Eis um teste de filosofia do 11º ano de escolaridade em Portugal, evitando as perguntas de escolha múltipla em que o aluno coloca um X na hipótese que supõe estar certa e é dispensado de desenvolver ideias por palavras suas.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A
23 de Fevereiro de 2015. Professor: Francisco Queiroz
.”.O espaço não é um conceito empírico extraído de experiências externas…O entendimento faz a síntese do diverso da intuição empírica e é condicionado, ao passo que a razão é incondicionada» (Kant, Crítica da Razão Pura)
1) Explique estes pensamentos de Kant.
2) Explique, como, segundo a gnosiologia de Kant, se formam o fenómeno NUVEM, o conceito empírico de NUVEM e a antinomia «O mundo teve um princípio, o mundo nunca principiou».
3) Relacione, justificando:
A) Facto Bruto/ Facto Científico, racionalismo e obstáculo epistemológico em Gaston Bachelard.
B) Conjectura, indução (amplificante), verificação, corroboração e falsificabilidade na teoria de Popper.
C) Fenomenologia, Realismo Crítico de Descartes e Epokê.
CORRECÇÃO DO TESTE ESCRITO (COTADO PARA 20 VALORES)
1) O espaço é uma forma a priori da sensibilidade, isto é, uma estrututa subjectiva vazia onde se inserem os corpos materiais e que está antes de os objectos materiais nascerem com a experiência. O espaço é a parede externa e o grande reservatório externo da sensibilidade onde cabe o universo inteiro com planetas, galáxias e mares. Por isso, não é empírico, mas sim puro, anterior a toda a experiência (VALE DOIS VALORES). O entendimento, faculdade que pensa os fenómenos, sintetiza a diversidade das intuições empíricas em cada conceito empírico que produz: exemplo, as imagens de múltiplas árvores (fenómenos) formadas na sensibilidade ascendem ao entendimento que usando a categoria de pluralidade e, sobretudo, a de unidade, as reduz a um só conceito (imagem abstracta intelectual) de árvore. O entendimento é condicionado pelos fenómenos da sensibilidade - exemplo: o fogo, o céu, a água a correr, o movimento do sol no céu reflectem-se nos juízos e conceitos - e pela sua estrutura interna de regras: as categorias (unidade, pluralidade, totalidade, realidade, limitação, negação, etc) e os juízos puros (afirmativos, negativos, assertóricos, etc). A razão, faculdade que pensa livremente os númenos, a metafísica, é incondicionada: ela pode pensar que Deus gerou o mundo ou o inverso, que o mundo gerou Deus. É assim que a razão gera a antinomia - as afirmações contrárias entre si - «O mundo teve um princípio, o mundo nunca principiou» (VALE QUATRO VALORES).
2) Segundo a gnoseologia de Kant, o fenómeno nuvem forma-se na sensibilidade, no espaço exterior ao meu corpo físico, do seguinte modo: de '«fora» da sensibilidade, os númenos afectam esta fazendo nascer nela um caos de matéria (exemplo: madeira, ferro, areia, etc, em um magma) que as duas formas a priori da sensibilidade, o espaço (com figuras geométricas) e o tempo (com a duração, a sucessão e a simultaneidade) moldam, fazendo nascer uma ou mais nuvens. O entendimento, com as categorias de unidade, pluralidade, necessidade, confere consistência ao fenómeno nuvem.
O conceito de NUVEM forma-se no entendimento, faculdade que pensa mas não sente, do seguinte modo: a imaginação, situada entre a sensibilidade e o entendimento, transporta desde aquela a este as imagens de NUVEM e as categorias do entendimento de pluralidade e unidade recebem as diversas imagens e transformam-na numa só imagem abstracta, o conceito empírico de NUVEM.
A razão, dado que não se apoia em factos empíricos, e se aventura no desconhecido, especulando, gera a antinomia - as afirmações contrárias entre si - «O mundo teve um princípio, o mundo nunca principiou» sem conseguir chegar a uma conclusão. (QUATRO VALORES).
