Quinta-feira, 22 de Fevereiro de 2018
Questionar José Trindade Santos: fluxismo, sensismo e relativismo

 

No prefácio ao «Teeteto», José Trindade Santos expõe o seu estudo em que destaca os conceitos de fluxismo, sensismo e relativismo. Escreve sobre este importante texto de Platão que, a meu ver, inaugura a fenomenologia na Antiguidade:

 

«O exemplo da cor que não está nos olhos nem nas coisas, gerando-se entre ambos, concretiza a teoria de diversas perspectivas. Em primeiro lugar a cor não é em si, no sentido em que não é algo definido, que se acha em qualquer lugar concreto, pois resulta do impacto de um certo movimento no olho (153e-154a). Em segundo lugar, não é "uma coisa" "algo" ou de certo modo . Portanto não poderá aparecer a mesma a diversos sentintes ou até ao mesmo sentinte, pelo facto de resultar de concurso de distintos percipiente e percebido já que nem aquele será do mesmo modo, de si para si.»

 

«Vemos assim que a ontologia fluxista - tudo é movimento - não só constitui uma boa explicação da epistemologia relativista - as coisas são para cada um como lhe parecem - como a ultrapassa, a ponto de a reconfigurar por completo. Inicialmente, a dificuldade era a de compatibilizar as diferenças na percepção (aisthêsis) de um mesmo percepcionado (aisthêton) por diversos sentintes (aisthanomenoi) com a infalilibilidade, requerida pela equação da percepção da percepção com o saber.»

(José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.62-63; o bold é acrescentado por nós).

 

«Mas não há continuidade entre as duas doutrinas, pois a coerência e consistência do sensismo nada devem ao relativismo. "As coisas não podem ser para cada um como lhe parecem", porque não há "coisas", não há "cada um", nem nada que se assemelhe a parecer. O sensismo constitui a epistemologia possível num real submetido a um fluxo infrene, totalmente alheio a uma operação cognitiva. (ibid pág. 171; o destaque a bold é nosso).

 

E Trindade Santos define assim o sensismo:

«É o princípio sensista (PS) de acordo com o qual nada há além da percepção, constituindo "percipiente", "percebido" e "percepção" meras referências (154 a-b; 156-e- 157c, vide 1823b).»

«A fundamentá-lo encontramos apenas o "princípio fluxista" (PF) segundo o qual a realidade se reduz ao movimento, sem que seja possível dizer "o que" se move, pois careceria de identidade (152d).»

 

(José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pág 70; o bold é acrescentado por nós).

 

Convém dizer, ao invés do que acima escreveu Trindade Santos, que o sensismo - o ser reduz-se a um fluxo de sensações - é uma modalidade do relativismo, entendido como teoria que sustenta que a verdade varia incessantemente com as épocas, os lugares, as classes sociais, as etnias religiosas e políticas, etc. Trindade Santos interpreta relativismo como variação da percepção de indivíduo para indivíduo e parece não conceber que, ao contrário do que diz, não há trânsito do relativismo para o sensismo uma vez que este último é, em si mesmo, relativismo. Relativismo, no sentido que Trindade Santos lhe dá,  pertence ao género sociognosiológico (quem ou quantos conhecem...) e sensismo pertence ao género ontognosiológico ( o quê, o que se conhece). Mas relativismo em sentido mais amplo, teoria de que a  verdade não é absoluta, mas varia, pertence ao género modalidade ontológica( ser estático, ser mutável) engloba o sensismo, o fluxo das sensações, a impermanência sensorial que, no século XVIII, David Hume retomaria no seu fenomenismo de impressões de sensação em fluxo e de  ideias sem objecto real no mundo exterior.

Sensismo não se opõe a relativismo. O sensismo fluxista é relativismo e o sensismo imobilista - se é que tal posição existe; corresponde a imobilizar a imagem de um vídeo, a ver sempre algo imóvel eimutável - é absolutismo.

 

ONTOLOGIA SENSISTA OU EPISTEMOLOGIA SENSISTA?

 

Uma primeira questão é saber se é lícito usar o termo ontologia sensista. Trindade Santos usa-o tal como usa, com mais propriedade quanto a nós, o termo epistemologia (teoria do conhecimento) sensista. Ora a sensação permanece sempre na esfera da gnosiologia, não constitui ser, não é ontológica.

