O livro de exercícios "O essencial em actividades" anexo ao manual de filosofia 10º ano "Ser no mundo" de André Leonor e Filipe Ribeiro, da Areal Editores, é um espelho da confusão instalada pela filosofia analítica anglo-norte-americana entre as universidades e os professores de filosofia do ensino secundário. As famosas perguntas de escolha múltipla possuem, frequentemente, duas ou três respostas certas mas os autores deste manual acham que só há uma resposta certa para cada grupo das quatro respostas possíveis que elaboram...
O DETERMINISMO DIZ QUE O LIVRE-ARBÍTRIO É ILUSÃO? QUE CONFUSÃO...
Vejamos a primeira questão do grupo I da ficha 02 deste manual de exercícios "Ser no mundo, 10º ano", centrada num texto de Durkheim:
"Quando desempenho a minha tarefa de irmão, de esposo ou de cidadão, quando executo os compromissos que tomei, cumpro deveres que estão definidos, para além de mim e dos meus actos, no direito e nos costumes. Mesmo quando eles estão de acordo com os meus sentimentos próprios e lhes sinto interiormente a realidade, esta não deixa de ser objectiva, pois não fui eu que os estabeleci, antes os recebi pela educação. (...)
«Estes tipos de conhecimento ou de pensamento não são só exteriores ao indivíduo, como dotados dum poder imperativo e coercivo en virtude do que lhe impõem, quer queira, quer não. Sem dúvida, quando a ela me conformo de boa vontade, esta coerção não se faz, ou faz-se pouco, sentir, por inútil.»
(..................................................................................................................................................)
(E.Durkheim, As regras do método sociológico, Presença , pp 29-31)
Grupo I
Relacione a frase destacada no texto com o argumento determinista de acordo com o qual o livre-arbítrio é ilusão.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, página 15)
Resposta dos autores: Segundo os defensores do determinismo, a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão. Nos casos em que julgamos agir por vontade própria, esta liberdade apenas resulta de causas objectivas que desconhecemos.
Da mesma forma, na frase destacada no texto, mesmo quando julgamos agir de acordo com a nossa vontade, o móbil da acção não está no sujeito. (in "O essencial em actividades", pág. 60).
Crítica minha: É um erro dizer que, «segundo os defensores do determinismo, a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão». Há defensores do determinismo, designados radicais, que sustentam que não há espaço para existir livre-arbítrio e há defensores do determinismo, baptizados de moderados ou compatibilistas - na equívoca classificação dos "analíticos" - que sustentam que há livre-arbítrio mais além da vasta rede do determinismo. O que André Leonor e Filipe Ribeiro deveriam dizer é: «segundo os defensores do fatalismo, e segundo os defensores do "determinismo radical" a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão», mas confundem determinismo, doutrina segundo a qual, nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, com fatalismo, doutrina segundo a qual tudo está predestinado e não existe livre-arbítrio.
SÓ HÁ ACÇÃO HUMANA QUANDO HÁ VONTADE CONSCIENTE E DELIBERAÇÃO? SE ASSIM FOSSE OS HOMENS SERIAM ANJOS...
Prossigamos a análise do livro de exercícios da Areal Editores 10º ano de filosofia, na ficha 2:
Grupo II
«Na resposta a cada um dos itens de 1.1 a 1.4. , selecione a única opção correcta.
1.1. Consideramos que se trata de acção humana quando:
(A) O sujeito tem papel passivo naquilo que acontece.
(B) Aquilo que sucede implica um movimento realizado por um ser humano, ainda que involuntariamente.
(C) O que sucede resulta da decisão consciente, voluntária de um agente.
(D) Algo é realizado por um ser humano.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 16)
Resposta dos autores: Só a hipótese "C" está certa.
