O termo «eduquês», algo ambíguo, entrou há cerca de uma década no vocabulário pedagógico em Portugal, ao que parece pela voz de Marçal Grilo. Designa, segundo parece, a corrente construtivista libertária na pedagogia que, por exemplo, A.S.Neil encarnava: é mais importante o aluno aprender por si mesmo, a heurística, a forma livre do captar e conceber algo, do que o conteúdo deste algo, do que a substancialidade do conhecimento. Nuno Crato, professor universitário de matemática, caracterizou assim o eduquês:
«A corrente tem uma interpretação pós-moderna pois sublinha a intervenção, a interpretação e o processo, não os factos, os currículos, os conteúdos e os resultados educativos. Descrê da objectividade, da capacidade de apreender a realidade e da possibilidade de o conhecimento científico chegar a conclusões, ainda que questionáveis e possivelmente provisórias. Aí se encontra a raiz do desprezo pelos conteúdos científicos e processos cognitivos, a par da arrogância construtivista, que imagina os alunos capazes de criticar e construir conhecimentos a partir do nada. A corrente tem uma inspiração romântica, não por propagar ideias lunáticas e atoleimadas - que, muitas vezes, são de facto, lunáticas e atoleimadas - mas porque se enquadra num movimento filosófico e pedagógico anti-racionalista que tem Jean Jacques-Rosseau (1712-1778) e outros como precursores.» ( Nuno Crato, O eduquês em discurso directo, uma crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista, Gradiva 2006; http://www.filedu.com/ncratoeduques.pdf).
Um dos pressupostos do «eduquês» é sacudir a carga histórica memorizadora do saber e permitir a "descoberta virginal" da verdade pelos alunos. Saber centrado no aluno, respeitador da sua autonomia, portanto...
Assim, os teóricos portugueses do eduquês no campo da filosofia - entre outros, o núcleo de professores universitários e liceais que impulsiona a revista "crítica na rede" - sustentam (alguns já perceberam a inconsistência da sua posição) que dar aulas de filosofia interpretando textos de Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Descartes, Hegel, Heidegger, etc, registando os conceitos e raciocínios destes filósofos consagrados é «fazer história da filosofia» mas não, filosofar.
Confundem o continente(exemplo: o diálogo "Sofista" ou o "Fédon" de Platão) com o conteúdo (exemplo: a ideia filosófica de que "o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro são os géneros supremos"). Imaginemos que, em pleno século XXI, um aluno que nunca tivesse lido Platão chegava por si mesmo à conclusão de que há cinco géneros supremos - o ser, o movimento, o repouso, o mesmo e o outro.
«Isso sim, é filosofar!» - exclamariam os construtivistas do "eduquês". Mas outro aluno, que lesse esses cinco géneros no "Sofista" de Platão e questionasse a sua natureza, ou os aceitasse, "não estaria a filosofar", segundo aqueles teóricos, pois cometeu o pecado de ler um documento histórico "fossilizado", contaminado pela "autoridade" de Platão O filosofar seria, pois, o acto construtor de um raciocínio ou série de raciocínios mas não o momento final deste acto, a apreensão de uma dada essência, de uma ideia, uma tese....Basta que outro a tenha pensado antes para já "não ser filosofia" mas sim ... "história da filosofia".
É ridícula esta confusão entre a ideia e o raciocínio filosóficos, por um lado, e a chancela do tempo ou contexto histórico em que surge, por outro. Por este deficiente modo de pensar, estudar a tabela periódica dos elementos não seria estudar química mas sim história da química e por aí adiante...
Não deixa de ser engraçado ver artífices da "crítica na rede" (Desidério Murcho, Aires Almeida, Pedro Galvão, etc) disparar flechas de crítica contra o "eduquês" quando eles mesmos, pela separação artificial que fazem entre filosofia e história da filosofia e pela supervalorização da lógica proposicional que promovem ,são militantes e impulsionadores desse mesmo eduquês, romanticamente superficial e populista.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Os que acusam o ensino clássico da filosofia, baseado na interpretação de textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz, Heidegger ou Sartre, entre outros, de ser apenas «história da filosofia» sofrem de uma distorsão intelectual.