 

Quanto à designação de ontologia fluxista não a contestamos. Apenas destaco que fluxismo não é o ser mas um modo intrínseco ao ser. O ser é: matéria exterior em si mesma (realismo), matéria interior ao espírito, ideia (idealismo), correlação matéria em si-espírito humano (fenomenismo /fenomenologia) sob a égide do cepticismo. José Trindade Santos está certo quando afirma:

 

«Neste contexto, a análise do fluxo não parece servir qualquer propósito construtivo, limitando-se a mostrar que um mundo dominado pela fenomenologia fluxista não alberga um mínimo de estabilidade que lhe permita ser acessível à percepção, logo, à linguagem e ao saber. (José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pág.106-107).

 

É necessário frisar que o fluxismo não conduz necessariamente a uma «ontologia» sensista. O materialismo dialético, tal como a doutrina de Heráclito, é fluxista, considera que todas as coisas estão em devir, em perpétuo fluxo, mas sustenta uma ontologia realista, isto é, há um mundo de objectos materiais para lá da consciência do sujeito, independente desta e anterior a ela. O fluxisno não é por si só uma ontologia mas um modo de ser desta. Contrapõe-se a imobilismo. Fluxismo pode conduzir a três ontologias distintas: realismo, idealismo ou fenomenismo/fenomenologia. O sensismo ou empirismo sensista- a realidade exterior não passa de um fluxo de imagens sensoriais - é uma espécie acidental, isto é, não contida na totalidade dentro do género fenomenismo. Há um fenomenismo sensório-intelectual - o de David Hume - que reduz a realidade exterior a um fluxo de imagens e ideias e que pode ser interpretado como idealismo.

  

E relativismo tem dois sentidos, o que não é clarificado por Trindade Santos: um deles, no género sociológico, é o de cada homem ou grupo de pessoas ver a realidade e os valores de forma diferente de outros homens ou grupos de pessoas;  o outro é o da mutação incessante da realidade em si mesma.

 

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Quinta-feira, 20 de Outubro de 2016
Teste de filosofia do 10º ano de escolaridade, turma A (Outubro de 2016)

Eis um teste de filosofia do 10º ano que explora a rubrica «Os grandes temas da filosofia».

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA A

 

20 de Outubro de 2016. Professor: Francisco Queiroz

I

“Poderá classificar-se a teoria de Platão como um dogmatismo crítico, de teor metafísico e ético. O modo de pensar e viver dos filósofos-reis, na Polis ideal de Platão, opunha-se, pelo menos aparentemente, ao ceticismo, pragmatismo e ao subjetivismo propagado pelos sofistas.”

 

1)Explique, concretamente este texto.

 

2)Relacione, justificando

A) Yang, Yin e Tao no taoísmo

B) Mundo do Mesmo ou Inteligível, Mundo do Semelhante e demiurgo em Platão.

C) Unidade da essência e multiplicidade das aparências empíricas nas teorias cosmológicas de Heráclito de Éfeso e Anaxágoras.

D).Ascese em Platão e as teses de que «filosofar é aprender a morrer» e «o corpo é o cárcere da alma.

 

 

1) Dogmatismo crítico é toda a teoria que assenta em certezas construídas com a ajuda de dúvidas, do ceticismo, uma teoria que exigiu reflexões profundas. As teorias científicas em geral são dogmatismos críticos: afirmar que o número atómico do hidrogénio é 1 e o do oxigénio 8 exigiu experiências e cálculos matemáticos, são dogmas que passaram o crivo da crítica. O dogmatismo de Platão é metafísico, trata do invisível e inaudível, na medida em que postula que há um mundo de modelos perfeitos, imóveis e eternos (Bem, Belo, Justo, Sábio, Cubo, Esfera, Homem, Mulher, etc) acima do céu visível. É crítico porque sustenta teses que exigem muita reflexão como, por exemplo, «o tempo é a imagem móvel da eternidade», «conhecer é recordar». É ético porque fala dos modelos eternos do Bem e do Justo. (VALE QUATRO VALORES). Os filósofos-reis ou arcontes, na pólis de Platão, eram homens e mulheres, dotados de alta virtude intelectual e moral, que faziam as leis e governavam a cidade. Não podiam ter prata nem ouro nem privilegiarem os seus filhos, por isso viviam em comum e faziam troca de casais, de modo a não saber quem era o pai de cada criança. Ao inspirarem-se nos arquétipos do Mundo Inteligível rejeitavam o ceticismo, doutrina  que duvida de tudo, incluindo o mundo dos Arquétipos, o pragmatismo, doutrina que diz que a verdade se limita ao mundo empírico e prático, devendo pôr-se de parte os princípios metafísicos mais ou menos impossíveis de serem postos em prática e o subjectivismo, doutrina que afirma que a verdade não é objetiva, varia de pessoa a pessoa. Estas doutrinas eram comuns entre os sofistas, filósofos do período antropológico da Grécia antiga, em regra professores, advogados, juristas e políticos que ensinavam retórica e cobravam dinheiro (VALE QUATRO VALORES).