Crítica minha: As hipóteses B, C e D estão correctas. Existe acção humana voluntária e acção humana involuntária. Que é o homicídio involuntário senão uma acção humana? Se um condutor de um autocarro adormece ao volante e o autocarro se precipita por uma ravina, morrendo dezenas de passageiros, podemos dizer que não houve acção humana, nesse acontecimento, como sustentam Leonor e Ribeiro? É óbvio que houve. O motorista foi o agente dessa tragédia. Se não se tratasse de uma acção humana, os juízes não poderiam julgar o motorista. Restringir a acção humana aos actos que brotam de uma deliberação racional (livre-arbítrio) é considerar que o homem não pertence à animalidade - e isto está em paralelo com a estúpida noção de libertismo segundo a qual o homem decidiria como um anjo no céu, sem sofrer pressão alguma das suas células, do nível de açúcar no sangue, da pressão exterior económica, política, etc, da sociedade. Com que legitimidade vêm Leonor e Ribeiro impor, taxonomicamente, que uma explosão de fúria e violência de um homem num bar, após ser empurrado, não é uma acção humana só porque não foi deliberada, pensada, sujeita a livre-arbítrio?
CONDICIONANTES BIOLÓGICAS É CLARAMENTE DISTINTO DE CONDICIONANTES FÍSICAS?
E prossegue a ficha 2 do livro de exercícios de André Leonor e Filipe Ribeiro:
«1.3 Analise as afirmações que se seguem sobre as condicionantes da acção humana. Selecione, em seguida a opção correcta:
A) As condicionantes biológicas estão associadas aos limites físicos de cada indivíduo, enquanto as psicológicas se referem a traços de personalidade.
B) As condicionantes físicas estão associadas aos limites físicos de cada indivíduo, enquanto as psicológicas se referem a traços de personalidade.
C) As condicionantes biológicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, enquanto as psicológicas se referem às limitações do organismo humano.
D) As condicionantes físicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, enquanto as psicológicas se referem às limitações do organismo humano.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, página 17)
Resposta dos autores: A única resposta certa é a "B".
Crítica minha: Esta questão exprime uma grande miopia de raciocínio. É um exemplo de como não se devem fazer perguntas de escolha múltipla de respostas que quase nada diferem ou nada diferem entre si. Todas as respostas estão certas. A resposta "A" está certa: as condicionantes biológicas de um indivíduo - por exemplo, a capacidade respiratória reduzida de uma pessoa operada a um pulmão - ligam-se aos seus limites físicos -no exemplo: a pessoa dispor apenas de um pulmão, tendo-lhe sido amputado o outro. A resposta "B" também está certa: o físico identifica-se com o biológico, basicamente.
A resposta "C" também está certa, por muita surpresa que isso cause: é óbvio que as condicionantes biológicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, - a espécie humana não tem guelras , por isso cada homem não pode ter vida subaquática permanente - e, adoptando o ponto de vista behaviorista, que nega a subsistência de uma psique congénita em cada pessoa, é verdade que as condicionantes psicológicas se referem às limitações do organismo humano - por exemplo: a tristeza, a depressão estão ligadas, ao menos nos idosos, à falta de vitamina "D".
A resposta "D" está igualmente certa, pois é praticamente igual à "C".
O FAZER NÃO IMPLICA OBJECTIVOS DEFINIDOS E CONSCIENTES?
E eis outra deformada questão da ficha 2, Grupo 2, do manual que estamos a analisar:
«1.4 Analise as afirmações que se seguem acerca da distinção entre agir e fazer. Selecione, em seguida, a opção correcta.
A) O agir tem em vista um objectivo enquanto o fazer é voluntário.
B) O agir não implica qualquer decisão, enquanto o fazer implica uma decisão consciente.
C) O fazer é exclusivo dos animais e o agir é exclusivo do ser humano.
D) O agir é voluntário, ao passo que o fazer não implica objectivos definidos e conscientes.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 17).
Resposta dos autores: A única resposta correcta é a "D".
