.Eis um teste do 11º ano de filosofia, o primeiro do primeiro período lectivo, numa escola secundária de vanguarda no campo da filosofia e em outros, no Baixo Alentejo e em Portugal. .
Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA C
26 de Outubro de 2015.
Professor: Francisco Queiroz
I
“Alguns operários são sindicalistas.».
Alguns sindicalistas são marxistas.
Logo, os operários são marxistas..”
1-A) Indique, concretamente, três regras do silogismo formalmente válido que foram infringidas na construção deste silogismo.
1-B) Indique o modo e a figura deste silogismo
2) Construa o quadrado lógico das oposições à seguinte proposição«Os alentejanos são bons cantores».
3) Distinga realismo crítico de Descartes do idealismo não solipsista subjetivo e da fenomenologia.
4) Aplique o princípio do terceiro excluído ao conjunto destas 3 correntes.
5) Tendo como primeira premissa a proposição «Se for ao aeroporto de Beja viajo de avião», construa:
A) Um silogismo condicional modus ponens
B) Um silogismo condicional modus tollens.
6) Construa um silogismo disjuntivo Tollendo/ ponens tendo como premissa inicial a frase «Ou és sportinguista ou és benfiquista»
7) Distinga a intuição inteligível, do raciocínio e do conceito empírico.
CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES
1-A) Três regras infringidas da validade do silogismo acima exposto foram: de duas premissas particulares (alguns...alguns) nada se pode concluir; nenhum termo pode ter maior extensão na conclusão do que nas premissas (alguns operários / os (todos) operários); o termo médio (alguns sindicalistas) tem de ser tomado pelo menos uma vez universalmente. (VALE TRÊS VALORES).
1-B) O modo do silogismo é IIA e a figura é PS (predicado e sujeito é a posição do termo médio nas premissas) ou 4ª figura.(VALE DOIS VALORES).
2) O quadrado lógico é o seguinte:
Os alentejanos são bons cantores Nenhum alentejano é bom cantor
(TIPO A- Universal Afirmativa) (TIPO E- Universal Negativa)
Alguns alentejanos são bons cantores.Alguns alentejanos não são bons cantores
(TIPO I - Particular Afirmativa) (TIPO O - Particular negativa)
VALE TRÊS VALORES
3) O realismo crítico de Descartes é a teoria qiue sustenta que há um mundo real de matéria exterior às mentes humanas composto de uma matéria indeterminada, sem peso nem dureza/moleza, apenas formado de figuras geométricas, movimento, números (qualidades primárias, objetivas), sendo subjectivas, isto é exclusivamente mentais, as cores, os cheiros, os sabores, as sensações do tacto, o calor e frio (qualidades secundárias, subjectivas). O idealismo não solpsista ou pluralista e subjectivo é a teoria que sustenta que o mundo material é ilusório, existe apenas dentro de uma multiplicidade de mentes humanas e cada uma delas constrói esse mundo de modo diferente das outras ( «A torre de Belém que eu invento/vejo não é igual à torre de Belém que tu inventas/ vês), A fenomenologia é a ontologia que sustenta não saber se o mundo material subsiste ou não fora das mentes humanas. (VALE CINCO VALORES).
4) O princípio do terceiro excluído diz que uma coisa ou uma corrente de pensamento pertence ao grupo A ou ao grupo não A, excluindo a terceira hipótese. Comparando as três correntes da pergunta anterior pode enunciar-se assim: ou se é realista, afirmando a certeza de um mundo material extramental, ou não se é realista negando isso (idealismo) ou duvidando disso (fenomenologia). (VALE DOIS VALORES)-
5) a) Se for ao aeroporto de Beja, viajo de avião.
Fui ao aeroporto de Beja.
Logo, viajei de avião. (VALE UM VALOR)
5.b) Se for ao aeroporto de Beja, viajo de avião.
Não viajei de avião.
Logo, não fui ao aeroporto de Beja (VALE UM VALOR)
6) Ou és sportinguista ou és benfiquista.
Não és sportinguista.
Logo és benfiquista. (VALE UM VALOR)
7) A intuição intelígivel é uma apreensão imediata de algo metafísico, invisível, que pode até não ser real. Exemplo: a intuição de Deus, dos quarks e leptons, etc. O raciocínio é uma articulação lógica de juízos que desembocam numa conclusão. Exemplo: As lareiras acesas deitam fumo/ Há fumo a sair pela chaminé daquela casa/ Logo, a causa deve ser uma lareira com lenha ou carvão a arder. O conceito empírico é uma ideia nascida das percepções empíricas, do que vemos, tocamos, ouvimos. Exemplo: a ideia de girassol, nascida de eu ter visto um campo de girassóis (VALE DOIS VALORES).
