O grupo III do Exame Nacional de Filosofia 714, de Julho de 2006 em Portugal, é tributário da defnição hiperanalítica, errónea, do conhecimento como «crença verdadeira justificada».
Vejamos o texto e as questões iniciais do grupo III desse Exame:
«Para sabermos alguma coisa, não basta adivinharmos, mesmo que acertemos, por maior que seja a confiança que depositemos no nosso palpite. Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? Não será ter provas? Isto é, para termos conhecimento, não será necessário estarmos ligados à verdade daquilo em que acreditamos por razões ou provas que temos para acreditar? E essas razões ou provas não terão de ser adequadas para justificarem a nossa crença?»
D.Kolak e R.Martin, Sabedoria sem Respostas: uma Breve Introdução à Filosofia, trad.port., Lisboa, Temas & Debates, 2004, p. 51 (adaptado)
1. Considere o texto.
1.1. Qual é a definição de conhecimento discutida no texto?
1.2. «Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? pergunta o autor.
Responda a esta pergunta, apoiando a resposta em um ou mais exemplos.»
Nos critérios de correcção da questão 1.2 deste Exame figura o seguinte:
-Para haver conhecimento, além de termos crenças verdadeiras, temos de ser capazes de justificá-las.
-Podemos ter crenças verdadeiras sobre algo, sem conseguirmos justificar tais crenças: por exemplo, quando jogamos às cartas, podemos acreditar que nos vai sair o ás de trunfo e isso acontecer de facto.
-Nesse caso temos uma crença verdadeira, mas não sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo. (Comentário nosso: A frase é um absurdo, pois se há uma crença verdadeira, que apreende o objecto (verdade), sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo...)
- Porém, podemos saber que nos vai sair o ás de trunfo por termos viciado as cartas nesse sentido: neste caso, a nossa crença além de verdadeira, é justificada.»
CONHECIMENTO NÃO IMPLICA, OBRIGATORIAMENTE, JUSTIFICAÇÃO, AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTAM OS AUTORES DA PROVA
Para haver conhecimento não tem que haver, necessariamente, justificação. O conhecimento é um fluxo de intuições sensoriais e intelectuais que se afirmam por si mesmas, isto é, possuem a dose de dogmatismo indispensável para nos colocar na posse de certezas. Por exemplo, a percepção do sol, da côr azul do céu, do sabor de um beijo não implica conhecer teoria nenhuma científica (heliocentrismo, astrofísica em geral, biologia humana, etc) mas tão somente sentir: não precisam de justificação.
O conhecimento é a certeza. É o contacto entre o sujeito humano e um objecto material, ideal ou de outra natureza, intrínseco ou extrínseco ao sujeito. Essa é a definição correcta. A justificação - conjunto de inferências para fundamentar, estruturar e consolidar o conhecimento obtido por intuição - vem, em regra, depois das intuições cognoscentes. Essa justificação não é condição do conhecimento: é um conhecimento suplementar que se adiciona ao conhecimento originário, intuitivo, destituído de justificação.
Se algum estudante escrevesse na prova de Exame de Filosofia o que aqui escrevo, seria penalizado, segundo os critérios de correcção...
E no entanto, senhores inquisidores da «filosofia analítica», gente da Arte de (Não) Pensar, a Terra da definição de conhecimento move-se! Não está imóvel frente ao sol da «crença verdadeira justificada» com que nos quereis queimar os neurónios pensantes, usando as insígnias dos vossos barretes cardinalícios de mestres ou doutorados! Há mais e melhores definições de conhecimento além da vossa...
Há conhecimento erróneo, ilusório e conhecimento verdadeiro, empírico, empírico-racional, racional ou supra-racional.
Os mentores ideológicos desta prova - isto é os autores do manual de Filosofia do 11º ano A arte de pensar, da Didáctica Editora, Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão - não atingiram, sequer, a margem do rio do conhecimento filosófico, que é uma corrente holística indivisível , perspectivada desde vários ângulos em redor: não percebem que escravizar alunos e professores à definição, dada em 1963 pelo filósofo norte-amercano de segunda categoria Edmund Gettier (n. 1927), de conhecimento como «crença verdadeira justificada» é uma ditadura antifilosófica de sectários, de gente incapaz de pensar com profundidade.