Crítica minha: Seria preciso definir cientificamente o que é fazer e o que é agir. É o fazer uma modalidade (espécie) do agir (género)? É o agir uma modalidade do fazer? São dois géneros mutuamente independentes?. Não há unanimidade sobre isto. Logo é arbitrário construir e avaliar perguntas com esta terminologia. A maioria dos autores de manuais dá como exemplos do "agir" actos como conversar (mas conversar não é fazer diálogo?), filosofar, viajar, escrever (mas escrever não é fazer um texto?), dizer mal de alguém ou reconciliar-se com alguém e como exemplos do "fazer" actos como lavrar os campos, colher frutos das árvores, fabricar objectos com maquinaria, guiar automóvel, digerir comida (fazer a digestão), excretar resíduos, etc. O fazer teria um sentido mais prático, mais imerso no mundo material, do que o agir. Assim se diz: «Tenho de fazer dinheiro, a trabalhar» e não se diz : «Tenho de agir dinheiro, a trabalhar».
Quando André Leonor e Filipe Ribeiro apontam como resposta certa «O agir é voluntário, ao passo que o fazer não implica objectivos definidos e conscientes.» equivocam-se. Então, um carpinteiro que faz ou fabrica mesas não tem o objectivo definido de materializar o modelo que tinha em mente e de o vender por um preço compensador? É óbvio que tem. A resposta "D" está (parcialmente) errónea.
Nenhuma das quatro respostas se pode considerar correcta sem se definir à partida, com clareza, agir e fazer.Para Lao Tsé, o filósofo chinês do taoísmo, agir e fazer é a mesma coisa, por isso usou o termo não-agir.
O INTERCULTURALISMO IMPEDE O TOTAL DIÁLOGO COM VALORES INTOLERÁVEIS?
Na ficha 3, figura a seguinte questão:
1-4 Segundo o interculturalismo:
(A) É possível universalizarem-se todos os valores.
(B) Há lugar à constituição de valores transculturais.
(C) Os valores universalizáveis devem depender da cultura mais forte.
(D) Devemos ter uma atitude de total diálogo com valores que nos são alheios, mesmo que não sejam toleráveis. »
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 22).
Resposta dos autores: a única resposta certa é a "B".
Crítica minha: Se por interculturalismo entendermos a troca de ideias e informações entre diversas culturas e ideologias e a exposição dos valores de todas elas, isso implica um total diálogo com os valores alheios aos nossos. Se sou interculturalista, que me impede de dialogar com um nazi, com um estalinista, com um fundamentalista islâmico ou com um fundamentalista judeu? Há, portanto, duas respostas certas: a "B" e a "D" .
O JUÍZO ESTÉTICO NÃO É UM JUÍZO DE CONHECIMENTO?
Na ficha 6 do manual, está a seguinte questão do grupo II:
1.2 Analise as afirmações que se seguem sobre o juízo estético. Seleccione em seguida a opção correcta.
(A) O juízo estético resulta da avaliação dos críticos de arte.
(B) O juízo estético não é um juízo de conhecimento nem obedece a normas morais.
(C) O juízo estético é um juízo de valor que obecece a normas éticas.
(D) O juízo estético é um juízo de conhecimento. »
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 44).
Resposta dos autores: a correcta é a afirmação "B".
Crítica minha: A resposta correcta é a "D". A resposta "B" está errada. Então o juízo estético não é de conhecimento? Se assim fosse, não seria possível um júri de cinema dizer, com um mínimo de fundamento, que «12 anos escravo» ou «Gravidade» foram os melhores filmes do ano, nem se poderia dizer que o poeta A é superior, a versejar, ao poeta B. O que é o conhecimento? É a apreensão, sensorial-intuitiva ou intelectual-racional, de uma realidade material, ideal ou outra por uma mente. O juízo estético exprime o conhecimento da arte e da natureza física na sua vertente artística. É um juízo essencialmente sensorial mas constitui conhecimento.
