José Barata-Moura, catedrático da Universidade de Lisboa e filósofo marxista-leninista, escreveu:
«O idealismo teologicamente assistido do "esse es percipi" (ser é ser percebido) de George Berkeley começa, certamente, por operar a dissolução da materialidade do ser naquilo que, em alternativa, é designado por uma "colecção de ideias" (collection of ideas) - e por isso, se assume deliberadamente e efectivamente como um "imaterialismo";
«no entanto, por outro lado, este idealismo não pretende negar nem nega a "existência objectiva" (objectual) do mundo - requerida, nomeadamente, para que seja possível o empreendimento de recorte "empirista", a qual, nos respectivos termos, é feita depender, precisamente, da "percepção" continuada e providencial do seu "Criador" (José Barata-Moura, Lenine e a Filosofia, pag 69, Edições Avante!)
Que significa dizer que este idealismo de Berkeley não nega "a existência objectiva (objectual) do mundo? Que a matéria sob todas as formas - aquelas nuvens no céu, a torre de Belém e a cidade de Lisboa, os corpos das pessoas e animais, etc - está fora do meu corpo físico, ainda que seja uma "colecção de ideias" flutuando fora do meu corpo.. mas dentro do meu espírito-cosmos, que é tudo. Ora, isto é exactamente o que Kant pensava, embora nem Lenine nem Barata-Moura possuam uma noção clara disso.
A primeira confusão de Barata-Moura e do seu mestre Lenine é supor que o idealismo de Berkeley é distinto, no essencial, do idealismo de Kant. Não é. São a mesma coisa. As diferenças são apenas de grau de precisão de pormenores gnosiológicos: Kant fala de formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e do entendimento (categorias e juízos puros), Berkeley não.
Kant afirma a imaterialidade da matéria, diz que esta que não é real em si mesma, que é fenómeno e que está em nós e não é essencialmente heterogénea em relação à alma :
«Deve, haver, portanto, certamente algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria. Porém, na qualidade de fenómeno, não está fora de nós, mas sim em nós, como um pensamento, se bem que esse pensamento o represente, pelo chamado sentido externo, como situado fora de nós. Assim, a matéria não significa uma espécie de substância tão inteiramente diferente e heterogénea ao objecto do sentido interno (alma) mas somente fenómenos sem conformidade com os seus objectos (que em si mesmos nos são desconhecidos) cujas representações designamos por externas, por oposição àquelas que atribuímos ao sentido interno.»(Kant, Crítica da Razão Pura, nota de rodapé, pag 362, Fundação Calouste Gulbenkian; o negrito é posto por mim).
A matéria é fenómeno, é pensamento, é representação, isto é imagem tridimensional nascida no espaço ou sentido externo- isto é puro idealismo imaterialista, igual ao de Berkeley, para quem os objectos materiais são «colecções de ideias». Os corpos materiais são pensamentos-sensações que preenchem o espaço ou sentido externo - área fora do nosso corpo físico mas interior à esfera cósmica que é a nossa mente. Kant nunca explicou isto com a clareza que uso aqui mas o seu pensamento era, inequivocamente, como o descrevo.
Sem discernir claramente isto, em nota 123 da página 85 do seu livro "Sobre Lénine e a filosofia" Barata-Moura escreve:
«É neste quadro que resulta indispensável, designadamente, perceber certas diferenças que, embora num marco idealista, não deixam de separar o idealismo dos empiro-criticistas (de extracção berkeleyana) do idealismo transcendental de Kant:
" O idealismo (empirio-criticista) só começa quando o filósofo diz que as coisas são sensações nossas; o kantismo começa quando o filósofo diz: a coisa em si existe, mas é incognoscível » (LÉNINE, Materialismo e emprio-criticismo (1909), II, 2, pag 83; a citação em itálico é de Lenine).
Nesta citação em itálico de Lenine, este ilude responder à questão do que é a matéria na perspectiva de Kant (coisa para mim, substracto palpável dos fenómenos ou objectos empíricos) e salta para o númeno, a coisa em si. A diferença, na concepção de matéria, entre Kant e os empiro-criticistas que Lenine ataca é, essencialmente, nenhuma: para Kant, a matéria é um conjunto de sensações organizado e interpretado, no espaço e no tempo, pelas categorias do entendimento (substância, causalidade, realidade, etc); para Mach e Avenarius, a matéria é um conjunto de sensações.
Mas Lenine e Barata Moura não captaram a identidade essencial das posições de Kant, Berkeley e dos empirio-criticistas sobre a matéria e o idealismo imaterialista. Nem a "desonestidade" de Kant ao demarcar, falaciosamente, o seu idealismo transcendental (dogmático) do idealismo dogmático de Berkeley.