3) A) Facto bruto é um facto empírico, não meditado e questionado racionalmente. Exemplo: a cor da erva é verde e a do céu diurno é azul, o mármore é frio, a lã é quente. O racionalismo é a doutrina segundo a qual a razão é a fonte principal ou única de conhecimento desprezando as percepções empíricas. É pelo raciocínio (racionalismo) que o facto bruto é transformado em facto científico, isto é , num facto racional ou empírico-racional: a cor do céu diurno não é azul, o azul exste apenas no interior da nossa mente; o mármore não é frio, é bom condutor de calor e rouba calor à mão que nele pousamos, etc. O obstáculo epistemológico em Bachelard é todo o entrave ao conhecimento científico: a primeira impressão, o realismo natural ( o mundo exterior como parece ser: o céu é azul, o mármore é frio, etc, o preconceito do senso comum, a falta de tecnologia apropriada (exemplo: a falta de telescópios, microscópios, reagentes químicos, máscaras antigás, fatos de amianto, bússolas, aparelhos de refrigeração, etc.). Pode dizer-se que o racionalismo enfrenta o obstáculo epistemológico que, muitas vezes, é um facto bruto, uma primeira impressão sensorial.(VALE TRÊS VALORES).
3) B) Conjectura é uma suposição, uma hipótese. O conjecturalismo é a teoria de Popper segundo a qual as teorias das ciências empíricas, as leis induzidas, não passam de suposições, de hipóteses falíveis, pois é impossível verificar todos os casos concretos correspondentes a dada lei ou tese. Assim, por exemplo, a tese de que o átomo de enxofre tem 16 electrões é uma mera hipótese e não uma verdade indiscutível. A indução (amplificante) é a generalização de alguns exemplos empíricos similares de modo a construir uma lei universal e necessária. Popper rejeita este raciocínio indutivo dizendo que só seria legítimo se fosse possível a verificação de todos os casos correspondentes a essa lei induzida, mas só é possível a corroboração, isto é, a confirmação de alguns casos. O falsificacionismo é a teoria de Popper segundo a qual uma teoria «científica» deve ser falsificada, posta em questão, através de testes experimentais rigorosos e de discussão racional, e ser aceite provisoriamente enquanto resistir a esses testes. O método hipotético-dedutivo baseia-se na indução amplificante, inferência que Popper não aceita como válida, e tem quatro fases: observação, hipótese, dedução da hipótese e confirmação ou não. (VALE QUATRO VALORES).
3) C) O realismo crítico de Descartes sustenta que há um mundo real de matéria independente das mentes humanas e estas o captam de modo parcialmente ilusório: as cores, os sons, os sabores, a dureza, os sons (qualidades secundárias) não existem nas árvores, nas montanhas e em outros objectos fora de nós, só existem na nossa mente atingida, nos orgãos dos sentidos, por partículas vibratórias exteriores que nos fazem ver vermelha uma rosa que, de facto, é incolor; os tamanhos, as formas, a extensão são reais, são as qualidades primárias, reais, objectivas, dos corpos. A fenomenologia, ao contrário do realismo, não garante que exista um mundo de matéria real exterior à nossa mente: limita-se a postular que a mente e o mundo material são correlatos. Neste sentido, a fenomenologia faz uma epokê, isto é, uma suspensão do juízo (de existência): «Não sei se a cadeira e a mesa que ali vejo existem em si mesmas, fora da minha mente». (VALE TRÊS VALORES).
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Eis um teste de filosofia, o primeiro do segundo período lectivo do 11º B.
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B
14 de Fevereiro de 2014. Professor: Francisco Queiroz
“Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas…A razão é incondicionada, o entendimento é condicionado… O entendimento faz a síntese do diverso da intuição empírica… ” (Kant, Crítica da Razão Pura).
1-A) Explique, concretamente, cada uma destas frases de Kant.
1-B) Explique como, segundo a doutrina de Kant, se formam o fenómeno JANELA e o conceito empírico de JANELA.
2) Relacione, justificando:
2-A) Idealismo, realismo crítico, fenomenologia e doutrina de Parménides sobre o ser.
2-B) Método hipotético-dedutivo das ciências e teoria de Popper sobre as ciências.
2-C) Três tipos de substâncias na ontologia de Descartes e três tipos de ideias na gnosiologia de Descartes.
2-D) Anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend, medicina universitária e mito.
