e os seus desejos) está submetido às leis da natureza biofísica?
Tanta confusão teórica em autores de manuais, que possivelmente modelarão a prova de exame nacional de filosofia, deve ser discutida e expurgada. Torna-se necessário um movimento nacional de professores de filosofia para varrer a deletéria influência dos Desidério Murcho, Luís Rodrigues, Aires Almeida, Pedro Galvão e outros no ensino da filosofia em Portugal. o que significa, no mínimo, deixar de adoptar os manuais da Lisboa Editora, da Plátano Editora e da Areal Editores, veículos dos erros daquele grupo de docentes. Apenas os filósofos, que são muito poucos entre os professores de filosofia, têm direito a elaborar as provas nacionais de exame. Tudo o resto é erro, burocracia, "estalinismo" logicista analítico (que em Portugal, parafraseando o título do livro de Lenine O esquerdismo, doença infantil do comunismo, recebe o nome de desiderismo, a doença senil do logicismo) , triunfo dos incompetentes.
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Lançou a Plátano Editora, de Lisboa, em Setembro de 2009, uma segunda edição do Dicionário Escolar de Filosofia, com entradas de 12 autores, entre eles o organizador, Aires Almeida. Apesar de conter um bom número de tópicos interessantes, e propiciar um certo número de conhecimentos úteis aos leitores, este dicionário é portador de um considerável número de equívocos teóricos, de erros e imprecisões. Vejamos alguns deles.
OMISSÃO DA DISTINÇÃO ENTRE EIDOS PLATÓNICO E EIDOS ARISTOTÉLICO
Um dos artigos equívocos é o que se refere ao eidos:
Eidos
«Termo grego que significa «forma» ou «ideia». PLATÃO considerava que as formas ou ideias eram imutáveis, imateriais e não podiam ser percepcionadas pelos sentidos, mas eram a realidade última, sendo as coisas apenas uma pálida sombra das formas.» DM (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 95).
O que há de impreciso, omisso, equívoco, nesta definição fornecida por Desidério Murcho (DM)? Antes de mais, o ocultar o carácter eterno das ideias, segundo Platão, e a sua permanência no Mundo do Mesmo ou Inteligível, acima do céu visível.
Em segundo lugar, o esquecimento de que o termo eidos designa essência.
Em terceiro lugar, a omissão das diferentes concepções que Platão e Aristóteles perfilhavam sobre o termo eidos: para Platão, a essência é ideia, uma forma singular e única, própria, - em grego, próprio diz-se idios - que não existe no mundo material; para Aristóteles, a essência é uma forma comum ou espécie (eidos), existente no mundo físico em todos os entes singulares por ela abrangidos (exemplo: a essência ou eidos cavalo está neste cavalo de raça lusitano, naqueles cavalos andaluzes, e, enfim, em todos os cavalos físicos do mundo). O eidos segundo Aristóteles, omisso na definição de DM, não é exterior ao mundo físico como o eidos teorizado por Platão e possui, ademais, um carácter intrinsecamente agrupador.
CONFUSÃO SOBRE O RELATIVISMO MORAL ENUNCIADO COMO UM ABSOLUTISMO EM CADA SOCIEDADE
A definição fornecida de relativismo moral, neste dicionário, é parcialmente errónea:
«Relativismo moral»
«Teoria Metaética segundo a qual os factos morais são instituídos pela sociedade e, portanto, podem variar de sociedade para sociedade ou de época para época. Se numa sociedade a maior parte das pessoas acredita, por exemplo, que a pena de morte é justa, então nessa sociedade a pena de morte é justa. Para o relativista, os juízos morais limitam-se a reflectir certos costumes sociais. Quando os costumes ou as crenças morais de uma sociedade mudam, também os factos morais se alteram.» PG
(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 222).
Pedro Galvão (PG), tal como Peter Singer, James Rachels e outros famosos da ética, não tem um conceito correcto de relativismo. Que é o relativismo? É a doutrina segundo a qual a verdade é relativa às epocas e lugares, isto é, varia de época a época e de lugar a lugar, varia de povo a povo, de país a país, varia segundo as classes e grupos sociais no interior de cada país ou sociedade.
