Schopenhauer estabeleceu uma diferença entre a ideia, que em Platão é um singular, copiável de forma degradada, e o conceito que, em Aristóteles, é essência (dispersível) ou género supra-essencial, isto é, uma forma que se multiplica sem degradação. O conceito-forma está em todas as coisas concretas que lhe correspondem - Aristóteles chega a dizer que não há esfera fora das esferas de bronze, ferro e outras existentes - mas a ideia não.
Em Schopenhauer, nem a ideia nem o conceito guiam o desenvolvimento histórico concreto, à maneira da doutrina de Hegel que estabelece degraus que as sociedades vão percorrendo: mundo oriental (só um homem livre), mudo greco-romano (alguns homens livres) mundo cristão transformado pela reforma luterana e pela revolução francesa (todos os homens são livres), eis o travejamento hegeliano da história. Schopenhauer não embarca nesta hierarquização dos estados da história, insiste no individual e imprevisível.
«Sendo a matéria da arte a ideia e a da ciência o conceito vemos que ambos se ocupam do que existe sempre e sempre da mesma maneira, não do que agora é e agora não é, agora é assim e agora é de outra forma: por isso ambos têm a ver com aquilo que Platão estabeleceu como o objecto exclusivo do verdadeiro saber. A matéria da história é, ao contrário, o individual na sua individualidade e contingência, o que é uma vez e logo não volta a ser, as combinações efémeras de um mundo humano que se move como as nuvens com o vento,e que com frequência se transformam completamente devido ao mais pequeno acidente. Desse ponto de vista, a matéria da história apresenta-se-nos como um objecto quase nada digno de uma séria e esforçada consideração por parte do espírito humano; um espírito humano que, precisamente porque é tão perecível, deveria escolher para seu estudo o imperecível» (Arthur Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, Complementos, pag 493, Editorial Trotta, Madrid).
Schopenhauer é, pois, uma das fontes do existencialismo, doutrina segundo a qual o rio da existência humana de cada um escolhe, caprichosamente ou não, o leito da essência. As nossas acções ou actos-existência fazem o nosso carácter-essência e não o inverso.
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No «Tratado da Natureza humana», David Hume expôs a sua tese empirista fundamental de que todas as nossas ideias derivam das impressões sensoriais. Frisou, no entanto, que há excepções, o que esbate ou anula, em certa medida, a tese emprirista primitiva de que «nada está no intelecto que não tenha estado previamente nos sentidos». Hume escreveu:
«Imaginemos pois uma pessoa que durante trinta anos gozou da visão e se familiarizou perfeitamente com todas as espécies de cores , excepto, por exemplo, uma determinada cambiante de azul que o acaso jamais lhe proporcionou encontrar. Coloque-se diante dessa pessoa todas as cambiantes da referida cor, com excepção de tal cambiante, numa transição gradual, em ordem descendente da mais escura para a mais clara; é evidente que notará uma lacuna onde falta essa cambiante e sentirá que existe nesse lugar maior distância entre as corescontíguas do que em qualquer outro. E agora pergunto se será possível essa pessoa, usando a sua imaginação, suprir essa deficiência para alcançar a ideia dessa cambiante que os seus sentidos jamais lhe transmitiram? Julgo que poucas pessoas serão de opinião que não é possível e isto pode servir de prova de que as ideias simples nem sempre derivam das impressões correspondentes; contudo, o caso é tão particular e tão singular que quase não vale a pena notá-lo e não merece que, só por causa dele, modifiquemos a nossa máxima geral».
«Mas, além desta excepção, talvez não seja descabido notar aqui que o princípio da prioridade das impressões sobre as ideias deve entender-se com outra limitação, a saber: que assim como as nossas ideias são imagens das nossas impressões, assim também podemos formar ideias secundárias que são imagens das ideias primárias, conforme resulta deste mesmo raciocínio a respeito delas. Falando com propriedade, isto não é tanto uma excepção à regra como a sua explicação. As ideias produzem as imagens de si mesmas em novas ideias; mas, como se supõe que as primeiras ideias derivam de impressões, continua ainda a ser verdade que todas as nossas ideias simples procedem, mediata ou imediatamente, das impressões que lhes correspondem.»
(David Hume, Tratado da natureza humana, pag 34-35, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrita é por mim colocada).
Se considerarmos que as ideias de pai, juíz e imperador absoluto são ideias primárias, podemos supor que a ideia de Deus, um ser espiritual regente do universo, todo poderoso e apto a julgar os actos dos homens, é uma ideia secundária que se formou, na imaginação, pela combinação daquelas três ideias primárias.
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Na Historia de la Filosofia escrita por Guillerme Fraile afirma-se, de forma surpreendente, que Platão não tinha poder de abstracção para extrair de uma multiplicidade de casos particulares uma essência universal:
«Platón no asciende de lo particular a lo universal, sino de los particular (seres ontológicos individuales del mundo sensible) a lo particular (seres ontológicos individuales del mundo suprasensible), de lo móvil a lo inmutable, de lo visible a lo invisible, de lo sensible a lo inteligible. No hay abstracción en sentido psicológico, sino solamente un intento de ascensión, de elevación, de trascendencia, del mundo sensible al suprasensible de las ideas.» (Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, II, 1º, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, Pág. 357; a letra a negrito é nossa).
A leitura do magnífico diálogo «Parménides ou das Ideias» de Platão desmente esta apreciação obtusa de Guillhermo Fraile:
«- Que é que se opõe, Parménides, a que a ideia entre integralmente em cada um dos múltiplos objectos? - volveu Sócrates.
- Desse modo a ideia, una e idêntica, encontrar-se-ia em toda a integridade e simultaneamente, numa multidão de objectos separados uns dos outros; por consequência ficaria separada de si mesma.
- Não - respondeu Sócrates; - assim como o dia, embora seja uno e idêntico, existe simultaneamente em muitos lugares diferentes, sem se separar de si mesmo, também cada ideia estaria ao mesmo tempo em muitas coisas, sem deixar, por isso, de ser uma só e mesma ideia.» (Platão, Parménides ou das Ideias, Editorial Inquérito, Pág 25).
Este texto revela que Platão possuía plena capacidade de abstracção especultativa ao dizer que cada ideia una se dá na multiplicidade das coisas que lhe correspondem.
Se Platão singularizou cada ideia do mundo inteligível, não é por falta de poder de abstracção, mas justamente o oposto: é pela singularização que o aristocrata, o depositário do valor superior em qualquer área - na pintura, na filosofia, na astrofísica, na biologia, etc - se distingue da multidão. Ora as ideias de Belo, Justo, Bom teriam de ser paradigmas únicos, em si mesmas, que no entanto se oferecem à multiplicidade dos seres no mundo do Outro pela participação.
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