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CORREÇÃO DO TESTE (COTADO PARA UM TOTAL DE 20 VALORES)
1-A) Ao dizer «pensamentos sem conteúdo são vazios», Kant quer significar que o conteúdo, a matéria-prima do pensamento do entendimento, vem das intuições empíricas da sensibilidade, faculdade onde se formam os fenómenos ou objectos aparentes. Sem os dados da sensibilidade, o entendimento fica vazio. Só pela intuição empírica de «erva verde», o pensamento do entendimento consegue formar o conceito empírico de erva ou o juízo empírico «A erva é verde», por exemplo. Ao dizer «intuições sem conceitos são cegas» Kant queria dizer que a sensibilidade, lugar das intuições e fenómenos, é incapaz de interpretar o mundo físico que ela aberga, vê este mas não o pensa. (VALE DOIS VALORES) A razão é incondicionada porque, como faculdade das ideias e raciocínios, não está submetida à observação da natureza e às suas leis (sensibilidade+ entendimento), pensa livremente os númenos e pode até abdicar das categorias do entendimento como causa-efeito, etc. O entendimento, faculdade que pensa os fenómenos (exemplo: casa, rio, pássaro, céu) é condicionado porque está subordinado aos fenómenos da sensibilidade que ele pensa e está proibido de produzir juízos erróneos como por exemplo «As sementes de roseira geram pinheiros» porque isto viola as categorias de realidade e de necessidade. (VALE DOIS VALORES)
O entendimento, função que pensa os fenómenos, reduz à unidade, a um resumo, o diverso, as múltiplas intuições empíricas. Exemplo: depois de a sensibilidade ver centenas de rosas que ela mesma cria em si mesma, o entendimento recebe as imagens da sensibilidade e, munido de categorias ou conceitos puros como «unidade», «pluralidade», «totalidade», constrói uma única rosa intelectual, um conceito empírico de rosa, abstraindo de pormenores como a cor, o perfume, etc. (VALE UM VALOR)
1-B) O númeno afecta «do exterior» a sensibilidade e cria, nesta, um caos de matéria (madeira, terra, ferro, etc). Este caos é moldado pelo espaço que nele imprime figuras geométricas e pelo tempo que lhe confere duração, sucessão, simultaneidade. Assim nasce o fenómeno janela, na sensibilidade «externa», isto é, no espaço. O entendimento intervém na medida em que confere à janela o carácter de substância, de divisibilidade (em partes: caixilhos de madeira ou metal, vidros, fecho, etc). São enviadas ao entendimento imagens de diferentes fenómenos janelas - janelas rectangulares, redondas, etc - e as categorias ou conceitos puros do entendimento como pluralidade, unidade e realidade misturam e tratam essas imagens empíricas transformando-as num só conceito empírico, o de janela, abstraindo dos pormenores das janelas particulares. (VALE TRÊS VALORES)
2) A) A fenomenologia é um cepticismo moderado: cingindo-se aos fenómenos - o que é visível, o que se manifesta- ela não se pronuncia a favor do idealismo ontológico nem do realismo ontológico. O idealismo solipsista afirma que o mundo de matéria é irreal e interior a uma única mente, a minha. O realismo crítico sustenta que o mundo de matéria é real, exterior às mentes humanas, mas estas captam-no de forma distorcida (exemplo: as cores violeta, amarela e castanha não existem no mundo exterior, são fabricadas na minha mente a partir de movimentos vibratórios de partículas no exterior).
Em Parménides a percepção empírica é ilusão («Nascimento e morte, alteração das cores maravilhosas são ilusões» ), o pensar está a todo o instante centrado no ser uno, imóvel, homogéneo, imprincipial, invisível, esférico, eterno. É portanto, uma teoria racionalista, que não dá crédito às percepções empíricas mas sim ao raciocínio ("Só o pensar, o raciocínio e a intuição inteligível captam o ser"). Esse racionalismo pode ser um realismo crítico - a esfera do ser pode ter carácter material, pode ser formada por uma matéria imperceptível aos sentidos - ou um idealismo crítico como em Kant. (VALE TRÊS VALORES)
2) B) O método hipotético-dedutivo decompõe-se em quatro etapas: observação, hipótese (indução amplificante), dedução da hipótese e experimentação que confirma ou desmente a hipótese. Karl Popper opõe-se à indução amplificante, pois sustenta que a observação de casos particulares, por muito numerosos que sejam, não autoriza a formular leis gerais universais. Para Popper, as ciências empíricas são conjuntos de conjecturas, suposições, que podem ser temporariamente aceites enquanto não forem refutadas pelo debate de ideias e pelos testes experimentais que não verificam as leis mas apenas corroboram, isto é, confirmam exemplos. O princípio da falsificabilidade estabelece que só pode merecer o título de "ciência" provisória a doutrina que se exponha a testes (testabilidade) e propicie a sua auto-destruição ou rectificação. O conhecimento é uma perpétua aproximação à verdade, que nunca se atinge por completo. (VALE TRÊS VALORES)
2) C) Descartes admitia três tipos de ideias: adventícias, factícias e inatas. E três substâncias ontológicas: a res divina (Deus), a res cogitans (o pensamento humano) e a res extensa (o espaço com as figuras geométricas, os corpos na sua vertente de comprimentos, larguras e altura). Pode-se fazer corresponder a res divina Deus às ideias inatas porque estas são absolutamente seguras: as ideias de corpo, alma, Deus, figuras geométricas, números.