A democracia liberal é, por essência, um regime relativista: o facto de em Setembro de 2009, o PS de Sócrates ter vencido as eleições legislativas em Portugal não torna a ideologia do PS - ou as ideologias europeístas do PS e do PSD que em conjunto abarcam a maioria dos eleitores portugueses votantes - a verdade única para toda a sociedade. Não. Continuam a subsistir segmentos sociais, políticos e culturais diversos - a direita nacional neosalazarista do PNR, a direita conservadora CDS, a esquerda neoestalinista do PCP, a esquerda radical ou semianarquista do BE, etc; os católicos e os islâmicos opositores da legalização das uniões homossexuais, etc - com outras verdades éticas e políticas. É este mosaico multicor que constitui o relativismo.
Há, pois, relativismo no seio de cada sociedade - várias verdades ou interpretações sobre a mesma coisa (por exemplo: defensores e detractores do aborto livre; comunistas e não comunistas, etc)-mas Galvão não concebe isso: sustenta a unicidade e uniformidade ética, isto é, que a verdade da maioria é a verdade de todos. É absolutismo de maiorias e não relativismo o que Pedro Galvão define como "relativismo". O único relativismo que reconhece é o da variação de leis ou costumes dominantes de sociedade para sociedade - por exemplo, a liberdade da mulher nas democracias ocidentais em contraste con a opressão da mulher na Arábia Saudita e em outros países de gritante hegemonia masculina. É uma concepção "coxa", parcialmente deformada, de relativismo.
CONFUSÃO DE DETERMINISMO COM FATALISMO
Um erro em que o próprio Thomas Nagel, premiado internacionalmente em filosofia (!), incorre, e que o presente dicionário escolar repete, é a confusão entre determinismo e fatalismo:
Determinismo/Indeterminismo
«O determinismo é uma tese que nos diz que o passado, mais as leis da natureza, determinam a cada instante, um único futuro. Assim, num mundo determinista não há mais do que uma forma de o mundo ser a cada instante. Esta apresenta-se como uma linha de comboio sem bifurcações ou encruzilhadas. O indeterminismo é a tese oposta: a ideia de que o estado do mundo num dado momento é compatível com vários estádios distintos num momento posterior. Ou seja, a linha de comboio tem bifurcações, momentos claros de possibilidades alternativas. Actualmente, não sabemos se o determinismo é verdadeiro ou não. A questão é empírica, e não há razões suficientes para decidir a questão.» MA
(Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 88; o bold é nosso).
Determinismo está mal definido por Miguel Almeida (MA). Que é o determinismo? É o princípio de repetição segundo o qual nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. É uma das modalidades da Necessidade. A lei da gravidade exerce-se, de forma determinista, sobre os milhares de páraquedistas que se atiram de aviões mas o livre arbítrio de cada um deles, operando a abertura dos paraquedas, impede que o determinismo da queda livre actue plenamente e os faça esmagar-se na terra. O que MA define acima como «linha de comboio sem bifurcações» é o fatalismo, a predestinação, diferente do determismo. Este só na aparência traduz predestinação visto que pode ser «desviado» ou contrariado pelo livre-arbítrio e pelo acaso. O determinismo, ao contrário do que sustenta Miguel Almeida, é uma «linha de comboio com ramificações e bifurcações»: usando as "agulhas" do livre-arbítrio - ou sendo o acaso a mudá-las - o maquinista pode fazer o comboio ir pela via da esquerda ou pela via da direita, avançar ou parar. O que não pode é fazer sair o comboio dos carris do determinismo...
O nosso mundo rege-se pelo determinismo mas a guerra do Iraque, lançada pelos EUA e Grã-Bretanha em 2003, podia, ao menos teoricamente, ter sido evitada se Barack Obama e não George Bush ocupasse a presidência dos EUA.
Indeterminismo está igualmente mal definido no artigo acima. Há que distinguir indeterminismo no resultado final - que é compatível em regra com o determinismo biofísico visto que a este se adiciona certa dose de acaso- de indeterminismo estrutural ou modal, que é a negação do determinismo ou conexão necessária, infalível, entre causas de tipo A e efeitos de tipo B.
Que sentido tem definir compatibilismo como «coexistência do determinismo com o livre-arbítrio» como o faz este Dicionário se neste artigo se toma o termo determinismo como fatalismo, predestinação absoluta? É uma incoerência, tal como é incoerência distinguir determinismo moderado de determinismo absoluto.