 

2) A) O Tao é a mãe do universo, algo de obscuro e silencioso que circula por toda a parte e é o modelo do céu e divide-se em duas ondas formando uma sinusoidal: o Yang (alto, calor, dilatação, verão, som, sol, vermelho, movimento, exterior) e o Yin (baixo, frio, contração, inverno, silêncio, lua, azul, imobilidade, interior). A sucessão dos dias e das noites, do trabalho e do repouso, das sementeiras e colheitas, representa o ritmo yang-yin, faz parte do Tao do universo. (VALE TRÊS VALORES).

 

2) B) Mundo Inteligível (kosmos noéthos) é o mundo dos Arquétipos ou modelos eternos de Bem, Belo, Justo, Sábio, Números, Homem, Mulher, etc, acima do céu visível. É incriado. Mundo do Semelhante (kosmos homóios) é o mundo do céu visível, do tempo e das operações matemáticas, composto pelo Sol e astros incorruptíveis em movimento. O demiurgo é o deus operário que fez o Mundo do Semelhante e o mundo do Outro ou Sensível, este último feito de corpos físicos corruptíveis (pedras, árvores, rios, planícies, animais, etc) tomando como modelo os arquétipos de Astro, Árvore, Montanha, Rio, etc. (VALE TRÊS VALORES)

 

2)C) Na teoria de Heráclito, há uma essência una (unidade da essência) em todas as coisas: o fogo. As árvores, as pedras, os animais, a terra, etc.,- ou seja as múltiplas aparências empíricas, as coisas que vemos e tocamos - são fogo condensado, arrefecido, às vezes liquidificado ou sublimado. Na teoria de Anaxágoras, um mesmo objecto visível, macroscópico - exemplo uma cenoura- é composto de milhares de princípios ou formas minúsculas da mesma natureza,chamados princípios homeoméricos, - a cenoura é composta de milhares de pequeníssimas cenouras invisíveis. Um mesmo princípio homemomérico - a essência fígado humano, por exemplo - pode estar presente microscopicamento na multiplicidade das cenouras, e das beringelas, que são aparências empíricas ou objectos visíveis que, ingeridas, fortalecem o fígado humano.(VALE TRÊS VALORES)

 

2) D) A ascese é a ascensão da parte superior da alma humana, o Nous, ao Mundo Inteligível, enquanto está ligada ao corpo humano vivo.  Há vários métodos de ascese: filosofia, porque esta nos ensina a morrer para os bens materiais e a fama («Que importa passares a vida a acumular ouro se ao morrer deixas tudo? Pensa, filosofa sobre a rapidez da vida»); matemática, porque se baseia na contemplação dos Arquétipos de Números Um, Dois, Três, Quatro Cinco, etc, e de Cubo, Esfera, Cone, etc; música, na medida em que nos eleva espiritualmente, não se trata de qualquer tipo de música; ginástica, em particular o ioga; jejum, na medida em que domina a gula e outras paixões do corpo. (TRÊS VALORES)

 

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Sexta-feira, 10 de Outubro de 2014
Sobre a crítica de Orlando Braga ao taoísmo

 

Orlando Braga (20 de Fevereiro de 1958, ao início da madrugada), um intelectual monárquico e católico do Porto, um polemista temível, autor de blogs com críticas inteligentes e desassombradas à ideologia da globalização  dos Bilderberg e da Trilateral e ao fascismo bonapartista dos mundialistas, à «apostasia do papa Francisco»,  e a muitos aspectos da vida política e cultural portuguesa, publicou em 6 de Outubro de 2014 o post «Erros do taoísmo» no seu blog espectivas.worldpress.com. Aí escreveu:

 

«.Depois de estudar as religiões (ou as “filosofias místicas orientais”, como está na moda dizer-se em vez de “religiões”) do Oriente, cheguei à conclusão de que o catolicismo é a forma religiosa mais evoluída. Temos, por exemplo, o Taoísmo que está na moda nos meios culturais de certas “elites”. Os conceitos de Yang e Yin partem do princípio de que “os opostos se complementam”, por um lado, e por outro lado de que “os opostos se anulam no Tao”. » (Orlando Braga)

 

Crítica minha: os opostos anulam-se no Tao? Não é verdade. O Tao não se divide em opostos enquanto origem, unidade primordial, princípio metafísico: mas, enquanto movimento «sinusoidal» da natureza divide-se em dois contrários, está composto de oscilações permanentes, de Yang (dilatação, calor, subir, fluxo, espírito) e de Yin (contração, frio, descer, refluxo, matéria), verão (Yang)- inverno (Yin), dia (Yang)-noite (Yin), diástole (Yang)- sístole (Yin), fluxo da onda (Yang)-refluxo da onda (Yin). Os opostos não se anulam, antes geram-se mutuamente no Tao, o que coincide com as doutrinas de Heráclito e Hegel do perpétuo devir como luta de contrários.

 

O TAOÍSMO NEGA A TRANSCENDÊNCIA?

Escreve ainda Orlando:

«Jesus Cristo não negou a existência dos opostos; pelo contrário, chamou-nos à atenção para eles. Mas Ele apelou para a transcendência, para além da imanência: os opostos eram por Ele considerados meios (para algo transcendente) e não fins em si mesmos (como acontece no Taoísmo). » (Orlando Braga)

 

Crítica minha: é um pouco confuso dizer que o taoísmo considera os opostos como fins em si mesmos e que não apela para a transcendência. O taoísmo não nega a transcendência: convida a contemplá-la como zona de obscuridade que é. E neste campo coincide com os cabalistas judaicos que falam do Ein-Sof (o Nada incognoscível) que é a divindade além do Deus revelado (Iavé, Eloim, etc) e com os místicos alemães que falam de Deus e da deidade como mestre Eckhart. No taoísmo, definido como um quietismo místico individualista («dominar o sopro vital pelo espírito é ser forte», escreveu Lao Tse) a alma sobe em direcção ao Tao, a Mãe do universo.

Lao Tse (601-517 a.C), filósofo do taoísmo escreveu:

 

«O Tao que se procura alcançar não é o próprio Tao;

o nome que se lhe quer dar não é o seu nome adequado.»

 «Sem nome, representa a origem do universo;

com um nome, torna-se a mãe de todos os seres.

Pelo não-ser, atinjamos o seu segredo;

pelo ser, abordemos o seu acesso.

Não-Ser e Ser saindo de um fundo único só se diferenciam pelos seus nomes.

Esse fundo único chama-se Obscuridade.

Obscurecer esta obscuridade, eis a porta de toda a maravilha.»  (Lao Tse, Tao Te King, Editorial Estampa, pag 13)

 

Sem os ritos do confucionismo chinês, religião de Estado, o taoísmo preconiza uma ascese que não é pura imanência mas a contemplação metafísica da natureza e o abandono do estudo livresco e da carreira política, a meditação («Aquele que fala não sabe/ aquele que sabe não fala. Cerra a tua abertura/fecha a tua porta/ cega o teu gume/ desata todos os nós/ funde numa só luz todas as luzes - diz Lao Tse) de tal modo que o santo poderia atingir uma "ilha dos bem aventurados" - do mesmo tipo da ilha de Avalon, onde estaria o Santo Graal, na quarta dimensão, como, possivelmente, Orlando Braga acreditará. Isto não é transcendência?

 

A LUZ COMO ONDA NÃO SE OPÕE À LUZ COMO FEIXE DE PARTÍCULAS? OS CONTRÁRIOS NÃO SE COMPLEMENTAM?