Na verdade, opor a filosofia à história da filosofia, sem identificar um termo médio, é antidialéctico. É um reducionismo empobrecedor da realidade. A dialética considera em cada assunto um par de contrários e o seu intermédio, isto é, uma tríade susceptivel de redução à díade.
Assim, ensinar Platão ou Kant ou Heidegger, questionando as suas ideias, não é fazer história da filosofia mas filosofia na história ou historicizada.
Há portanto três posições: filosofia a-histórica, no instante presente; filosofia na história (leitura e debate livre das ideias e teorias dos filósofos antigos e contemporâneos); história da filosofia (datação das teorias filosóficas e narração da vida dos filósofos consagrados).
Exemplo de filosofia a-histórica: «Nesta aula, abordaremos a ética dos transplantes de orgãos humanos. A questão é: será eticamente correcto extrair o coração, os pulmões e o fígado a um corpo humano sem sinais vitais sem ter consultado previamente a pessoa que nele habitava para lhe pedir autorização?»
Exemplo de filosofia na história: «´Passo a ler parte do excerto 1029a do livro VII da «Metafísica» de Aristóteles: "Fica esquematicamente dito , de momento, o que é a substância (ousía): aquilo que não se diz de um sujeito, mas isso de que se dizem as demais coisas. Não obstante, convém não ficar somente nisto, pois isto é insuficiente. Isto é em si mesmo, obscuro, e ademais, a matéria vem a ser substância; com efeito, se ela não é substãncia, se nos escapa que outra coisa possa sê-lo, já que se se suprimem as demais coisas, não parece que fique nenhum outro substrato "(fim de citação). Ora a pergunta que vos quero pôr, caros alunos, é a seguinte: sendo a matéria, para Aristóteles, destituída de forma, e sendo a união da forma com a matéria a criadora da substância, parece-vos que a matéria prima indeterminada já possui algo de substância ou esta está toda na forma ou está por inteiro no composto forma-matéria?
Exemplo de história da filosofia: «Aristóteles, nascido em Estagira em 384 A.C., foi durante 19 anos discípulo de Platão, até à morte deste, e fundou cerca de 334 A.C o liceu onde ensinava ao passear em círculo com os seus alunos, designados por peripatéticos».
Quem não compreende esta coexistência, numa mesma aula, de filosofia a-histórica, filosofia na história e história da filosofia e se deixa arrastar na falácia de que estudar o «Timeu» de Platão ou a «Metafísica» de Aristóteles "não é filosofar mas apenas aprender história da filosofia", ainda pensa muito pouco e mal.
Nota: Este artigo insere-se na filosofia analítica, ainda que se oponha a uns tantos «divulgadores da filosofia analítica» em voga.
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Para desfazer dúvidas de que a História da Filosofia é, em grande parte, filosofia - tese que os cérebros antidialécticos, congelados no frigorífico da lógica proposicional parecem não ser capazes de assimilar - vamos exemplificar.
Tomemos a História da Filosofia , do filósofo espanhol Julian Marías, já publicado há décadas, em 1959.
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Eis um excerto de história da filosofia desse livro, excerto que não é filosofia mas história:
«Este cidadão ateniense (Epicuro) nasceu em Samos, donde havia emigrado o seu pai. Foi para Atenas em fins do séc. IV, no ano 366 fundou a sua escola ou comunidade num jardim. Parece que era uma personalidade notável, tendo exercido um extraordinário ascendente entre os seus adeptos.» (Julian Marías, História da Filosofia, Edições Sousa e Almeida, pag 109).
FILOSOFIA
Eis um excerto de filosofia dentro deste livro:
«Epicuro opina que o prazer é o verdadeiro bem; e além disso disso é o prazer que nos indica o que convém e o que repugna à nossa natureza. Rectifica, pois, as ideias de hostilidade anti-natural em relação ao prazer, ideias essas que invadiam grandes zonas da filosofia grega. Parece à primeira vista que o epicurismo é o contra-pólo da Stoa; mas as semelhanças não são mais profundas do que as diferenças. Em primeiro lugar, Epicurismo exige que o prazer se revista de condições especiais: tem de ser puro, sem mistura de dor ou desagrado; tem de ser duradoiro e estável; tem de deixar, por fim, o homem dono de si, livre, imperturbável. Com isto eliminam-se, quase totalmente, os prazeres sensuais a fim de se dar lugar a outros mais subtis e espirituais, e, antes de mais nada, à amizade e aos prazeres do trato. Excluem-se, na ética epicurista, as paixões violentas porque arrebatam o homem.» (Julian Marías, História da Filosofia, Edições Sousa e Almeida, pag. 110).