A "DEFINIÇÃO" PELA NEGATIVA DE CORROBORAÇÃO
Herdeiro de uma certa falta de clareza intelectual de Karl Popper, o presente Dicionário não define claramente o que é corroboração para este filósofo inglês:
corroboração
«Na sua FILOSOFIA DA CIÊNCIA, POPPER rejeita a INDUÇÂO e, consequentemente, a ideia de que uma hipótese ou teoria científica pode ser confirmada por dados empíricos. Assim, no seu FALSIFICACIONISMO a noção de CONFIRMAÇÂO dá lugar à de corroboração. Uma hipótese ou teoria científica é corroborada por dados empíricos quando sobrevive a testes experimentais, isto é, quando não é refutada depois de ter sido posta à prova. E quanto mais severos são os testes, maior é o grau de corroboração que a teoria adquire» PG (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 76).
Se repararmos bem, corroboração não é definida nesta entrada: são apenas definidos os efeitos que produz, ou seja, a sobrevivência da hipótese a sucessivos testes experimentais. É como se ao definir automóvel o fizéssemos da seguinte maneira:« automóvel é quando se percorre a 100 quilómetros por hora estradas de asfalto». Não estamos a definir o veículo mas efeitos da sua acção. Pedro Galvão (PG) não nos oferece uma definição positiva, clara, de "corroboração"- talvez nem Popper o faça. Mas nós vamos fazê-lo: a corroboração é a confirmação, por testes empíricos, de um ou mais casos particulares de uma hipótese ou teoria dentro da respectiva série de casos possíveis. É uma tolice dissociar o conceito de "confirmação" do de "corroboração": ambos significam o mesmo, ainda que Popper pretenda dar maior amplitude ao primeiro.
A ERRÓNEA IDENTIFICAÇÃO DE PENSAMENTO E PROPOSIÇÃO
A incapacidade de definir conceito manifesta-se na correspondente entrada deste dicionário:
«conceito
«Os constituintes dos pensamentos (ou proposições). A PROPOSIÇÃO de que Lisboa é uma bela cidade tem como um dos seus constituintes o conceito de cidade. Ter um conceito é, argumentavelmente, saber usá-lo correctamente. Por exemplo,se alguém apontar para uma bola e disser que é um tigre, é porque não tem o conceito de tigre (nem de bola); mas se for competente no uso o termo "tigre", tem o conceito em causa. Uma das muitas questões em aberto é a de saber se os conceitos são entidades abstractas independentes da mente ou se dependem desta para existiem.» CT (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 68; o bold é nosso).
Esta definição de Célia Teixeira (CT), caracterizada pela vagueza, omite que um conceito é uma representação intelectual simples, uma ideia de algo (ao invés, Schopenhauer distinguia entre ideia, singular e superior, e conceito, designando um colectivo).
É uma definição parcialmente errónea ao dizer que «os conceitos são os constituintes do pensamento». Também os juízos e os raciocínios são constituintes do pensamento. Ademais, CT identifica pensamento e proposição, o que constitui, em rigor, um erro. A proposição é expressão de um pensamento mas nem todo o pensamento se traduz em proposições. Os conceitos de «átomo», «quark», «metafísica», «Deus» são pensamentos mas não são proposições.
A FILOSOFIA NÃO DISPÕE DE MEIOS DE PROVA, EMPÍRICOS E FORMAIS?
A distinção entre ciência e filosofia é superficial neste Dicionário como se torna patente na seguinte entrada:
problema filosófico
«A filosofia tal como a ciência, procura resolver problemas que nos afectam a todos. A diferença entre os problemas da filosofia está no tipo de problemas que ambas enfrentam. A filosofia trata de problemas para os quais não dispomos de meios empíricos nem formais de prova. São problemas reais, embora muitas vezes de carácter conceptual àcerca dos fundamentos da ciência, da religião, da arte, e até do nosso dia a dia. Por exemplo, problemas como o de saber o que é a justiça, o que é o conhecimento, qual o mecanismo através do qual os nomes referem as coisas que referem, etc. Muitas vezes tomam-se como filosóficos problemas que claramente o não são. Por exemplo, saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico.» (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag 209; o bold é nosso).