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Eis um modelo de teste de filosofia para o 11º ano de escolaridade para o final do primeiro período letivo, que me agrada bastante.
TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA A
I
« As impressões podem dividir-se em duas categorias: as de sensação e as de reflexão. A primeira categoria surge originariamente na alma, a partir de causas desconhecidas. A segunda é, em grande parte derivada das nossas ideias, na seguinte ordem: primeiro uma impressão atinge os nossos sentidos e faz-nos perceber calor ou frio, sede ou fome, prazer ou dor de qualquer espécie. Desta impressão, a mente tira uma cópia…» David Hume (Tratado do Entendimento Humano)
1) É a teoria de David Hume um realismo gnosiológico? Ou outra corrente? Justifique, explicando, em particular, a expressão «a partir de causas desconhecidas».
2) Explique o que são as ideias, segundo David Hume, como se formam – em particular as ideias de “eu” e “substância”.
3) Exponha e problematize as sete relações filosóficas ou de conhecimento segundo Hume e o papel que desempenham.
4) Exponha os quatro passos do racionalismo de Descartes, que celebrizaram este filósofo, iniciados na dúvida hiperbólica, apontando alguma eventual incoerência..
5)Relacione, justificando:
A) Conhecimento por contato e conhecimento proposicional, segundo Ryle e Russel, e racionalismo/ empirismo.
B) Indução, por um lado, e falácias depois de por causa de, da composição e da derrapagem, por outro lado.
C) Lei do salto qualitativo e binómio percepção empírica/conceito.
6)Considere o silogismo :
«Alguns cubenses não são andaluzes».
«Os cubanos não são cubenses ».
«Os andaluzes não são cubanos».
A)Identifique o modo e a figura do silogismo. Justifique.
B) Identifique e enuncie, em concreto, duas leis do silogismo regular formalmente válido que foram infringidas no silogismo acima.
CORREÇÃO DO TESTE (COTAÇÃO MÁXIMA. 20 VALORES)
1) A teoria de David Hume não é um realismo gnosiológico porque não postula existir um mundo de objetos materiais fora da nossa mente. Ou é um idealismo similar ao de Kant e pioneiro em relação a este, uma vez que afirma que os objetos materiais como árvores, montanhas, animais, etc, são meras representações em nós, de «causas desconhecidas» exteriores. Ou é um ceticismo fenomenológico na linha de Pírron e Carnéades que se limita a descrever as aparências fazendo a epochê (suspensão do juízo) .
2) As ideias, segundo Hume, são junto com as impressões, as duas espécies de perceções que o espírito humano forma. Toda a ideia deriva de uma impressão, seja esta uma impressão sensível - exemplo: a ideia de maçã é uma cópia pálida das impressões sensíveis que são o objeto maçã, objeto esse não exterior ao espírito - ou seja uma impressão de reflexão- exemplo: a ideia de Deus é composta na base de impressões de reflexão e ideias como as de governante supremo, ser bondoso, criador, ser justo. Há ideias complexas e ideias simples. David Hume é um empirista:
«Não podemos formar uma ideia exata do gosto de um ananás, antes de realmente o saborearmos» (David Hume, Tratado do Entendimento Humano, pag 33, Fundação Calouste Gulbenkian).
«As ideias produzem as imagens de si mesmas em novas ideias; mas, como se supõe que as primeiras ideias derivaram de impressões, continua ainda a ser verdade que todas as nossas ideias simples procedem, mediata ou imediatamente, das impressões que lhes correspondem.» (David Hume, ibid, pag 35).
As ideias de "substância" e de "eu" derivam da ideia filosófica ou categoria de identidade, que supõe a permanência, a continuidade, e da relação filosófica de causação (determinismo, princípio segundo o qual as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos), entre outras. Não existe a substância, como por exemplo, maçã: a cor amarela, a forma redonda, o pedúnculo, o sabor açucarado são impressões sensíveis que se conjugam e, combinadas pela imaginação, fornecem a noção unitária ou ideia de substância maçã.