 

Escreve ainda Orlando Braga:

 

«Por outro lado, segundo o Cristianismo original, “aquilo que se opõe não se complementa”: dizer que “duas coisas que se opõem se complementam”, é uma contradição em termos. Só se complementam duas coisas que têm afinidades entre si, embora diferentes entre si. “Complementaridade” significa “diferença”, mas não propriamente “oposição”.

Por exemplo, a complementaridade onda / partícula, na física quântica, não significa que a onda se “oponha” à partícula: significa, em vez disso, que são estados diferentes de existência que encontram, na complementaridade, uma forma de ser. E se a existência se resumisse aos opostos (como defende o Taoísmo e Heraclito), não faria sentido a existência dos neutrões do átomo, que não se opõem a nada. » (Orlando Braga, «Erros do taoísmo», espectivas.worldpress.com; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Orlando Braga não intuiu a lei dialética da unidade de contrários: em cada ente ou fenómenos há uma luta de contrários os quais, apesar de se oporem entre si, formam uma unidade (complementaridade).  Aliás, na estrutura da luz, onda opõe-se a partícula: a luz não pode ser onda e partícula sob o mesmo aspecto ao mesmo tempo (princípio da não contradição). O termo opostos em Aristóteles tem uma acepção bastante mais vasta do que a que Orlando Braga lhe dá: contrário, contraditório, relativo e privativo. Aristóteles escreveu:

 

«E se a contradição, e a privação, e a contrariedade e os termos relativos são modos de oposição e o primeiro de eles é a contradição e se na contradição não há termo intermédio, enquanto que pode havê-lo entre os contrários, é evidente que contradição e contrariedade não são o mesmo.» (Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1055 b, 1-5)

 

 O neutrão é um intermédio de protão e electrão e opõe-se a ambos como semi-contrário - noção que já desenvolvi em outros posts deste blog. Há, por conseguinte, intermédios no modo de pensar dialético, o terceiro termo, a síntese existe. Convém esclarecer que um dos princípios do taoísmo é «em todo o Yang, há um pouco de Yin; em todo o Yin há um pouco de Yang» o que, traduzido em exemplos, dá fórmulas inquietantes como : em todo o homem, há um pouco de mulher; em toda a mulher, há um pouco de homem; em toda a bondade, há um pouco de maldade; em toda a maldade, há um pouco de bondade; em toda a democracia, há um pouco de totalitarismo; em todo o totalitarismo, há um pouco de democracia; em toda a monarquia há um pouco de república, em toda a república há um pouco de monarquia.

 

O NÃO-SER É UMA FORMA DO SER?

 Afirma ainda Orlando Braga:

 

«Finalmente, e ao contrário do que defende o Taoísmo, os opostos não se anulam, porque se isso fosse verdade, teríamos que considerar, por exemplo, o Ser e o Não-ser em pé de igualdade de valor, isto é, teríamos que pensar que seria possível, por exemplo, a existência uma oposição entre o Ser e o Não-ser que redundasse na anulação dos dois. Ora, o Não-ser é uma forma de Ser; e por isso não pode haver uma oposição entre dois conceitos sendo que um deles está contido no outro.
O misticismo, em qualquer religião ou doutrina, só tem valor e é credível se partir de um princípio de respeito pela racionalidade e pela lógica. Foi também esse um dos legados que Jesus Cristo nos deixou através, por exemplo, das suas parábolas. » (Orlando Braga; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Crítica minha: o não ser não é uma forma de ser. Já Parménides disse: «O ser é, o não ser não é...». Ser e não ser excluem-se mutuamente. O não existente não é uma forma de existente, pura e  simplesmente está fora do círculo existencial. Quando o taoísmo fala em que o Tao abarca o ser e o não-ser, refere-se a ser e não-ser determinados (ser verão, não-ser verão, etc)  e não a ser em abstracto. Porque ser e não ser, em abstracto, sem determinações, excluem-se em absoluto. Quanto à racionalidade e à lógica do evangelho de Cristo, que Orlando Braga enaltece, parece estar ausente em passagens do evangelho como esta:

 

«Eu vim trazer fogo à Terra, e que quero eu, senão que ele se acenda? Eu, pois, tenho de ser batizado num batismo, e quão grande não é a minha angústia, até que ele se cumpra? Vós cuidais  que eu vim trazer paz à Terra? Não, vos digo eu, mas separação; porque de hoje em diante haverá, numa mesma casa, cinco pessoas divididas, três contra duas e duas contra três. Estarão divididas: o pai contra o filho, e o filho contra seu pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra. (Lucas, XII: 49-53)