Equivoca-se Aires Almeida (AA) sobre a natureza da filosofia. A filosofia não dispõe de meios formais de prova? Se não dispusesse destes meios não servia para nada, não tinha sequer o estatuto de pensamento reflexivo superior. É a filosofia, através do seu ramo lógico, que hierarquiza os entes em indivíduo ou substância individual, espécie e género. Ora esta divisão conceptual é um meio formal de prova de milhões de asserções entre elas a seguinte: «A Rússia é um país euroasiático ( Euro-Ásia é espécie) do planeta Terra (Terra é género)».
São Tomás de Aquino provou formalmente por cinco vias a existência de Deus. Objectar-se-á: falta a prova empírica. Mas as provas formais estão na Suma Teológica.
A filosofia usa igualmente provas empíricas para numerosas das suas teses. Exemplo: as filosofias liberal, conservadora, socialista democrática e anarquista atacam a filosofia marxista-leninista e os Estados que a adoptam com provas empíricas variadas, como os 3 milhões de mortos pelo Goulag estaliniano no século XX, o fuzilamento do general Ochoa em 1990 pelos sicários de Fidel Castro após uma vergonhosa auto-crítica fruto de brutais ameaças, o massacre dos marinheiros de Cronstad em Março de 1921, as barbaridades da Grande Revolução Cultural Proletária de Mao Ze Dong, etc.
Aires Almeida distancia a filosofia da ciência como o céu da terra mas, de facto, as coisas não são assim: a alma oculta e rebelde de cada ciência é a filosofia, na sombra de cada tese científica desponta a lanterna indagadora da filosofia.
A filosofia está para as ciências, para a religião e para a ontologia como o género para a espécie, como o género animal está para as espécies homem, elefante, zebra e outras: ela contém as ciências, ainda que estas se diferenciem dela - pela diferença específica, que inclui a necessidade e o modo de ser próprio de cada ciência. A relação entre filosofia e ciência não é a relação entre duas espécies do mesmo género ou dois géneros diferentes, como supõem Aires Almeida e outros. É, sim, a relação entre o todo (filosofia) e as suas partes (ciências: química, sociologia, matemática, biologia, etc).
Igualmente se equivoca AA ao dizer que «saber se a religião contribui para a coesão das sociedades não é um problema filosófico, mas sociológico». O erro reside em separar mecanicamente sociologia de filosofia. Ora, a filosofia penetra no húmus da sociologia, como as raízes da árvore penetram na terra. Saber se a religião coesiona as sociedades é, formalmente, um problema filosófico, e materialmemte um problema sociológico.Tão simples quanto isto.
A INCOMPREENSÃO SOBRE A CONTRADIÇÃO/LUTA DE CONTRÁRIOS COMO ESSÊNCIA DE TODAS AS COISAS
Não tendo entre os seus 12 autores nenhum verdadeiro conhecedor da dialéctica enquanto ontologia, isto é, enquanto modo de ser da realidade, este Dicionário Escolar de Filosofia só poderia dar uma definição truncada, parcialmente errónea, de contradição:
«Contradição
1. Uma falsidade lógica; isto é, uma proposição cuja falsidade se pode determinar exclusivamente por meios lógicos. Por exemplo, a afirmação "Sócrates é mortal e não é mortal" é uma contradição.
2. Duas proposições são mutuamente contraditórias quando têm valores de verdade opostos em qualquer circunstância logicamente possível. Por exemplo, as afirmações "Tudo é relativo" e "Algumas coisas não são relativas" são contraditórias. Não se deve confundir inconsistência com contradição; todas as contradições são inconsistências, mas nem todas as inconsistências são contradições. Ver consistência/inconsistência. DM» (Aires Almeida e outros, Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora, pag ;75 o bold é nosso).
Comecemos por descortinar que, ao contrário do que sustenta DM, a proposição «Sócrates é mortal e não é mortal» não é, necessariamente, uma falsidade lógica. Se a metafísica religiosa espiritualista fôr verdadeira -isto é se a nossa alma racional, o nous, o atmã, fôr imortal - é consistente dizer que Sócrates é mortal nos seus corpos físico, vital e de desejos e imortal no seu corpo espiritual racional. Isto é dialéctica. Não viola o princípio da não contradição porque a contrariedade se exerce entre aspectos diferentes do mesmo ente. A lógica proposicional que Desidério Murcho (DM) defende é, em muitos aspectos, antidialéctica, unilateral, falsificadora da realidade.