3) David Hume escreveu:
«Há sete espécies diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias.» (David Hume, Tratado do Entendimento, Humano, pag 103).
Estas sete relações são categorias ou estruturas lógico-ontológicas que, diferentemente do realismo aristotélico, se situam na mente do sujeito, no espírito humano. Se não possuíssemos em nós, a priori, a relação de semelhança não conseguiríamos perceber que um pinheiro e um sobreiro são coisas semelhantes enquanto espécies do género árvore. Se não possuíssemos em nós a relação de tempo não distinguiríamos entre o ontem, o hoje e o amanhã. As três relações mais estáveis, segundo Hume são as de identidade, tempo e lugar e causação.
4) Os quatros passos gnosiológicos que celebrizaram Descartes a partir da dúvida hiperbólica são os seguintes:
1º CETICISMO ABSOLUTO - Se quando estou a dormir me parecem verdadeiros os meus sonhos, quem me garante que, acordado, não estarei a sonhar? Assim tudo se me afigura duvidoso, ilusório: o mundo que vejo, os outros, as teorias da matemática e das ciências, Deus, o meu corpo e eu mesmo.. Não tenho certeza de nada.
2º IDEALISMO MONISTA E SOLIPSISTA - Neste mar de dúvidas, surge-me a primeira certeza, uma ideia evidente: «Eu penso, logo existo» (COGITO ERGO SUM). Existo, como mente, não como corpo. Assim, sou único e sou tudo.
3º IDEALISMO PLURALISTA - Se existo e tenho a perfeição de pensar, há-de existir alguém mais perfeito que eu que me colocou essa perfeição: Deus, um espírito sumamente bom e perfeito, fonte da criação.
4º REALISMO CRÍTICO- Se Deus existe e é infinitamente bom e verdadeiro, não consentirá que eu me engane em tudo o que vejo, sinto e toco: assim, embora as cores, sons, cheiros, sabores, sensações de duro e mole, de calor e frio, não existam nos objetos fora de mim mas apenas no meu cérebro, há, fora de mim, um mundo de matéria indeterminada dotado de corpos extensos com as respetivas formas e tamanhos, números e movimentos.
A problematização destes argumentos oferece múltiplas vias. Eis uma delas: se Deus é o garante da verdade por que razão admite que nos enganemos sobre cores, cheiros, sons, dureza dos objetos mas não nos deixa enganar sobre as formas, os tamanhos e os movimentos? Eis outra: como sei que só possuo um certo grau de perfeição e não a perfeição toda, a ponto de remeter o que me falta para a existência de um Deus criador?
5) a) O conhecimento por contato, segundo Ryle e Russell, é o conhecimento direto das coisas, por via sensorial - exemplo: conheço a ponte sobre o rio Guadiana ao olhá-la, junto dela, e ao atravessá-la - e parece articular-se com empirismo, doutrina segundo a qual as nossas ideias são provenientes, direta ou indiretamente, das perceções sensoriais. O conhecimento proposicional - definição algo ambígua, porque há conhecimento proposicional por contato; exemplo: «Estou a ver a água do rio a correr, límpida...» - articular-se-ia com o o racionalismo, corrente segundo a qual as nossas ideias são provenientes na totalidade ou em grande parte da razão, do raciocínio, mas também se articularia com o empirismo como se vê no exemplo que acabo de dar.
B) As três falácias referidas representam formas de indução pouco sólida, isto é, partem de um ou vários dados empíricos e generalizam: a falácia depois de, por causa de, que associa com caráter determinista, de vículo necessário dois acontecimentos vizinhos por casualidade (exemplo: vi um gato preto e duas horas depois perdi o porta moedas, uma semana depois voltei a ver um gato preto e horas depois bateram-me no automóvel, ver um gato preto dá-me azar); a falácia de composição atribui ao todo uma qualidade da parte (exemplo: Luisão, jogador do Benfica, é muito alto, logo toda a equipa de futebol do Benfica é feita de jogadores muito altos); a falácia da derrapagem encadeia sucessivamente ideias que vão perdendo gradualmente o encadeamento lógico-material entre si, o que é visível na conclusão (exemplo: vou a Madrid e visito a Puerta del Sol; na Puerta del Sol, encontro uma dinamarquesa loira a quem falo; a dinamarquesa leva-me a uma discoteca e vai comigo para o hotel; no hotel entramos na sala do bar e há um apagão geral em Madrid; logo, se vou a Madrid há um apagão elétrico geral).