Este tipo de perguntas, mal concebidas, fruto de mentes analíticas que vêem a árvore isolada mas não a floresta (hiper-análise), conduzem a respostas ambíguas ou erróneas e só contribuem para confundir alunos e professores. É isto o teor do "ensino da filosofia" dominante hoje em Portugal no ensino secundário e no sector universitário da filosofia analítica: definições unilaterais impostas ditatorialmente aos alunos (por que razão os alunos têm de distinguir actos humanos de actos do homem, uma vez que essa é versão particular de São Tomás de Aquino, se acto humano é, semanticamente, o mesmo que acto do homem?), incapacidade de pensar dialecticamente, erros notórios de lógica informal.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
A distinção entre causalidade e motivação, patente na obra de vários filósofos, entre os quais Paul Ricoeur, é fonte de paralogimos no ensino da Filosofia em Portugal e noutros países. Isto traduz-se numa confusa leccionação do tema «A acção humana» que, nos últimos anos, tem sido um dos eixos da filosofia do 10º ano no ensino secundário.
David Hume sustentou que determinada «causa» pode não gerar sempre, de maneira constante, determinado «efeito», isto é, afirmou o indeterminismo ou contingencialismo absoluto. Ricoeur escreveu, a propósito da separação absoluta entre causa e efeito estabelecida por David Hume:
«Ora esse não é o caso entre intenção e acção, ou entre motivo e projecto. Eu não posso identificar sem mencionar a acção a fazer: existe uma ligação lógica, e não causal (no sentido de Hume). Do mesmo modo eu não posso enunciar os motivos da minha acção sem ligar esses motivos à acção de que são o motivo. Há uma explicação entre motivo e projecto, que não entra no esquema da heteregoneidade lógica da causa e do efeito. Por conseguinte, neste jogo de linguagem, se eu emprego a mesma palavra "porque": "ele fez isto porque" é num outro sentido de "porque". Num caso, pergunta por uma causa; no outro, por uma razão. E. Anscombe opôs fortemente os dois jogos de linguagem, nesses dois empregos das palavras why e because of. Num caso encontro-me na ordem da causalidade; no outro, na ordem da motivação». (Paul Ricoeur, Du Texte à l´Action, Paris, PUF, 1986, pp. 169-170; o negrito é nossa responsabilidade).
É artificial e errónea a separação entre motivo e causa, entre motivo e razão, delineada por Ricoeur neste texto. Motivo vem de motu, movimento: os motivos são as «molas» que impulsionam ou põem em movimento uma acção ou um acontecimento. Na óptica determinista, não há distinção entre motivo e causa: os motivos de uma acção são causas, objectivas ou subjectivas, dessa acção. A palavra causa deve, obviamente, ser entendida em sentido lato: há causas internas e causas externas de um fenómeno ou ser. A causalidade é espécie dentro do género motivação. Outra espécie deste género é a acausalidade, o indeterminismo. E uma outra espécie do género motivação é sincronismo (ocorrência simultânea de fenómenos diversos sem que algum seja causa de outros).
Em resumo: há distinção entre motivo e causa, mas não da forma extrínseca, anti dialéctica, que Ricoeur e outros sustentam. Toda a causa é motivo mas nem todo o motivo é causa. A causa é parte de um todo chamado motivo.
A hiper-análise ou raciocínio fragmentário, de que Ricoeur e outros padecem, separa também artificialmente intenção e motivo, como sucede na seguinte passagem de um Manual de Filosofia do 10º ano:
« A procura do sentido da acção remete para a indagação das suas causas, motivos e intenções;«a intenção deve distinguir-se do motivo: a intenção tem a ver com a consciência que o agente tem dos seus actos, com o significado por ele imprimido às suas acções; o motivo com a formulação de uma explicação que as permita compreender. A intenção remete ainda para o campo da estratégia e, enquanto tal, entra nos terrenos da ética. Finalmente, enquanto procura expor razões, a acção remete para o plano da argumentação» (Rui Alexandre Grácio, José Manuel Girão, Razões em jogo, 10º ano de Filosofia, Texto Editora, Lisboa 1997, página 146; o negrito é nossa responsabilidade).