Aquilo que Desidério Murcho ignora - decerto não compreendeu Heráclito, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Hegel, Marx, Althusser e tantos outros - é que a contradição consistente, a oposição de contrários - por exemplo: protões de carga positiva, e electrões, de carga negativa, no átomo; assimilação e desassimilação, na célula; inverno e verão, no ritmo das estações; sístole e diástole no bater do coração, etc - é a essência de todos os fenómenos da natureza biofísica e humano social e individual.
Afirmar que «todas as contradições são inconsistências» é um grave erro: é esvaziar a palavra contradição do seu sentido real, ontológico - «um divide-se em dois que lutam entre si e coexistem» - e atribuir-lhe o sentido de paradoxo. De facto há contradições inconsistentes - exemplo: «eu sou homem e cavalo, fisicamente falando» - e contradições consistentes que, aos biliões, constituem a trama ontológica da realidade - exemplo: «sou bom e mau em simultâneo, bom para com os cidadãos pacíficos e honestos e mau para com os arrogantes e prepotentes». DM não concebe esta distinção, preso que está na masmorra do castelo da antidialéctica.
A INCAPACIDADE DE DELIMITAR ONTOLOGICAMENTE FENOMENOLOGIA
A incapacidade de definir fenomenologia, de a situar ontologicamente face ao realismo e ao idealismo, é outro traço deste Dicionário:
«fenomenologia
«Termo pelo qual é designado o movimento filosófico surgido a partir da obra de Edmund Husserl (1859-1938) e que tem por objectivo principal a investigação e a descrição dos fenómenos (ver fenómeno) tal como ocorrem na consciência, independentemente de quaisquer preconceitos, pressupostos ou teorias explicativas. É possível detectar pelo menos quatro tendências principais neste movimento: a fenomenologia realista, que põe ênfase na descrição das essências (ver essência) universais (Nicolai Hartman, Max Scheler); a fenomenologia constitutiva, que procura dar conta dos objectos em termos da consciência que temos deles (Dorion Cairns, Aron Gurwitsch); a fenomenologia existencial (ver existência), que realça a existência humana no mundo (Hannah Arendt, Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty); e a fenomenologia hermenêutica (ver hermenêutica), que realça o papel da interpretação em todas as esferas da vida (Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur). O termo é também usado para a descrição qualitativa de experiências. Em geral, a fenomenologia de uma experiência é a descrição da qualidade dessa experiência, do modo como essa experiência se dá na nossa consciência.» AN (ibidem, pag 120; o bold é nosso)
Há uma fenomenologia realista e uma fenomenologia anti realista? É a fenomenologia idealismo ou distingue-se deste? Nada disto é esclarecido por Álvaro Nunes (AN) neste artigo onde a profusão de referências historicistas e a descrição da fenomenologia como método disfarça a incapacidade de definir ontologicamente fenomenologia.
AMBIVALÊNCIA NA DEFINIÇÃO DE VALIDADE E INVALIDADE DE UM ARGUMENTO
Mesmo no terreno da lógica, este Dicionário tem insuficiências:
«validade/invalidade
«A correcção ou incorrecção de um argumento. Há dois tipos de validade: a dedutiva e a não dedutiva. Um argumento dedutivo é válido quando é impossível que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se isso for possível, o argumento é inválido. Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido. Não deve confundir-se este sentido lógico dos termos "validade" e "invalidade" com o seu sentido popular, que significa "com valor" e "sem valor". Assim, popularmente diz-se que uma proposição é válida ou inválida, querendo dizer que tem valor ou que não tem valor (e, muitas vezes, que é verdadeira ou falsa). Mas não se pode dizer que uma proposição é válida ou inválida no sentido lógico do termo. No sentido lógico do termo só os argumentos podem ser válidos ou inválidos; as proposições são verdadeiras ou falsas, interessantes ou entediantes, e muitas outras coisas, mas nunca podem ter a propriedade da validade argumentativa. » DM
Sendo um «especialista em lógica proposicional», Desidério Murcho (DM) mergulha numa falácia anfibológica centrada na noção de «validade argumentativa». ´Que é validade argumentativa? DM define-a de forma vaga: correcção no argumento. Mas não diz se se trata de uma correcção propriamente formal, indepedendente de todo e qualquer conteúdo material - como é o caso da validade dedutiva - ou se se trata de uma correção formal-material, baseada na realidade empírica do mundo - como é o caso da chamada "validade indutiva".