5) c) A lei do salto qualitativo estabelece que uma acumulação lenta e gradual de um aspeto num fenómeno ou ente gera, num dado instante, um salto de qualidade desse fenómeno ou ente. Vou acumulando percepções empíricas de pinheiros, faias, sobreiros, isto é, imagens visuais de árvores e em seguida dá-se o salto qualitativo - a imagem presente nos sentidos é substituída por uma imagem intelectual- forma-se em mim o conceito ou representação abstrata de árvore.
6) a) Modo do silogismo (classificação deste com as letras A,E,I,O segundo a qualidade e a quantidade em cada uma das 3 proposições que o compõem): OEE. E significa proposição universal negativa e O significa proposição particular negativa.
Figura do silogismo (classificação deste segundo a posição do termo médio nas premissas, como sujeito ou predicado): primeira figura.
6) B) De duas premissas negativas nada se pode concluir.
A conclusão segue sempre a parte mais fraca: havendo uma premissa particular («Alguns cubenses...») a conclusão deverá ser particular e não universal como sucede («Os andaluzes não são...»).
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O que é a fenomenologia? Não tem uma definição única, ainda que a palavra venha do grego phainomenón, que significa o que aparece, o que se mostra. Vê-se como a generalidade dos "Dicionários de Filosofia" esbraceja, como náufrago no mar da imprecisão, ao definir esta corrente filosófica.
MÉTODO FENOMENOLÓGICO NÃO É O MESMO QUE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA
É célebre, reproduzido em vários manuais de filosofia, o seguinte texto de Nicolai Hartmann:
«Análise do fenómeno do conhecimento
(Fenomenologia do conhecimento)
a) O FENÓMENO FUNDAMENTAL DA APREENSÃO
I) «Em todo o conhecimento, um «cognoscente» e um «conhecido», um sujeito e um objecto encontram-se face a face. A relação que existe entre os dois é o próprio conhecimento. A oposição dos dois termos só pode ser suprimida: esta oposição significa que os dois termos são originariamente separados um do outro, transcendentes um ao outro.» (...)
4) «A função do sujeito consiste em apreender o objecto; a do objecto consiste em poder ser captado pelo sujeito e sê-lo efectivamente.»
5) «Considerado do lado do sujeito, esta "apreensão" pode ser descrita como uma saída do sujeito da sua própria esfera e como uma incursão na esfera do objecto, a qual é para o sujeito transcendente e heterogénea. O sujeito apreende as determinações do objecto e captando-as, introdu-las, fá-las entrar na sua própria esfera.»
6) «O sujeito só pode captar as propriedades do objecto fora de si mesmo, porque a oposição do sujeito e do objecto só desaparece na união que o acto de conhecimento estabelece entre eles: mas ela permanece indestrutível.»
(Nicolai Hartmann, Les principes d´une méthaphisique de la connaissance, Tome I, pag 87-88, Aubier, Editions Montaigne, Paris, 1945; o negrito é posto por mim).
Sustento que esta descrição da fenomenologia do conhecimento feita por Hartmann não é fenomenologia, no plano ontológico, mas sim realismo natural. ou realismo crítico, uma vez que admite que o sujeito e o objeto (físico) são originariamente transcendentes um ao outro..
Há dois sentidos da palavra fenomenologia:
A) Sentido gnoseológico: método de conhecimento e aí é apreensão directa, intuitiva, das essências, prescindindo do ser, do plano ontológico-existencial. É o sentido que Husserl lhe atribuiu, classificando o método de "idealismo".
B) Sentido ontológico: posição equidistante do idealismo imaterialista e do realismo. A ontologia fenomenológica reconhece o sujeito e os objetos físicos como realidades semitranscendentes entre si, indissociáveis. Imagem imperfeita: a fenomenologia é dois irmãos siameses, sujeito e objeto, não separados cirurgicamente.
O apagamento do sujeito e sua fusão instantânea com o objecto, alienando-se nele, apontado no texto acima, parece uma concepção muito hegeliana do "eu". A consciência é uma lente transparente que serve para ver e captar o que está além dela, segundo Hartmann. Não tem conteúdos. Mas a quem dá a conhecer? A um sujeito que seria o umbral da porta da consciência. O importante é que a tese de Hartman consiste em que o conhecimento é um processo de acção sobre um objecto real, transcendente à consciência, de contacto com esse objecto, processo que depois é revertido na consciência na forma de objeto intencional.