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Em «Que é uma coisa?» (Título original: Die Frage nach dem Ding), Martin Heidegger analisa a Crítica da Razão Pura de Kant, em particular a Estética Transcendental, teoria do espaço e do tempo e dos objectos (fenómenos) neles nascidos e situados. E aí denota não ter compreendido a perspectiva de Kant sobre a natureza dos objectos físicos e psíquicos, os primeiros exteriores ao corpo físico, os segundos interiores ou imanentes (imanente pode significar não só «interior» também «exterior muito próximo de», «colado a») ao mesmo corpo físico.
Na verdade, Heidegger não foca e ignora o seguinte pilar da ontognosiologia de Kant: a natureza biofísica - árvores, montanhas, céus, oceanos, casas, cidades, etc - está toda, sem qualquer redução de tamanho, dentro do eu do sujeito perceptivo. Heidegger, como aliás mais de 95% dos catedráticos de filosofia actuais, nunca afirma esta tese capital de Kant. Este sustentou que a matéria é irreal em si mesma, mas Heidegger passa ao lado desta concepção idealista imaterialista que, verdadeiramente, não compreendeu.
O que Heidegger escreve é o que a generalidade dos intérpretes superficiais da gnoseologia de Kant afirmam:
«"Coisa" é o objecto da nossa experiência. Na medida em que a natureza é a mais alta representação do que é possível experimentar, a coisa deve ser, em verdade, concebida como coisa da natureza. Kant, de facto, distingue a coisa, da coisa-em-si. Mas a coisa-em-si, quer dizer independente de nós e retirada de qualquer relação de manifestação para connosco, permanece, para nós mesmos, um mero X. Em cada coisa como fenómeno pensamos inevitavelmente esse X; mas apenas a coisa da natureza, que nos aparece, é verdadeiramente determinável e possível de conhecer, a seu modo, como coisa. Resumimos, a partir de agora, em duas proposições, a resposta de Kant acerca da coisa acessível para nós; 1) a coisa é uma coisa da natureza; 2) a coisa é o objecto de uma experiência possível. Aqui, cada palavra é essencial e é-o, de facto, no sentido determinado que obteve através do trabalho de Kant.» (Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Edições 70, Pág. 129)
Note-se que Heidegger escamoteia aqui a natureza da natureza biofísica, isto é a sua coisalidade: não diz se as árvores e as planícies são materialmente reais ou apenas ideias, percepções tridimensionais ilusórias a flutuar fora do corpo do sujeito (esta segunda é a posição de Kant, doa a quem doer).
E o equívoco de Heidegger é patente na seguinte frase:
«Tendo em vista a determinação kantiana da essência da coisa, como coisa da natureza, podemos avaliar que, desde o princípio, Kant não levanta a questão da coisalidade das coisas que nos rodeiam. Para ele, tal questão não tinha nenhuma importância. O seu olhar dirige-se imediatamente à coisa como objecto da ciência físico-matemática.» (Martin Heidegger, Que é uma coisa?, Edições 70, Pág. 130)
EM KANT, SER CASA É SER INTUÍDO, CONTRA O QUE DIZ HEIDEGGER
Heidegger não entendeu que os objectos físicos, na teoria de Kant, são em absoluto constructos, construções dentro do balão cósmico que é a sensibilidade do sujeito que não estão, de nenhum modo, fora, além desta, como «númenos» ou como objectos materiais. Por isso escreveu:
«A casa é intuída na medida em que é encontrada; mas ser casa não significa ser intuído. Kant nunca teria determinado a essência da casa deste modo». (Martin Heidegger, «Que é uma coisa?», Pág 192).
Equivoca-se Martin Heidegger. Na doutrina de Kant «ser casa» é «ser intuído» - exactamente como na doutrina de Berkeley «ser é ser percebido» - caso contrário Kant seria realista e não idealista transcendental.
O fenómeno casa não é senão um conjunto de intuições «objectivas», geradas na sensibilidade pura, isto é no espaço e tempo a priori com uma matéria (cores, sons, cheiros, dureza, substância) a posteriori nascida na mesma sensibilidade sob o impacto exterior do númeno.
«Assim, quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc, e igualmente o que pertence à sensação, como seja, impenetrabilidade, dureza, cor, etc, algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura que se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Pág 62; o negrito é de minha autoria).
