Em «Metafísica», livro de oiro da filosofia, Aristóteles critica a doutrina platónica do Uno e da Díade do Grande e do Pequeno como princípios geradores dos entes. Escreveu:
«Os que põem o Desigual como algo uno e constituem a Díada Indefinida a partir do Grande e do Pequeno dizem coisas demasiado afastadas do comunmente admitido e do possível. Sucede que essas coisas, melhor do que sujeitos, são afeções e acidentes dos números e do tamanho - o Muito e o Pouco do número, o Grande e Pequeno do tamanho - do mesmo modo que Par e Ímpar, Liso e Rugoso, Recto e Curvo. A este erro há que somar que Grande e Pequeno e todas as coisas que são tal, são necessariamente termos relativos. Ora bem, o relativo é, de todas as categorias, a que tem natureza e substância em muito menor grau, e é posterior à qualidade e à quantidade. E, como se disse, a relação é uma afeção da quantidade, mas não matéria, já que outra coisa é a matéria que serve de substrato tanto ao relativo em geral como às suas partes e espécies» ( Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1088a, 15-25; o destaque a negrito é colocado por mim).
No fundo, Aristóteles critica Platão não só por teorizar uma região de essências aparte - o mundo Inteligível, acima do céu visível - mas também por não hierarquizar, em termos de anterioridade e posterioridade, a essência- substância (exemplo: a árvore) como anterior à essência- acidente (exemplo: o belo) no mundo dos arquétipos. Platão coloca o arquétipo de Belo como anterior ao arquétipo de Árvore, ressalvando que em algum dos seus textos coloca em dúvida a existência da forma arquetípica árvore, e Aristóteles faz o inverso: coloca a essência ou forma eterna de Árvore como anterior à qualidade de Belo que apenas surge nas coisas belas. Aristóteles considera o mundo platónico das essências uma abstração onde as formas aparecem desarticuladas entre si, todas num mesmo plano, como as peças de Lego que servem para construir uma casa. No pensamento aristotélico, o relativo não é sequer uma substância (ousía) uma forma substancial, e esta é, em princípio, anterior ao acidente.
Aristóteles hipostasiou as Ideias de Platão nos próprios objectos sensíveis da matéria, ao passo que Platão hiperestasiou a essência e os acidentes dos objectos sensíveis num mundo inteligível, situado acima do céu visível.
Aristóteles opôs-se à ontogénese matemática definida por Platão:
«Desde logo, nem a Díada Indefinida nem o Grande e o Pequeno ´são causas de que haja dois «brancos», o de que haja muitas cores, sabores e figuras. Mas em tal caso, essas coisas seriam também números e unidades. » (..)
«Este erro é causa também de que, ao buscar o oposto de O que é e do Uno (de aquele e deste proviriam as coisas que são) propuseram o Relativo e o Desigual, que não é nem o contrário nem a negação de eles, mas é uma das coisas que são, uma natureza particular como o quê e a qualidade. E isto haveria também que investigar, como os relativos são muitos e não só um.» (Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1089a, 35/ 1089b, 1-5; o destaque a negrito é posto por mim).
Por lacuna parcelar de pensamento dialético, Aristóteles coloca o relativo fora da oposição uno-múltiplo, ignorando que o relativo engloba o uno e o múltiplo, e é portanto o uno e o seu contrário, uma determinação holística. Continuando a referir-se aos platónicos, escreveu Aristóteles:
«E falam de mais espécies ainda do Relativo. Qual é, então, a causa de que estas sejam muitas? Assim, pois, é necessário, como dizíamos, estabelecer aquilo que é potência a respeito de cada tipo de realidade ( o que propôs esta teoria explicou o que é potencialmente um isto (tóde tí) e uma substância, sem sê-lo por si mesmo, dizendo que tal coisa é o Relativo; ao mesmo teria podido ocorrer dizer que tal coisa é a qualidade, a qual nem é potencialmente o Uno nem O que é, nem é tampouco negação do Uno e de O que é, mas uma, em particular das coisas que são) e muito mais ainda, como se disse, se se trata de investigar como são muitas as coisas que são, e não de investigar, dentro da mesma categoria, como é que são muitas as substâncias, ou muitas as qualidades, mas como é que são muitas as coisas que são». (Aristóteles, Metafísica, Livro XIV, 1089, 15-20, )
É contestável o que Aristóteles aqui escreveu. A identificação de Uno com O que é permanece equívoca, constitui um dos calcanhares de Aquiles da «Metafísica» de Aristóteles: o Múltiplo é, tanto como o Uno, o que é. Esta é a visão dialética que sustento: não há uno sem múltiplo, ambos são em igual grau. O relativo abarca uno e múltiplo: os contrários são relativos entre si, os contraditórios são relativos entre si, o que Aristóteles não soube equacionar correctamente no Livro X da Metafísica, uma vez que classificou os relativos como uma espécie extrínsexca às espécies contraditórios e contrários. Por que razão a Qualidade é uma das coisas do Uno? Não é o Uno uma Qualidade? De acordo com a filosofia aristotélica o uno ou é substância, ou é acidente, e neste último caso, será Qualidade, Quantidade ou Relação ou as três coisas ao mesmo tempo.
Diga-se o que se disser, a «Metafísica» de Aristóteles é um livro mais importante que «Ser e Tempo» de Heidegger ou de que «O Ser e o Nada» de Sartre. Aristóteles é muito mais preciso nos pormenores de definição, do polimento das faces do "diamante" do ser, o diamante ontológico, que a generalidade dos filósofos posteriores.
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