Em minha opinião, é impossível o sujeito sair de si mesmo: mesmo que o espírito saia do corpo para captar as propriedades do objeto não sai de si mesmo, é sempre espírito ao entrar em contato com uma realidade exterior que lhe é estranha e que não apreende fotograficamente.
Hartman rema contra o idealismo imaterialista e o realismo ao afirmar:
«A fenomenologia contesta o "princípio da consciência". A consciência não está fechada sobre si mesma. É uma insensatez dizer que a consciência pode captar apenas os seus próprios conteúdos. O próprio conceito de conteúdo da consciência está errado. Não há conteúdo. Não há mais criação realizada pelo conhecimento, imagem do objecto na consciência, A expressão "Tenho qualquer coisa na consciência" é falsa. Todo o acto de consciência é intencional; consiste na captação de qualquer coisa; este qualquer coisa está sempre para além do acto ou do estado de consciência; isso é válido, mesmo se se trata de um objeto interno». Em suma, esta qualquer coisa é sempre um objecto intencional.» (Nicolai Hartmann, Les principes d' una metaphisique de la connaissance, pag 156, Aubier, Paris, 1945; o negrito é posto por mim)
E sobre o objeto intencional - exemplo: a imagem de uma casa que temos no nosso cérebro enquanto estamos a olhar a casa - escreve sobre a dificuldade em situá-lo:
«Apercebemo-nos imediatamente que aquém da esfera do sujeito, há imediatamente qualquer outra coisa, uma "criação": pouco importa evidentemente que se chame "imagem" ou "representação" ou outra coisa; pouco importa que se dê à esfera em que se encontra esta criação o nome de "consciência" ou qualquer outro. Mas quando se captou esta distinção fundamental para o fenómeno do conhecimento, é, pelo contrário, muito difícil precisar a que esfera pertence este objeto intencional de que tanto se fala. Não pertence certamente à esfera do ser-em-si como tal. Baixará para reentrar na da "imagem"? Do ponto de vista gnosiológico, não haveria nenhuma dificuldade, porque a imagem é qualquer coisa de completamente objetivo. Mas os fenomenólogos dizem-nos que não há nenhuma imagem. O objeto intencional tomaria então o lugar da imagem que se baniu?»
( Hartmann, ibid, pág. 157)»
A definição de fenomenologia de Hartman é contrária, em certa medida, à de Husserl. Este escreveu:
«A fenomenologia, pelo contrário, é um idealismo que não consiste mais do que na autoexplicitação do meu ego, como sujeito de todo o conhecimento possível, levada a cabo de modo consequente na forma de uma ciência egológica sistemática, e isto a respeito do sentido de tudo o que é, que deve poder ter justamente um sentido para mim, o ego. Este idealismo não está formado por um jogo de argumentação que deva ganhar o prémio da vitória em luta com os realismos. É a explicitação do sentido, levada a cabo num efetivo trabalho,de todo o tipo de ser que eu, o ego, seja capaz de conceber, especialmente do sentido de transcendência (que já me foi dado efetivamente pela experiência) da natureza, da cultura, do mundo em geral.» (Edmund Husserl, Meditaciones cartesianas. pags 113-114, Editorial Técnos, Madrid, 2006; o negrito é colocado por mim).
ONTOLOGIA: TRÊS ESFERAS DO SER REAL E UMA DO SER IDEAL
Hartmann pretendeu estruturar uma ontologia fenomenológica, a que chamou analítica e crítica, que acolhesse as zonas irracionais ou incognoscíveis do ser, e se distinguisse da ontologia dos escoláticos e dos racionalistas:
«A ontologia de que aqui se trata distingue-se nitidamente da antiga ontologia dos escolásticos e racionalistas. Esta pretendia ser imediatamente uma lógica do ser ( do existente). E quando concluía da essência à existência, era apenas a consequência normal do método empregue, a qual consistia essencialmente em hipostasiar a esfera da lógica. Em suma, esta ontologia era puramente construtiva, dedutiva e racionalista. (...)»
«Uma ontologia, que tem a pretensão de se ocupar do problema do conhecimento, deve ser analítica e crítica.». (Nicolai Hartmann, Les principes d´une métaphisique de la connaissance, pag 253, Tome I, Paris, Aubier; o negrito é colocado por mim).