Isto não é filosofia? É óbvio que é. Explana ideias filosóficas como «o prazer é o verdadeiro bem» mas «o prazer autêntico deve ser duradoiro, estável, em primeiro lugar a amizade e o convívio amável.» Quem quer que leia isto, desde que entenda o sentido das frases, filosofa, inevitavelmente.
Poderão alguns objectar que Julian Marías não é Epicuro, está a interpretar este. Estamos de acordo. Mas o texto de Marías é filosófico. Cabe-nos compará-lo com os pensamentos originais de Epicuro para verificar se reproduziu, se restaurou a filosofia do grego antigo ou se a adulterou gerando outra filosofia.
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Num livro lançado há 18 anos, Manuel Maria Carrilho insistiu na ideia equívoca de que "a história da filosofia não é filosofia" :
«É preciso que se entenda: uma coisa é a filosofia, outra a história da filosofia; e o facto de a filosofia não possuir objectos específicos não transforma a tradição no seu território. Para a filosofia, a história da filosofia pode funcionar como esclarecimento, informação relativamente aos seus problemas actuais; para a história da filosofia, a filosofia pode ser um elemento de reactivação e de reformulação de problemas «tradicionais». Em rigor, o estudo estritamente histórico da história da filosofia não tem, a ser possível, nada a ver com a filosofia.»
«Mas se a filosofia não é a história da filosofia, ela também não é um acréscimo, um suplemento de tipo reflexivo, das várias disciplinas ou saberes.»
(Manuel Maria Carrilho, Verdade, suspeita e argumentação, Editorial Presença, 1990, pag.89; o bold é de nossa autoria).
Carrilho perfilha diversas tese paralógicas: uma, a de que "a filosofia não é um suplemento de tipo reflexivo da arte, da biologia, da física, das teorias literárias, etc" (o que não é verdade, porque, a sê-lo, eliminaria a vertente da filosofia como epistemologia e crítica da arte e da literatura); outra, a de que "a filosofia revela senilidade, ao acantonar-se na sua história" (também não é verdade de um modo geral, na medida em que os grandes filósofos como Sartre, Heidegger, Hegel, Merleau-Ponty mergulharam na história da filosofia para dela extrair questões vivas do presente).
No artigo "A História da Filosofia no Ensino da Filosofia" , de 2 de Janeiro de 2007, neste blog, refutámos aquela tese anti dialéctica de Carrilho, sustentada por Desidério Murcho e outros, de que a história da filosofia não contém e não é filosofia. Escrevemos então aí:
«Não há contradição nenhuma entre ensinar filosofia e ensinar história da filosofia - a não ser, claro, nas mentes confusas de Desidério Murcho e do seu grupo de «iluminados». O ensino da filosofia compõe-se de duas vertentes: história da filosofia (ou história das ideias filosóficas, que é o mesmo) e heurística (arte de pensar e descobrir a verdade por si mesmo). Os professores inteligentes e competentes sabem combinar estas duas vertentes nas suas aulas (a tradição e a criação inovadora). A história da filosofia está dentro da filosofia embora não esgote a extensão desta. Não são mutuamente extrínsecas entre si.»
«Ao invés do que sugere Desidério, estudar as ideias de Platão, Guilherme de Ockam, Nicolau de Cusa, Leibniz ou Schopenhauer não impede ninguém de filosofar, de pensar pela sua própria cabeça, antes pelo contrário, estimula a verve filosófica de cada aluno. Existe o risco da memorização na avaliação? Sim, mas a memória é necessária à inteligência criativa e não é má, em si mesma. Há um risco ainda maior nos que optam por abolir a tradição filosófica: o do vacuismo anti historicista e conteudal, susceptível de produzir alunos «livres» e ignorantes, porque não solicitados aos desafios do pensamento consagrado historicamente.»
O sofisma de Desidério ( e de Carrilho) formula-se assim:
«A história da filosofia não é filosofia».
«Os professores do secundário ensinam, em regra, história da filosofia,
«Logo, os professores do secundário não ensinam filosofia».