O erro de hiper-análise neste texto reside em separar motivo de intenção quando, na realidade, o motivo ou força/causa que desencadeia uma acção inclui a intenção. Há motivos intencionais e motivos não intencionais. A intenção não é extrínseca ao motivo: é uma das modalidades deste. Em termos aristotélicos: motivo é género e intenção é uma sua espécie. Intenção é sempre um motivo, um motivo subjectivo, uma causa final, teleológica, na linguagem de Aristóteles.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Uma das características predominantes deste heterogéneo movimento designado por filosofia analítica é a tendência para deslocar o carácter intuitivo-racional da verdade do mundo empírico para o mundo da lógica pura, caindo na hiper-análise.
Por hiper-análise entendo a tendência de separar em fragmentos as partes inseparáveis de um todo.
Uma das teses analíticas mais expendidas nos Manuais de Filosofia no Ensino Secundário é a de que «o conhecimento implica três condições, que são a crença, a verdade e a justificação».
Ressalta de imediato a existência de dois erros nesta formulação: a separação entre crença e conhecimento e a separação entre crença e verdade.
Quem crê, acredita em algo. Crer é designar uma «verdade» para mim, para nós ou «em si». Portanto, a verdade, no seu aspecto de ser apreendida subjectiva ou intersubjectivamente, faz parte da crença, não está fora desta. Classificar crença e verdade como condições separadas é um erro de hiper-análise.
É seguir as pisadas de Descartes, ao formular o «Cogito» («Eu penso«) como uma cápsula fechada, vazia. O «penso» é sempre «penso algo, um barco, os meus amigos, o átomo, o céu, etc», é sempre uma «representação do mundo ou verdade», como Husserl mostrou.
Aliás, toda a crença é conhecimento, entendendo que há vários níveis de conhecimento: o conhecimento factual, «indiscutível», da verdade, seja sensorial (exemplo: «a neve é fria»), empírico-racional ou racional (exemplo: 12+12=24); o conhecimento provável, metafísico-religioso (exemplo: «Deus criou o universo físico») ou metafísico-científico (exemplo: «O Big Bang originou o universo»), incerto, discutível, de uma «verdade» impossível de objectivar; o conhecimento ilusório ou «superado» de que parte da humanidade se desembaraçou ( exemplo: a teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu, a crença no «mau-olhado», etc).
O conhecimento é a superfície de contacto entre o sujeito cognoscente, pessoal ou transpessoal, e a «realidade-objecto», seja esta física, psíquica, racional, metafísica ou de outra natureza.
Esse contacto possui uma dupla vertente: verdade e erro, que, em larga medida, se transformam dialeticamente um no outro.
Assim, parece-nos errónea a seguinte formulação do conhecimento num Manual de Filosofia:
«O conhecimento é factivo, ou seja, não se pode conhecer falsidades.»
«Dizer que não se pode conhecer falsidades não é o mesmo que dizer que não se pode saber que algo é falso. As duas coisas são distintas. Vejamos os seguintes exemplos:»
«1. A Mariana sabe que é falso que o céu é verde.
«2. A Mariana sabe que o céu é verde.
«1 e 2 são muito diferentes. O exemplo 1 não viola a factividade do conhecimento. Mas a afirmação 2 viola a factividade do conhecimento: a Mariana não pode saber que o céu é verde, pois o céu não é verde».
«Dizer que o conhecimento é factivo é apenas dizer que sem verdade não há conhecimento».
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag.96).
A afirmação de Maria de que «o céu diurno é azul» seria factiva, segundo estes autores. Mas como classificar a afirmação dos filósofos e físicos, que perfilham a teoria das qualidades primárias e secundárias dos objectos físicos, de que «o céu diurno não tem cor, o azul que lhe atribuimos apenas existe no nosso cérebro»? Ambas são afirmações factuais, derivadas de perspectivas diferentes: empírica versus epistemológica. E ambas podem ser postas em dúvida, a partir de outras perspectivas de raciocínio. Alguma delas é "factiva", deveras?