Atentemos numa breve explanação sintética e parcelar da ontologia de Hartman, exposição que não aborda aqui as categorias do ser e as categorias do conhecimento nem outros temas. Há três grandes esferas do ser real, para Hartman: a do sujeito ou subjetiva, a dos objectos reais ou ser objetivo real, e a da transobjectividade ou ser transobjetivo. Entre as duas últimas ou ao lado da segunda parece situar-se uma quarta esfera: a esfera da idealidade, que contém em si três esferas, a esfera da idealidade estética, a maior, a da idealidade ética e a da idealidade lógica .
«Todo este conjunto ontológico que rodeia o sujeito e no qual se encontram todas as estruturas objetivas se distribui, conforme a natureza da relação que estas podem ter com o sujeito, em diferentes zonas; essas zonas estão, em geral, dispostas de forma concêntrica; os seus limites aproximam-se mais ou menos da esfera do irracional, segundo a natureza muito diferente do objeto em cada uma das esferas. Há apenas uma só e única esfera do ser; do mesmo modo só há também uma esfera do sujeito. Mas com estas esferas interfere uma esfera ideal igualmente única, no interior da qual às esferas de idealidade lógica e ética responde uma esfera mais vasta de idealidade estética. O conjunto apresenta a forma de um sistema complexo de esferas, cuja multiplicidade indefinida se adapta facilmente à estrutura ontológica fundamental do real.» (Hartmamnn, ibid, pag 294; o negrito é posto por mim)
«A única esfera do ser imediatamente acessível ao conhecimento filosófico é o "paço dos objetos" com as suas diferentes zonas e as diferentes esferas de ordem ideal que aí se inserem. O "paço dos objetos" é a região do ser à qual se refere antes de tudo o fenómeno do conhecimento.» (...) (Nicolai Hartman, Les principes d´une metaphysique de la connaissance, Tome I, pág 296, Aubier, Paris, 1945).
«Ela é a parte dos fenómenos no sentido primeiro e preciso do termo. Porque ela é a esfera dos objetos e os dados imediatos estão todos inerentes ao objeto como tal, não ao sujeito, nem já ao ser enquanto distinto do objeto. Igualmente todo o conhecimento mediato (por exemplo, o raciocínio) refere-se finalmente ao paço dos objetos, porque tem como termo essencialmente o próprio objeto, como tal. O conhecimento é naturalmente dirigido para o objeto. Para o fazer mudar de direção e o reconduzir ao sujeito, é necessário um ato de reflexão; e para o fazer ultrapassar o objeto, para o fazer atingir o transobjetivo, é necessário alargar a função do conhecimento, o que não é possível a não ser colocando os problemas de determinada maneira. Em resumo, o "paço dos objetos" é, no ser, a esfera que é de longe a mais racional. Quanto à esfera da idealidade, só aparece enquanto se cruza, por assim dizer, com o "paço dos objetos"; a esfera da idealidade é também uma esfera de objetividade pura.»
«No interior do "paço dos objetos" há contudo a introduzir na racionalidade diferenças essenciais de grau, segundo as zonas e o conteúdo dos seus problemas. A racionalidade de longe mais elevada encontra-se no paço dos objectos do conhecimento e a racionalidade mais fraca no dos objetos da estética; quanto à ética, esta possui uma racionalidade de qualquer modo intermediária. Assim, pois, o problema do conhecimento encontra-se completamente no centro da cognoscibilidade. Forma o ponto de partida necessário, é por ele que a pesquisa filosófica deve começar, porque constitui a parte onde há mais racionalidade.»
«Pelo contrário, as esferas situadas aquém e além do "paço dos objetos"- o sujeito e o ser transobjetivo - são dificilmente acessíveis. São de sua natureza estranhas ao conhecimento, afastam-se deste, por assim dizer, se bem que não seja, em um e outro caso, pelas mesmas razões. O que, nessas esferas, é suscetível de ser conhecido, nunca forma mais do que uma ínfima porção do seu conteúdo efetivo; estas esferas possuem, diríamos de bom grado, um mínimo de racionalidade. Podem, contudo, ser conhecidas em certa medida (ainda que não seja por meio do conhecimento do objeto); de outro modo, não poderia falar-se delas.» (, Hartmann, ibid, pag 297).