Neste segundo caso, nunca se deveria chamar validade mas sim outra coisa: verdade material, plausibilidade (verdade plausível), solidez. DM, tão cuidadoso em vincar que «validade nada tem a ver com verdade» acaba por fundar a validade indutiva na verdade material e nem dá conta disso...Usa pois falaciosamente o termo validade, com duplo sentido, com ambiguidade.
Registe-se ainda o erro por vagueza, imprecisão, na definição de argumento não dedutivo fornecida por DM: «Um argumento não dedutivo é válido quando é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa; se for provável, é inválido.» Crítica: Improvável é, ontologicamente, o mesmo que provável: ambos estão na esfera da probabilidade. Onde acaba o improvável e começa o provável? Com que escala se medem? Desidério Murcho não é capaz de o dizer. É uma definição trémula, confusa, a da validade não dedutiva.
O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO É UM PONTO DE CHEGADA E NÃO UM PONTO DE PARTIDA?
Outra definição imperfeita, parcialmente errónea, neste Dicionário é a seguinte:
«princípio do terceiro excluído
«Chama-se "princípio do terceiro excluído" à ideia de que, para qualquer afirmação P, é verdade que P ou não P. Ou seja: o princípio declara que não há uma terceira possibilidade, entre P e não P, seja qual for a afirmação. Por exemplo: relativamente à afirmação "Sócrates é alto", só há estas duas alternativas: "Sócrates é alto" ou "Sócrates não é alto". Quando uma lógica aceita o princípio do terceiro excluído significa que qualquer afirmação com a forma "P ou não P" será uma verdade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica intuicionista. Não se deve confundir o terceiro excluído com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. A relação precisa entre o terceiro excluído e a bivalência é objecto de disputa filosófica. Não se deve também pensar que o terceiro excluído é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida.» D.M (Dicionário Escolar de Filosofia)
Crítica: o princípio do terceiro excluído não se limita ao plano das afirmações (Logos predicativo), como supõe Desidério Murcho. É, antes de mais, um princípio das coisas, dos conceitos (Logos nominal), situadono plano da conceptualização antepredicativa. Exemplo: Peixe ou não Peixe (isto não é uma proposição). A proposição não é o lugar originário da verdade, mas sim a apreensão das coisas, a conceptualização. O pensamento (Noein) vem antes do discurso (Logos). O terceiro excluído existe já aí, anterior a toda a proposição - por exemplo: ser versus não ser - e por isso é um ponto de partida, um modo do ser, e não um mero ponto de chegada como sustenta DM.
A AFIRMAÇÃO DO CONSEQUENTE NO SILOGISMO CONDICIONAL NÃO É NECESSARIAMENTE UMA FALÁCIA
Este Dicionário veicula o erro lógico da moderna lógica proposicional àcerca da afirmação do consequente da primeira premissa no silogismo condicional MODUS PONENS:
«falácia da afirmação do consequente
falácia que consiste em supor que da condicional "Se P, então Q" e da afirmação da consequente dessa condicional, "Q", se pode concluir "P". Exemplo: "Se jogamos bem, então ganhamos o jogo. Ganhámos o jogo. Logo, jogámos bem." É fácil apresentar uma refutação desta forma de argumento com um contra-exemplo com a mesma forma lógica: o argumento "Se isso é sardinha então isso é peixe. É peixe. Logo, é sardinha.", implicando a falsidade "Basta ser peixe para ser sardinha", mostra que este padrão argumentativo é falacioso.» JS (in Dicionário Escolar de Filosofia)
Ao contrário do que supõe Júlio Sameiro (JS), afirmar o consequente da primeira premissa de um silogismo condicional na segunda premissa deste não é necessariamente um erro lógico, não é uma falácia.
Eis um exemplo de silogismo condicional válido:
«Se for ao Porto, entro na Torre dos Clérigos.»
«Entrei na Torre dos Clérigos.»
«Logo, fui ao Porto».
Que falácia existe neste raciocínio? Nenhuma. Está correctíssimo. Mas contraria a norma da lógica proposicional que declara inválido afirmar o consequente da primeira premissa. Este silogismo, válido e verdadeiro, demonstra a pseudociência que é a lógica proposicional.