E refuta-se deste modo:
«A história da filosofia é, em parte não filosofia (história) e em parte filosofia.»
«Os professores do secundário ensinam história da filosofia».
«Os professores do secundário ensinam filosofia, sobretudo aqueles que insistem na heurística adicionada à transmissão da filosofia tradicional».
A filosofia é sempre filosofia, não deixa de o ser pelo facto de ter sido produzida no século IV antes de Cristo ou no século XIII ou no século XX: uma parte substancial da filosofia plasmou-se, cristalizou, em história da filosofia, em textos, livros, debates registados que,felizmente, sobraram do passado. Levando ao extremo a busca da inovação e o corte com o passado como essência da filosofia, perfilhada por Manuel Maria Carrilho, dir-se-ia que o livro de Hilary Putnan Reason, Truth and History, já pertence à história da filosofia, porque foi publicado em 1981 e, portanto, não se impõe debater as suas teses petrificadas no granito de há 27 anos...
Nietzchze, um filósofo inteligentíssimo - certamente muito acima de Carrrilho e da generalidade dos doutorados em filosofia de hoje- propôs uma transmutação de valores mas não veiculou a peregrina tese de que "a história da filosofia não contém filosofia" nem advogou não estudar Platão, Epicuro, Espinoza ou Kant.
Há professores que ensinam a filosofia de Platão sem a questionar filosoficamente? Há. O defeito não se encontra nos textos de Platão mas no modo acrítico como são perspectivados. Fornecer os textos de Platão e outros a estudantes de filosofia e aos interessados em geral continua a ser uma fonte viva da filosofia.
Considere-se o seguinte texto da Metafísica de Aristóteles:
«Tampouco é possível definir Ideia alguma, já que, como dizem, a Ideia é uma realidade individual e separada. Pois a definição consta necessariamente de nomes; ora bem, o que define não inventa nomes (pois resultariam ininteligíveis) e os (nomes) que estão à disposição são comuns a todas as coisas e, portanto, se aplicam também a outras coisas» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, Capítulo XV).
Pergunta: se o professor dá este texto aos seus alunos para estes o interpretarem e debaterem livremente, está a dar história de filosofia ou filosofia? A confusão é, seguramente, grande entre os discípulos de Desidério e Carrilho...
Pois bem, a resposta correcta é: está a dar filosofia, principalmente, e a aflorar história da Filosofia, secundariamente...
Parafraseando Heraclito de Éfeso, na sua tese «O universo gera-se em função do pensamento e não em função do tempo», direi que «O universo filosófico, a filosofia, gera-se em função do pensamento e não em função do tempo». Platão é tão actual como Derrida ou Putnam. Ao invés, Carrilho e outros diriam que «O universo filosófico gera-se em função do tempo actual e não em função do pensamento de todas as épocas».
Ao contrário do que Manuel Maria Carrilho, Desidério Murcho e muitos outros parecem supor, a memória é uma faculdade intrinsecamente filosófica. Sem memória, seria impossível conceber pensamentos como "o Ser é, não foi nem será" (Parménides) e seria inviável distinguir a essência do acidente, o modus tollens do modus ponens, etc. Ora a história da filosofia é a memória da filosofia.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Desde há mais de uma década, procura impor-se, em Portugal como noutros países do mundo, uma corrente revisionista do ensino da filosofia que visa expurgar deste ou reduzir nele a uma ínfima dimensão, a história da filosofia. Desidério Murcho, um dos arautos desta corrente, escreveu no seu blog «www.pensologosou.no.sapo.pt» um artigo «O que é a Filosofia?» no qual diz o seguinte:
«Nas nossas escolas confunde-se filosofia com história da filosofia e esta última com história das ideias. Uma vez mais, esta confusão parece resultar da ideia de que a filosofia "morreu"; logo, só resta fazer a sua história. Isto é de tal forma subterrâneo que as pessoas não sabem distinguir filosofia de história da filosofia, havendo até quem afirme, com sabor a Hegel, que a filosofia consiste na sua história. É impressionante a quantidade de coisas que se inventam para fugir à filosofia; parece que a filosofia incomoda muita gente.