É evidente que a fenomenologia, tal como Hartman a concebe, supõe objetos físicos, reais em si mesmos, existentes fora da consciência do sujeito e apreensíveis por ela. Ao contrário do idealismo material de Kant, batizado de idealismo transcendental, em que os objetos físicos como mesa, árvore ou cavalo são criados dentro da mente exterior do sujeito - o espaço ou sentido externo- nela vivem e desaparecem, como conglomerados tridimensionais de sensações pensados pelo entendimento.
PODE COLOCAR-SE O MONISMO NO MESMO GÉNERO QUE O IDEALISMO E O REALISMO GNOSIOLÓGICOS?
Apesar de ser um pensador brilhante em muitos aspetos, Hartmann sofre confusões do ponto de vista dialético-gnosiológico, ponto de vista que é, no essencial, noologia. Assim coloca no mesmo plano, como espécies do mesmo género, realismo, idealismo e monismo:
«É necessário tomar uma consciência exata das relações que ligam os dois problemas, gnosiológico e ontológico, para evitar deslocar indevidamente as suas fronteiras e manter a investigação sobre as alturas da crítica. Entre as teorias existentes são as teorias realistas aquelas que melhor tomaram consciência desta relação; vêm depois as teorias monistas que guardam também uma certa consciência, ao menos em princípio. Mas as que menos a possuem são as teorias idealistas.» (Hartmann, ibid, pag 249; o negrito é posto por mim).
Monismo é uma definição formal, matemática, e realismo e idealismo são definições substanciais, físicas e metafísicas. Não pertencem ao mesmo género. Hartmann equivoca-se. E o que entende por monismo?
«O monismo explica a unidade de relação constitutiva do conhecimento afirmando que o sujeito e o objeto são, do ponto de vista da origem, essencialmente semelhantes. Nesta similitude já se encontra um pouco de ontologia, pelo facto que não somente o objeto mas também o sujeito é manifestamente qualquer coisa que é. O ponto central das meditações de Descartes, o cogito ergo sum, não deixa a este sujeito nenhuma dúvida. No cogito uma realidade é dada imediatamente à intuição como existente.» (Hartmann, ibid, pags 261-262; o negrito é posto por mim)
O cogito ergo sum de Descartes, em que o pensamento e o ser se fundem instantaneamente, numa intuição fundadora, é dado por Hartmann como um exemplo de monismo. Mas, de facto, esse momento é o idealismo solipsista, o idealismo monista: existe uma só consciência real, a minha, o resto - os outros , Deus, o mundo físico - é ilusão. Portanto, idealismo a e monismo não se opõem entre si , como duas espécies diferentes no seio do mesmo género. Há um idealismo monista e um idealismo pluralista como o de Kant (várias mentes humanas e ainda os númenos). Hartmann não concebeu isto, com esta claridade necessária.
EQUÍVOCOS DE HARTMANN SOBRE IDEALISMO E TRANSCENDÊNCIA
Hartmann é também equívoco na caraterização do idealismo transcendental de Kant no qual o termo Ideia designa a intuição inteligível de um objeto problemático pensado pela razão. E é equívoco na distinção entre a sua ontologia crítica e a de Kant. As Ideias principais, em Kant, são a de Deus, mundo (não o universo físico de planetas e estrelas mas a totalidade em que ele se insere), alma imortal e liberdade. Escreveu Hartmann:
«A nova ontologia analítica caracteriza-se pela síntese da "Ideia" kantiana, com o conceito de transcendência que se encontrava na antiga ontologia que era sintética. Afirmando a transcendência, suprimimos o idealismo; afirmando o caráter infinito da Ideia, suprimimos o dogmatismo racionalista. É a Ideia que torna a ontologia crítica e é o pensamento do ser que torna a Ideia ontológica.» (Hartman, ibid, pag. 263)
É ambíguo definir a ontologia escolástica como sintética. Afinal, a «Suma Teológica» analisa as propriedades do ente divino e do ente humano, os vícios e as virtudes deste último. Que quer dizer o termo sintético? Que parte de dogmas herdados da tradição, da fé, que carecem de ser analisados?
Não é verdade que afirmando a transcendência se suprime o idealismo porque grande parte das correntes idealistas assentam na transcendência de um ou vários espíritos em relação ao espírito do sujeito pensante. Hartmann revela-se obscuro nesta distinção noológica. A transcendência opõe-se somente ao idealismo solipsista («A minha consciência engloba o universo, nada há além dela») mas não ao idealismo pluralista ou multiconsciências. Kant era idealista e afirmava a transcendência de alguns númenos (Deus, mundo como totalidade) ao sujeito. Ademais, Kant já afirmava o caráter infinito da Ideia, não se vê em que medida a ontologia crítica de Hartmann «torna a Ideia ontológica» através do seu «pensar do ser»: o ser transobjetivo de Hartman corresponde mais ou menos integralmente aos númenos-Ideias de Kant.