CONFUSÃO DO PRINCÍPIO DA NÃO CONTRADIÇÃO COM O PRINCÍPIO DO TERCEIRO EXCLUÍDO
O artigo sobre o princípio da não contradição revela-se um pântano de confusão:
«não contradição, princípio da
«Chama-se "princípio da não contradição" à ideia de que duas afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Por exemplo: dado que as afirmações "Sócrates é alto" e "Sócrates não é alto" são contraditórias, o princípio declara que não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas. Quando uma lógica aceita o princípio da não contradição significa que qualquer afirmação com a forma "P e não P" será uma falsidade lógica. Algumas lógicas modernas recusam este princípio, como é o caso da lógica paraconsistente. Não se deve confundir a não contradição com o princípio da bivalência: este último é a ideia de que só há dois valores de verdade e que todas as proposições têm um dos dois, e só um dos dois. Não se deve também pensar que a não contradição é de alguma maneira um axioma da lógica clássica; na verdade, é um resultado, um ponto de chegada, e não um ponto de partida. Aristóteles defende o princípio na sua obra Metafísica (Γ 4). Note-se que a redução ao absurdo só é válida caso se aceite o princípio da não contradição. DM (Dicionário Escolar de Filosofia).
Desidério Murcho (DM) designa como princípio da não contradição aquilo que é, de facto, o princípio do terceiro excluído. O exemplo escolhido por DM é defeituoso. De facto, alto e não alto não são contrários na lógica aristotélica, mas contraditórios. Dizer " Sócrates é alto ou é não alto" como, no fundo afirma DM, é exemplificar o terceiro excluído. Distracção fatal deste autor brasileiro que parece especialista em lógica mas se confunde no magma de definições algo desconexas. Se queria escolher um exemplo correcto para o princípio da não contradição seria o seguinte: «Sócrates não pode ser alto e baixo ao mesmo tempo e no mesmo aspecto ou sentido».
Aristóteles enuncia assim o princípio da não contradição, definição que não é a dada por DM acima:
«Digamos, em continuação, qual é este princípio; é impossível que o mesmo se dê e não dê no mesmo ao mesmo tempo e no mesmo sentido» (Metafísica, Livro IV, 1005 b).
Em suma, o princípio da não contradição enuncia-se assim: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e no mesmo aspecto duas qualidades ou propriedades contrárias entre si. É diferente do princípio do terceiro excluído.
O SOFISMA DA "METAFILOSOFIA"
Uma definição, surpreendente e sofística, é a de metafilosofia expressa neste Dicionário:
metafilosofia
«Chama-se "metafilosofia" às teorias acerca da natureza da filosofia. Estas teorias não tratam conceitos como, por exemplo, os de verdade, bem, justiça, dever, beleza, ser, conhecimento, etc.; nem respondem a problemas como, por exemplo, o de saber se todas as desigualdades são injustas ou se existe um sentido da vida, etc.. Em metafilosofia examina-se a natureza dos problemas filosóficos, como se devem estudar as teorias e os argumentos da filosofia, ou que papel desempenha a interpretação de textos, o conhecimento do contexto histórico ou o domínio da lógica no trabalho filosófico. Por exemplo, quando se discute a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia está-se em pleno campo metafilosófico.» APC (Dicionário Escolar de Filosofia).
A tentação do grupo que está por detrás deste Dicionário Escolar de Filosofia e da revista "crítica na rede" e actual direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia é grande: como não domina os grandes temas do tronco e das raízes da árvore da filosofia - por exemplo: as ontologias fenomenológica de Heidegger e Sartre, a ontologia reísta de Xavier Zubiri e outras - ficam-se pela rama da lógica proposicional, do que pomposamente chamam lógica modal e procuram transformar estas últimas numa "metafilosofia", isto é, numa "segunda filosofia" que controle como um açaimo o lobo livre da grande filosofia especulativa, do pensamento por excelência. Desde quando é que discutir a utilidade, a historicidade ou a universalidade da filosofia é sair fora do campo da filosofia e constitui «metafilosofia»? Isso sempre foi filosofia e continuará a sê-lo.
É óbvio que podemos conceder que as ciências, lógica incluída, ou as religiões são uma metafilosofia - estão além da filosofia - mas não reconhecemos o sentido de "metafilosofia" que António Paulo Costa (APC) quer instituir aqui.
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