«A filosofia ocupa-se de problemas, teorias e argumentos. A história da filosofia não se ocupa do estudo dos problemas, teorias e argumentos da filosofia, a não ser como meio e não como fim em si. Para um estudante de filosofia, a história da filosofia é um meio para compreender melhor o que determinado filósofo queria realmente dizer; para compreender melhor determinado problema, teoria ou argumento. Mas é apenas um meio. O fim é perguntar-se se o filósofo tem razão, depois de ter compreendido o que ele queria dizer. Haverá boas razões para pensar que sim? Ou melhores razões para pensar que não? Estudar filosofia é aprender a pensar pela sua própria cabeça nos grandes problemas e argumentos da filosofia, e ter uma atitude crítica em relação às grandes teorias que os filósofos inventaram para tentar resolver esses problemas. » (Desidério Murcho; o negrito é da nossa autoria).
Desmontemos alguns dos sofismas do pseudopensador Desidério:
1) Desidério Murcho opõe, sofisticamente, filosofia a história da filosofia. Segundo ele, ensinar, por exemplo, que Platão sustentava a existência de três mundos - o dos Arquétipos ou do Mesmo; o do Tempo, dos Números Móveis e dos movimentos planetários ou do Semelhante; o da Matéria Física ou do Outro- é «fazer história da Filosofia, mas não filosofia». Destituído da racionalidade holística que é apanágio dos verdadeiros filósofos, Desidério Murcho não compreende sequer que a história da Filosofia é uma exposição de raciocínios e teses de filosofias geradas pelos filósofos A,B,C,D, e que, portanto, é, na sua essência, filosofia ou um mosaico de filosofias.
Pode não ser a filosofia que o aluno deseje mas é filosofia. Pela parte que me toca, na qualidade de professor de Filosofia no ensino secundário, exponho, em regra, aos meus alunos do 11º ano, as bases da teoria de Platão dos três mundos, e da teoria de Pitágoras dos quatro números figuras (um, o ponto; dois, a recta; três, o plano; quatro, o sólido), isto é, dou história da filosofia, que é, simultaneamente, filosofia. Mas não me cinjo a perguntas de memorização nos testes. Elaboro perguntas filosóficas - como por exemplo: Relacione o papel do número nas teorias de Platão e Pitágoras - a partir das quais emergem os alunos criativos e genuinamente filosóficos e toda a turma é solicitada à reflexão filosófica.
A concepção dialéctica é isto: a história da filosofia contém em certa medida o seu contrário, a filosofia, e viceversa.
Os professores que, seguindo Desidério Murcho e os apologistas do vácuo filosófico, não dão teses da história da filosofia e tentam apagar esta em nome da «liberdade de filosofar» conduzem, em regra, os alunos ao analfabetismo filosófico. Abolir a história da filosofia do ensino da filosofia é regressar à idade das cavernas.
É como se os arquitectos do século XXI decidissem derrubar o templo de Diana de Évora, o Mosteiro dos Jerónimos, as catedrais góticas, o Alhambra de Granada e todos os monumentos clássicos do mundo inteiro em nome da liberdade de «descobrir e criar a verdadeira arquitectura». Se as diversas ciências fizessem o mesmo, isto é, se a física não ensinasse as leis de Boyle e Gay-Lussac, a lei da gravitação universal de Newton, o modelo de átomo de Bohr, que aprenderiam os alunos, como se desenvolveriam intelectualmente em tempo útil nas escolas?
2) Não há contradição nenhuma entre ensinar filosofia e ensinar história da filosofia - a não ser, claro, nas mentes confusas de Desidério Murcho e do seu grupo de «iluminados». O ensino da filosofia compõe-se de duas vertentes: história da filosofia (ou história das ideias filosóficas, que é o mesmo) e heurística (arte de pensar e descobrir a verdade por si mesmo). Os professores inteligentes e competentes sabem combinar estas duas vertentes nas suas aulas (a tradição e a criação inovadora). A história da filosofia está dentro da filosofia embora não esgote a extensão desta. Não são mutuamente extrínsecas entre si.
Ao invés do que sugere Desidério, estudar as ideias de Platão, Guilherme de Ockam, Nicolau de Cusa, Leibniz ou Schopenhauer não impede ninguém de filosofar, de pensar pela sua própria cabeça, antes pelo contrário, estimula a verve filosófica de cada aluno. Existe o risco da memorização na avaliação? Sim, mas a memória é necessária à inteligência criativa e não é má, em si mesma. Há um risco ainda maior nos que optam por abolir a tradição filosófica: o do vacuismo anti historicista e conteudal, susceptível de produzir alunos «livres» e ignorantes, porque não solicitados aos desafios do pensamento consagrado historicamente.