Se o conhecimento fosse factivo, no sentido em que os autores do texto o definem, isto é, impedindo a falsidade, então não haveria progresso no conhecimento do mesmo tema científico: se consideram factivo que «o céu é azul» ou que «o número de massa do hidrogénio é um» ou que «os átomos têm órbitas circulares com electrões» estas asserções deveriam permanecer como «verdades imutáveis» por toda a eternidade.
Ora, isto não é assim. O conhecimento, na sua grande vastidão, é revisível, mistura, na sua essência mutável, a verdade com o erro. Se há conhecimento factivo, no sentido de indiscutível, limita-se às operações da matemática, a princípios lógicos e a intuições empíricas fundamentais (exemplos: «Estou neste lugar; O azeite a ferver queima-me se saltar sobre a minha pele»).
Há, no entanto, muito mais conhecimentos, além destes, que não são indiscutíveis, factivos - a teoria de Darwin é um conhecimento e, em boa parte, não factivo; a teologia cristã ou islâmica é um conhecimento metafísico de seres míticos, não factivo para centenas de milhões de pessoas; a teoria da democracia liberal mundial como a melhor das sociedades possível também não é "factiva", etc.
Na Idade Média europeia, a crença em que a Terra estacionava no centro do universo com o sol e os planetas a girar à sua volta era o conhecimento científico possível. Depois essa teoria geocêntrica foi substituída, no século XVII, pela teoria heliocêntrica: deixou de ser um conhecimento científico, sociologicamente falando, e passou a ser um conhecimento pré-científico, um conhecimento superado. E ainda hoje, no século XXI, o geocentrismo continua a ser conhecimento, de uma «verdade superada» ou ilusão.
Portanto, conhecimento não implica obrigatoriamente verdade - verdade objectiva, consensual, universal - mas tão somente «verdade para mim» ou «verdade para nós», «verdade» provável ou plausível, «verdade superada» ou erro.
Falar de «verdade» em geral como condição do conhecimento e não distinguir entre «verdade objectiva, universal» e «verdade subjectiva» ou «verdade intersubjectiva» nem distinguir entre «verdade provável» e «verdade indiscutível, definitiva» é falsear a noção de conhecimento. Em última análise, o conhecimento não é factivo: poderá ser tendencialmente factivo. Factiva é a realidade a que ele se refere, realidade que se encontra em um dos extremos desse "segmento de recta" chamado conhecimento ou, melhor, que é tangente a esse extremo.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Diversos autores em filosofia, em especial na lógica, dissociaram os conceitos de validade e verdade, de maneira antidialéctica. Ora a dialética repousa num primeiro pilar holístico, a lei do uno: no universo e no pensamento, tudo se relaciona e interpenetra, nada está isolado.
Vejamos um exemplo desta dissociação artificial num manual de Filosofia:
«Em lógica e filosofia chama-se válido a um argumento que tem certas propriedades , independentemente de as suas premissas serem verdadeiras ou falsas. O termo «validade» não se aplica a proposições.E os argumentos não podem ser verdadeiros nem falsos.»
«Os argumentos podem ser válidos ou inválidos, mas não podem ser verdadeiros nem falsos.»
« As proposições podem ser verdadeiras ou falsas, mas não podem ser válidas nem inválidas». (Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag 18; o negrito é posto por nós).
Esta oposição entre verdade e validade estabelecida neste excerto de um manual de Filosofia para o ensino secundário em Portugal é, a nosso ver, errónea. É fruto da hiper-análise, isto é, a visão separada das coisas, sem a intuição da sua identidade essencial.
De facto dizer «É verdade que 2+5 =7» é o mesmo que dizer «É válido que 2+5=7». E dizer «é verdade que a Terra gira em torno do sol» é o mesmo que dizer «é válido que a Terra gira em torno do sol».