 

O taoísmo é místico em certa vertente, mas muito racional em outra. Se conhecesse o carácter político conservador do taoísmo de Lao Tse, que preconiza uma «ditadura sensata» sobre o povo, dando a este condições económicas dignas, talvez Orlando Braga não minimizasse esta filosofia em que, provavelmente, Salazar se inspirou. E sabe-se que Orlando alinha pela contra-revolução monárquica popular contra os excessos da esquerda e a deriva do centro para a esquerda. Eis o conselho de Lao Tse:

 

«Rejeita a sabedoria e o conhecimento,

o povo tirará cem vezes mais proveito.
 
«Rejeita a bondade e a justiça,
 
o povo voltará à piedade filial e ao amor paternal.
 
Rejeita a indústria e o seu lucro,
 
os ladrões desaparecerão.»
 
«Se estes três preceitos não forem suficientes,
 
ordena o que se segue:
 
«Distingue o simples e abraça o natural,
 
reduz o teu egoísmo
 
e refreia os teus desejos». (Lao Tse, in Tao Te King)

 

 Orlando Braga é prosélito do catolicismo e «de uma penada» liquida ou minimiza, sumariamente, o valor de outras religiões. Compreendo-o: também fui educado no preceito de que «ninguém se salva fora da igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo». Mas, racionalmente, há que estudar as outras religiões sem clubismo, tanto quanto possível. Do cristianismo, só podemos dizer que gerou a democracia contemporânea baseada no sufrágio universal e gerou-a sobretudo pela via do protestantismo,  que contestou a inquisição e o papado romano.

 

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Sábado, 24 de Novembro de 2007
Do Caos ao Cosmos ou do Espírito ao Cosmos? (Leituras de René Guénon)

René Guénon distinguiu  dois polos da existência: o polo essencial, superior, das formas puras, e o polo substancial, da matéria-prima indeterminada. Segundo Guénon, o mundo da Tradição (até ao final da Idade Média) situava-se no polo essencial ao passo que o mundo Moderno, iniciado com o Renascimento, e prosseguido com a Idade Moderna de Descartes, o Século das Luzes e os últimos dois séculos de industrialismo, materialismo e individualismo, centra-se no polo substancial.

 

Guénon opõe como contrários a qualidade (essência) à quantidade (substância) - numa antinomia que não é perfilhada por escolásticos de ascendência aristotélica como São Tomás de Aquino que incluía a substância dentro da essência. O próprio Aristóteles sustentava a posição de que a substância é um composto de essência (forma comum) e de matéria-prima, informe, o que não coincide com a posição de Guénon. Escreveu este:

 

«É necessário fazer uma distinção nítida entre dois pontos de vista que estão ligados respectivamente aos dois polos da existência: se se diz que o mundo foi formado a partir do "caos", é porque se encara unicamente sob o ponto de vista substancial, e então é preciso considerar este começo como intemporal, porque, evidentemente, o tempo não existe no "caos", mas só no "cosmos". Se quisermos, pois, referir-nos à ordem de desenvolvimento da manifestação que, no domínio da existência corporal e pelas condições que a definem, se traduz por uma ordem de sucessão temporal, não é deste lado que devemos partir, mas pelo contrário, do lado do polo essencial, cuja manifestação, de acordo com as leis cíclicas, se afasta constantemente para descer até ao polo substancial. A "criação", enquanto "resolução" do caos, é, de certo modo, "instantânea", e é propriamente o Fiat Lux bíblico; mas o que está verdadeiramente na origem do "cosmos", é a própria Luz primordial, isto é, o "espírito puro" no qual estão as essências de todas as coisas; e, a partir daí, o mundo manifestado só pode efectivamente baixando cada vez mais até à "materialidade".»

(René Guénon, O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, Publicações Dom Quixote, pag 80).

 

O ponto de vista de Guenón é, obviamente, o de Sócrates e Platão, segundo os quais o Espírito é a causa do mundo, opondo-se às filosofias de Tales de Mileto, Anaxímenes, Anaximandro, Heráclito, Anaxágoras e outros que afirmam um ou vários princípios materiais (água, ar, fogo, terra, etc) como causa do universo.

 

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