Por ideias adventícias, Descartes entendia as sensações e percepções empíricas. Exemplo: ver uma jarra de flores, saborear gaspacho, ouvir música. Ora, as percepções empíricas serão parcialmente ilusórias segundo Descartes: as cores (exemplo:o vermelho da rosa), os cheiros (exemplo: o perfume da rosa), os sabores, a dureza e a moleza, o calor e o frio, são qualidades secundárias, isto é não existem na realidade objectiva, no mundo material exterior ao corpo humano, surgem apenas na mente como ilusão, resultando do embate nos orgãos sensoriais de «poeiras» exteriores emanadas dos objectos. No entanto, as ideias adventícias, na medida em que reflectem as formas, o tamanho e o movimento dos objectos exteriores, isto é, as qualidades primárias, não transmitem ilusão mas sim verdade. Pode-se fazer corresponder as ideias adventícias à rex extensa.
Por ideias factícias, entende-se as ficções da imaginação (exemplo: uma sereia, um elefante com patas de leão, etc). Podemos fazê-las corresponder à res cogitans. (VALE TRÊS VALORES)
2) D) Anarquismo epistemológico de Paul Feyerabend é a doutrina segundo a qual não deve haver ciências contemporâneas - a biologia, a medicina, a física, a história, a filosofia, ensinadas nas universidades - em posição superior às ciências holísticas herdadas da antiguidade - astrologia, acupunctura, medicina natural, medicina hopi, alta magia, etc. Anarquismo significa autogestão, assembleias de base a decidir, ausência de chefes e de Estado. Epistemologia é reflexão sobre as ciências. A medicina universitária promove os diagnósticos com raios X, biópsias, o emprego massivo de vacinas, etc, que Feyerabend considera estupidez, tal como considera estúpida a teoria das causas locais da doença (Exemplo: «A doença de fígado nasceu no fígado devido a um vírus») porque a causa da doença é estrutural (holismo), geral, extensiva a todo o organismo. Feyerabend considerava os homens sapiens do mito como os criadores da cultura - as religiões, a magia, a ecologia, são frutos da mentalidade mítica, holística, ainda hoje presente em tribos índias afastadas da civilização tecnológica - e, portanto, mais inteligentes que os cientistas actuais que intoxicam a humanidade com drogas farmacêuticas e saturam o ar com radiações electromagnéticas (telemóveis, hi fi, etc) que causam cancros, perturbações nervosas e muitas outras doenças. (VALE TRÊS VALORES).
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Kant mergulhou, por vezes, no magma da incoerência. Escreveu:
«.. A causalidade incondicionada da causa no fenómeno denomina-se liberdade; a causalidade condicionada recebe o nome de causa natural no sentido mais estrito. O condicionado na existência em geral designa-se por contingente e o incondicionado por necessário. À necessidade incondicionada dos fenómenos pode chamar-se necessidade natural.» (Kant, Crítica da Razão Pura, páginas 387-388, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é de minha autoria).
Kant equivoca-se: por que motivo o condicionado na existência se designa por contingente e o incondicionado por necessário? A gestação de um bebé e o subsequente parto é uma sucessão de factos condicionados, como elos de uma cadeia de causas e efeitos, e é uma necessidade natural, uma lei vigente em todas as mulheres grávidas, lei que pode ter variações de pormenor. Como pode Kant chamar a esta necessidade (lei de causa-efeito uniforme, fixa) natural uma necessidade incondicionada dos fenómenos, se incondicionado significa livre? Percebe-se que Kant deseja exprimir que as leis da natureza apresentam falhas, excepções, e para esse efeito coloca a palavra incondicionada junto da palavra natureza. No entanto, os fenómenos não são livres na natureza, uma vez que são condicionados pelas categorias de necessidade e de causa-efeito do entendimento, na ontognosiologia kantiana.
Se à causa natural chama «causalidade condicionada» como pode, duas linhas abaixo, chamar-lhe «necessidade incondicionada dos fenómenos»? É o mesmo que dizer: o movimento de rotação da Terra em torno do seu eixo é causalidade condicionada e... causalidade necessária livre. Não bate a bota com a perdigota.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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