Aristóteles escreveu, por exemplo:
´
«O agora é a continuidade do tempo, como já dissemos, pois enlaça o tempo passado com o tempo futuro e é o limite do tempo, já que é começo de um tempo e fim de outro. Mas isto não é evidente como é o ponto, que permanece. O agora divide potencialmente, e enquanto divide é sempre distinto, mas enquanto une é sempre o mesmo, como no caso das linhas matemáticas. Porque no pensamento o ponto nem sempre é uno e o mesmo...» (Aristóteles, Física Livro IV, 222 a)
É antifilosófico estudar isto? De que tem medo Desidério Murcho, senão do pensamento profundo de Aristóteles que o ultrapassa infinitamente, como ultrapassa a grande maioria dos catedráticos de filosofia contemporâneos?
3) Não é verdade que a história da filosofia seja apenas um meio para os estudantes compreenderem os problemas filosóficos. É um meio e também um fim porque há correntes - lembro o estruturalismo - que recusam dissociar o conteúdo filosófico do contexto social, político, cultural e religioso em que foi gerado. É também um fim do ensino da Filosofia saber, por exemplo, que o «cogito» de Descartes foi formulado no século XVII no contexto da Contra Reforma e que o «imperativo categórico» de Kant se estruturou nos alvores da revolução burguesa em França de 1789-1795.
Só um pseudopensador antidialéctico como Desidério Murcho, que reduz a slogans superficiais e populistas a sua crítica à filosofia genuína, opõe filosofia a história da filosofia. Separa a reflexão, atitude por excelência filosófica, do seu conteúdo ou produto, tal como Descartes separou o cogito (EU PENSANTE) das ideias pensadas. Mecanicismo...
O sofisma de Desidério formula-se assim:
«A história da filosofia não é filosofia».
«Os professores do secundário ensinam, em regra, história da filosofia,
«Logo, os professores do secundário não ensinam filosofia».
E refuta-se deste modo:
«A história da filosofia é, em parte não filosofia (história) e em parte filosofia.»
«Os professores do secundário ensinam história da filosofia».
«Os professores do secundário ensinam filosofia, sobretudo aqueles que insistem na heurística adicionada à transmissão da filosofia tradicional».
Desidério não é um pensador genuíno, profundo, ainda que a sua produção de artigos, livros e entrevistas seja abundante e o seu trabalho como tradutor de livros de filosofia seja notável. De facto, é um sofista "analítico", um antifilósofo cujas teses e artigos são abundantes em paralogismos que temos posto a nú noutros artigos deste blog. Quase reduz a filosofia à argumentação retórica, não compreendendo sequer que há uma vertente de rigor científico no interior da filosofia que ele não domina e teme - daí o seu «ódio» ao hegelianismo e ao positivismo e a outras correntes.
No entanto, o seu activismo jornalístico de homem do marketing «filosófico» - escreve um pouco de tudo em toda a parte, com a insustentável leveza do «não ser» dos cronistas sociais, aproveita o elogio do Eduardo Prado Coelho, ou de outro catedrático, a amizade de editores de filosofia com fraco critério de qualidade para espalhar, em livros, artigos de jornais e revista, as «suas» teses- conferiram-lhe uma projecção que o elevará ao doutoramento no Kingston College ou no Brasil («para inglês e brasileiro ver»).
Assim, se somará a uma plêiade de catedráticos mais ou menos incompetentes e arrogantes, «bispos» da igreja «filosófica» que se consubstancia nas cátedras de filosofia institucional em Portugal, Reino Unido e noutros países.
Enquanto nós, talvez os genuínos filósofos, meditamos e produzimos teses, na sombra da pirâmide do conhecimento, sem a vertigem do sucesso fácil a que Desidério acedeu.
Nota: Por muito que pareça o contrário, a nossa crítica a Desidério Murcho não é de carácter pessoal. Ele é decerto, uma pessoa estimável, melhor que muitos catedráticos de Filosofia entronizados nas suas vaidades. Criticamos, sim, as suas ideias e o modelo de Universidade que representa.
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(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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