O que os autores do citado texto designam por validade pode ser designado como verdade formal, verdade a priori, num plano meramente lógico. Por exemplo a inferência lógica « se a >b e b>c , então a>c» é simultaneamente válida e verdadeira. Logo esta proposição é verdadeira e válida, ao contrário do que sustentam os autores acima dizendo que «as proposições não podem ser válidas nem inválidas».
A noção de validade é extraída da noção de verdade e nunca se liberta da determinação desta. Metaforicamente, talvez se pudesse dizer, numa certa perspectiva, que a verdade, em sentido ideal-material, é a carne com os ossos, e a validade, em sentido de verdade formal, lógica, é os ossos que subjazem à carne.
O que faltou definir no citado texto são as várias acepções do termo verdade: verdade material (obtida pela intuição empírica directa conjugada com o raciocínio); verdade ideal (obtida pelo raciocínio trabalhando sobre os conceitos empíricos armazenados na memória ou na imaginação, sem verificação prática; muitos autores também a designam como verdade material porque tem conteúdo concreto); verdade formal ou lógica pura ( que o manual citado designa por validade).
No mesmo manual de Filosofia, incorre-se no erro de dissociar argumento e proposição como se fossem conceitos absolutamente extrínsecos entre si:
«Como vimos, as premissas e a conclusão dos argumentos são proposições. Portanto, os argumentos contêm proposições e as proposições podem ser verdadeiras ou falsas. Mas isto é diferente de dizer que o próprio argumento é verdadeiro ou falso. Um argumento não pode ser verdadeiro nem falso.»
«Do facto de um argumento ser um conjunto de proposições não se segue que o próprio argumento é uma proposição. Um conjunto de pessoas não é uma pessoa.»
«Os argumentos não podem ser verdadeiros nem falsos porque não são proposições; e não são proposições porque nada afirmam sobre a realidade. Um argumento limita-se a estabelecer uma relação entre proposições que afirmam coisas sobre a realidade.»
«Não é necessário definir a noção de verdade. A noção normal, que usamos no dia-a-dia, é suficiente.»
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag 18; o negrito é posto por mim).
É evidente que um argumento pode ser verdadeiro ou falso, ao contrário do que no Manual acima transcrito se sustenta. Vejamos o seguinte exemplo: «As vacinas infectam o sangue humano porque são, em si mesmas, constituídas pelo pus de cavalos, macacos, bois e outros animais doentes».
Este argumento anti-vacinação exprime-se numa única proposição, que inclui dois juízos: tem, portanto, valor de verdade ou falsidade. É um argumento verdadeiro ou falso. A isso não se pode fugir. É também evidente que um argumento afirma algo sobre a realidade, ao contrário do que exprime o texto transcrito do citado Manual.
Nos casos em que argumento não é uma única proposição, é um conjunto de proposições encadeadas de forma lógica e também nesse caso será verdadeiro ou falso. Vejamos um exemplo de um argumento anti-capitalista: «O capitalismo baseia-se na apropriação pelos capitalistas, da mais-valia que os operários produzem. Essa apropriação, fundada na propriedade privada das fábricas, das terras, lojas e armazéns e bancos, gera desigualdades sociais. Para acabar com estas, é imprescindível suprimir a propriedade privada dos meios de produção e troca, isto é, instaurar a auto-gestão no quadro de um Estado operário».
Este argumento, composto por diversas proposições, cada uma delas verdadeira ou falsa, é verdadeiro ou é falso no seu todo. Não é possível suprimir a dicotomia de valores verdadeiro/ falso no todo - o argumento - existindo esse valor em cada uma das partes.
Os autores do Manual A Arte de Pensar confundem argumento (encadeamento de juízos e raciocínios visando provar ou refutar uma tese, uma ideia) com conexão lógica do raciocínio, isto é, com mecanismo formal estruturador do argumento. Confundem o bolo (o argumento) com a forma metálica em que foi produzido (o esqueleto formal do pensar) Esse é o risco de alguma filosofia "analítica": ver a árvore e não ver a floresta.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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