Que é um corpo físico, para Kant? Um conjunto de linhas, figuras, sem substância (madeira, ferro, pedra ou outra coisa) existentes na intuição pura que é o espaço ou «meu eu exterior». A extensão e a figura de uma nuvem ou de um moinho de vento, por exemplo, pertencem, de acordo com o texto acima, à intuição pura - ao formal-sensível - que forra as paredes da sensibilidade. Estamos, pois, em puro idealismo ou imaterialismo: os corpos da natureza são figuras matemáticas, preenchidas pela nossa imaginação subjectiva com cores, conteúdos materiais, etc. A matéria é pura sensação, dado subjectivo. Logo, toda a natureza biofísica, material, é um vasto aglomerado de sensações constituintes dos fenómenos ou objectos para mim, sejam estes oceano, montanha, floresta, planície ou céu - facto que Heidegger passa em silêncio. A matéria, para Kant, não é real em si mesma fora do sujeito: a matéria está fora do corpo físico do «eu» mas dentro do imenso eu-espírito. Isto não é frisado nem compreendido com clareza por Heidegger nem pela generalidade dos intérpretes de Kant. Uma honrosa excepção é Hegel, que escreveu a propósito da matéria e das duas forças, atracção e repulsão, que a impregnam:
«Además, Kant ha enseñado expresamente que no hay materia en si misma, y después de haber dotado, sí se puede decir así, a la materia de estas dos fuerzas, ha enseñado también que se debe tener su unidad exclusivamente en ellas.» (George W.F. Hegel, Lógica I, Ediciones Folio, Pág. 167; a letra negrita é posta por mim).
A matéria não existe em si mesma - eis uma tese kantiana que a imensa maioria dos intérpretes de Kant não assimilou.
PARA KANT, O ESPAÇO E OS OBJECTOS MATERIAIS NELE EXISTENTES SÃO IRREAIS, COMO UM FILME PROJECTADO NA TELA DA MINHA SENSIBILIDADE EXTERIOR AO MEU CORPO
Não é verdade, pois, que Kant não levante a questão da coisalidade das coisas que nos rodeiam:
«..o próprio espaço não é outra coisa que simples representação, portanto nele apenas pode haver de real o que é representado...» ( Kant, Crítica da Razão Pura, pag.354, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrita é nossa)
«.. o próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós ( no sentido transcendental) porque o próprio espaço nada é fora da nossa sensibilidade. Por conseguinte, o idealista mais rigoroso não pode exigir que se prove que à nossa percepção corresponda o objecto exterior a nós (no sentido estrito)... O real dos fenómenos externos é, portanto, apenas real na percepção e não pode sê-lo de nenhuma outra maneira (CRP, página 54-355) .
O espaço não é mais do que a forma de todos os fenómenos dos sentidos externos, isto é, a condição subjectiva da sensibilidade, única que permite a intuição externa (CRP, pág. 67).
O espaço não representa qualquer propriedade das coisas em si, nem essas coisas nas suas relações recíprocas; quer dizer, não é nenhuma determinação das coisas inerente aos próprios objectos e que permaneça, mesmo abstraindo de todas as condições subjectivas da intuição (CRP, pág. 67).
Isto significa apenas o seguinte: o espaço, isto é, o mundo da natureza terrestre, com seus continentes e oceanos, e o espaço cósmico sideral, com estrelas e galáxias, só existe em mim, possui uma coisalidade ideal e perceptiva, meramente mental. Por outras palavras, o meu eu (mental) engloba o mundo inteiro como uma imensa redoma de vidro e produz esse mesmo mundo, produz inclusive o meu minúsculo organismo físico, dentro de si, com as ferramentas das intuições puras da sensibilidade (o espaço- extensão e figuras geométricas - e o tempo, que sou eu mesmo, a priori) e do entendimento ( os conceitos puros ou categorias).
Kant trata, pois, da coisalidade dos fenómenos, das coisas da natureza, ao contrário do que postulou Heidegger: para Kant, o espaço e a matéria nele existente (árvores, casas, animais, nuvens, etc) nada são fora de nós, isto é, são ideias ou percepções a flutuar dentro da nossa mente que se estende até aos confins do universo e é a realidade por si (além dos númenos: Deus, almas imortais, mundo não físico como totalidade, liberdade).
Heidegger não viu isto e interpretou Kant como se este fosse um realista ontológico que sustentasse haver um mundo de matéria real fora do nosso espírito, embora oculto na sua essência («númeno»). Esta é aliás a interpretação que mais de noventa e cinco por cento dos catedráticos de filosofia de todo o mundo dão da ontognoseologia de Kant: em termos simples, dizem, por exemplo, que há um copo de vidro que vejo e é fenómeno e um copo de vidro real, material, incognoscível, que é númeno; ora, contraponho eu, não há nenhum copo de vidro númeno, porque, de acordo com Kant, toda a matéria é fenómeno, palpável, visível, e ao mesmo tempo ilusória, não real em si mesma (idealismo transcendental).
O idealismo de Kant é, no fundamental, o mesmo que o idealismo de George Berkeley - um idealismo ou irrealismo da matéria -, ainda que nem Kant tenha querido reconhecer isso nem Heidegger se tenha apercebido disso.
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