UMA AMBÍGUA OPOSIÇÃO DESENHADA POR HARTMANN ENTRE REALISMO E ONTOLOGIA ANALÍTICA
Hartmann manifesta uma confusão intensa sobre o sentido da palavra realismo. Em gnosiologia, realismo designa o materialismo ôntico - não o materialismo ontológico ou protológico - isto é o facto de haver um mundo de matéria, real em si mesmo, fora das consciências humanas.
«A tendência realista que manifesta a nossa ontologia contém pois nela mesma os seus limites e esses limites impedi-la-ão sempre de degenerar em teoria realista.»
«O lado propriamente realista que apresenta a nossa ontologia consiste simplesmente numa dupla relação que a afeta. 1º Ela está em primeiro lugar na ligação mais estreita possível com o realismo espontâneo e científico; conserva esse realismo na medida em que não implica nenhuma concepção materialista da consciência (capítulo XIV, a e d)(...) 2º Além disso, a nossa ontologia apoia-se no facto de que o ser que está em questão pode ser percebido na direção do objeto e que ele aparece com os carateres de um transobjetivo.» (Hartmann, ibid, pag 267)
Este texto é um exemplo de retórica inconsequente, espelho da nebulosidade teórica de Hartmann: «a ontologia analítica...é de tendência realista mas não é realista», «o ser é percebido na direção do objeto», etc.. Perguntaríamos a Hartmann: a jarra e a mesa que vejo existem ou não fora da minha mente? Se respondesse afirmativo, Hartman defenderia o realismo gnosiológico. Mas ele preferiu escorregar na viscosidade do óleo da amiguidade. Ora o realismo não implica uma concepção materialista da consciência, ou seja, que a consciência é uma emanação transitória das células do cérebro e do sistema nervoso humano e desaparece com a extinção das células, a morte corporal. Hartmann confunde o realismo com o materialismo ontológico, doutrina segundo a qual o ser-essência geral, o princípio eterno de tudo é a matéria impensante.
HÁ UM IRRACIONALISMO FILOSÓFICO MAIS PROFUNDO QUE O IRRACIONALISMO MÍSTICO?
Hartmann teorizou que a camada de irracionalidade mais profunda do ser - o transinteligível - só pode ser alcançada ou tocada pela filosofia, que vai mais longe do que o sentimento místico religioso.
«Contudo, o irracional não é pura e simplesmente o incognoscível. Podemos conhecer as cores e os sons e contudo há neles qualquer coisa que não pode ser dita racional. Há portanto coisas que podem ser conhecidas e que, contudo, são irracionais. Por conseguinte, a racionalidade só se identifica com uma certa forma de cognoscibilidade.» (Hartman, ibid, pag 318; o negrito é posto por mim).
«O irracional no sentido filosófico da palavra não se identifica de modo nenhum com o irracional dos místicos. Este é objeto de revelação, de intuição, de apreensão extática, d´amor Dei intellectualis. Trata-se de um objeto que pode perfeitamente ser captado, ainda que não o seja pelo entendimento; o objeto dos místicos é objeto de visão, de experiência vivida, de entendimento. (...) Pelo contrário, quando se trata do transinteligível, está-se a lidar com qualquer coisa de que se não pode ter nenhuma intuição.»(...) «O irracional dos místicos é do alógico, não do transinteligível». (Hartmann, ibid, pag 319; o negrito é posto por mim).
« O transinteligível e com ele o "irracional por excelência" começa lá onde já não é possível recorrer a uma intuição, a uma inteleção, a uma experiência vivida, a um sentimento. O irracional de que se trata em ontologia está, portanto, situado numa camada mais profunda que o irracional dos místicos.» (Hartmann, ibid, pag 320; o negrito é colocado por mim).
É discutível esta tese. Porque não há-de o irracional transinteligível ser a mesma camada do ser, a última, a mais afastada, percepcionada de modo diferente por místicos e filósofos, os primeiros julgando conhece-lo através do amor e da iluminação da alma e os segundos reconhecendo que a razão não penetra esse transinteligível? «
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