Ora os testes de Exame Nacional de Filosofia têm de ser muito bem concebidos, com grande amplitude de pensamento e sabedoria, o que, seguramente, não foi o caso.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
Os erros de hiper-análise - fragmentar, dissociar em partes isoladas ou duplicar artificialmente uma ideia ou essência una - atravessam toda a história da filosofia ocidental.
Platão equivocou-se em certa medida ao distinguir entre crença verdadeira ou opinião verdadeira (alethès doxa), por um lado, e conhecimento ou ciência (epistéme) , por outro lado, dizendo que só o segundo possui Logos (Razão).
Atente-se nos argumentos desenvolvidos neste excerto do «Teeteto» (as palavras em itálico correspondem a outra tradução que não a da Inquérito):
«SÓCRATES- Então, quando há juízes que se acham justamente persuadidos de factos que só uma testemunha ocular, e mais ninguém, pode saber, não é verdade que, ao julgarem esses factos por ouvir dizer, depois de terem formado deles uma opinião (crença) verdadeira, pronunciam um juízo desprovido de ciência (conhecimento), embora tendo uma convicção justa, se deram uma sentença correcta? »
«TEETETO- Com certeza. »
« SÓCRATES- Mas, meu amigo, se a opinião (crença) verdadeira dos juízes e a ciência fossem a mesma coisa, nunca o melhor dos juízes teria uma opinião correcta sem ciência (conhecimento). A verdade, porém, é que se trata de duas coisas diferentes.»
«TEETETO- Eu mesmo já ouvi alguém fazer essa distinção, Sócrates; tinha-me esquecido dela, mas voltei a lembrar-me. Dizia essa pessoa que a opinião (crença)verdadeira acompanhada de razão (Logos) é ciência e que, desprovida de razão, a opinião (crença)está fora da ciência (conhecimento)e que as coisas que não é possível explicar são incognoscíveis ( é a expressão que empregava)e as que é possível explicar são cognoscíveis». (Platão, Teeteto, Editorial Inquérito, Lisboa, 1990, pags. 158-159).
O exemplo que constitui o argumento de Platão para distinguir entre crença/opinião verdadeira e conhecimento/ciência é falacioso: os juízes raciocinaram bem e sentenciaram bem, com base em um testemunho do crime, que ignoram ser falso, e isso seria a «opinião verdadeira» mas não o «conhecimento» porque lhes teria faltado.. o Logos(Razão).
De facto, se reflectirmos, o Logos não faltou aos juízes, ao contrário do que Platão, pela voz de Teeteto, sustenta: faltou-lhes sim, a Empeiria (a Experiência Sensorial Directa) do crime. Os juízes tiveram conhecimento da versão da testemunha; não tiveram conhecimento das circunstâncias reais em que se deu o crime. Contudo, pensaram bem, de um ponto de vista lógico ideal. Obtiveram o conhecimento de um cenário, teoricamente possivel, mas que não teve lugar, e da correspondente sentença.
Dizer que o conhecimento é a adição do Logos à crença verdadeira é, ao menos neste exemplo, um erro do pensamento mecanicista, hiper-analítico. O Logos está presente, com gradações diversas, em todas as formas de pensamento. Decerto a distinção «crença verdadeira» (alethès doxa) e «ciência» (epistéme) tem fundamento se consideramos a primeira como o realismo natural (exemplo: o tampo desta mesa é liso) e a segunda como o realismo crítico (exemplo: o tampo desta mesa parece liso mas não o é, está cheio de espaços vazios entre os átomos, imperceptíveis à vista e ao tacto).
Se Platão errou ao exemplificar acima a distinção entre conhecimento de opinião verdadeira, como não haveríamos de esperar estas enormes confusões dos Manuais de Filosofia em voga que dizem enormidades analíticas como os postulados «acreditar e saber são coisas distintas» e «saber e conhecer não é o mesmo»?
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