José Ortega y Gasset, (9 de Maio de 1883, Madrid; 18 de Outubro de 1955), o grande representante da fenomenologia na filosofia espanhola do século XX, era um filósofo de vocação holística: tal como Hegel, aplicava o princípio hermético das correspondências de que «o microcosmos é espelho do macrocosmos». Reeditando o pensamento de Hegel, filósofo adverso à filosofia analítica, neste caso porque estabelece correlações entre o geográfico e o histórico-social, o que os filósofos analíticos não concebem, escreveu:
«Segundo Hegel, há três tipos de terra para os efeitos históricos - o que eu chamaria três paisagens - o planalto, o vale fecundo, a costa. Esta divisão foi inspirada pela consideração de que o nosso planeta não é só terra, mas também água. »
(José Ortega y Gasset, Ideas y creencias y otros ensayos, Alianza Editorial, Madrid, 2019, pág. 86; o destaque a negrito é posto por nós).
«Há, segundo Hegel, três configurações topográficas, três princípios geomórficos que condicionam três tipos de vida natural às quais correspondem três estádios, ou formas do Espírito, quer dizer, do Estado. Um é a meseta, o enorme planalto. O seu tipo vital é o nomadismo. A existência neste país seco é pobre, mas ademais não está limitada por nenhuma contenção especial. Viver é vagabundear. Hoje está.se em um lugar, amanhã em outro. Não há nenhuma força que obrigue à convivência. O homem sente ímpetos de empresa, mas descontínuos e informes, imprecisos. O único que lhe pode ocorrer é lançar-se para diante, sem rumo, sem meta, sem desígnio preformado. Nestas condições não é possível o nascimento da lei, do Estado, que implica convivência estabilizada. Há só a momentânea organização da guerra sob um caudilho genial que reúne as hordas normalmente dispersas e cai com elas sobre as terras férteis.» (José Ortega y Gasset, ibid, pp.89-90).
A configuração geográfica da Terra é, tal como as formas de Estado, fruto do Espírito ou Ideia Absoluta que é Deus. Segundo Hegel, Deus ou Ideia Absoluta é o arquitecto e, simultaneamente, a argamassa da História Universal. Para Hegel, o correr dos rios, o crescer das plantas, o nascer e o pôr do sol são raciocínios de Deus alienado em natureza biofísica, em universo material, na fase do Ser fora de Si. Prossegue Ortega:
«A meseta termina em ladeiras onde os rios evacuaram os vales. Às vezes estas ladeiras confinam imediatamente com o mar: Perú, Chile, Ceilão. Não formam, portanto, um âmbito suficiente para constituir um novo tipo de vida. Ao contrário, os vales compridos - Mesoptâmia, Egipto, China - representam um novo princípio geohistórico. O vale é uma unidade completa, fechada em si, independente, não como a meseta, que é a independência inconcreta do que não tem limites e não é nada determinado. O planalto não tem estrutura porque é sempre igual a si mesma. O vale tem uma organização diferenciada: o rio e as suas duas ribeiras. É ademais, a terra mais fértil. A agricultura surge nele, e com ela a propriedade, as diferenças de classe, em suma, as normas jurídicas. A agricultura não é uma actividade momentânea, explosiva e de acaso como o puro belicismo do nómada. Tem de reger-se segundo o ciclo das estações e é, em si mesma, regime geral e não caprichoso. Por outro lado, o vale obriga à convivência que é, por sua vez, impossível sem modos gerais de conduta, quer dizer, sem um Estado, sem um império das leis. Eis aqui como todos estes caracteres telúricos do vale preformam um tipo de vida que já não é a vida meramente natural, mas uma vida conforme a normas, na qual aquele se vem encaixar. Essa sobrevida normativa é precisamente o Espírito. »
«Mas o vale fixa o homem ao terreno: limita-o, torna-o dependente de um sistema pouco variado de condições. De aqui que estas civilizações fluviais tenham girado eternamente sobre si mesmas, reclusas em um reportório de temas, de modos, de intentos, de normas. São culturas "hieráticas", quer dizer rígidas: a egípcia, a chinesa. O grande princípio libertador é a costa, onde combate a intensa dualidade da terra e do mar. "O mar dá sempre lugar a um tipo de vida peculiar. O elemento indeterminado dá-nos uma imagem do ilimitado e infinito, e ao sentir-se nele o homem anima-se para o mais além sobre toda a limitação. O mar suscita o valor; incita o homem à conquista e à rapina, mas também ao lucro e à indústria. O trabalho industrioso refere-se àquela classe de fins que se chamam necessidades. Contudo, o esforço para satisfazer estas necessidades traz consigo que o homem fique enterrado em esse ofício. Mas, quando a indústria passa pelo mar, a relação transforma-se. Os que navegam pretendem certamente ganhar, lucrar, satisfazer as suas necessidades; mas o meio para isso inclui neste caso o contrário do propósito com que se escolheu, a saber: o perigo". (1) A vida marítima é um constante risco de perder-se a si mesma. É livre diante de si mesma e implica serenidade e astúcia incessantes. Por tudo isso tem um claro sentido de criação e foi em qualquer parte o mar o grande educador para a liberdade. O mar é um perpétuo "mais além da limitação da terra". É o verdadeiro "espírito da inquietação" que do seu movimento elementar passa para as almas dos seus moradores e faz do existir uma permanente criação».
(José Ortega y Gasset, Ideas y creencias y otros ensayos, Alianza Editorial, Madrid, 2019, pp. 91-93; o destaque a negrito é posto por nós).
Sobre estas últimas frases de Ortega interrogamo-nos: não será o facto de a Grã-Bretanha ser uma grande ilha cercada de mar por todo o lado que lhe conferiu o papel de potência dissonante, refúgio da liberdade, desde os tempos míticos do Rei Artur e da Távola Redonda passando pelos alvores do parlamentarismo moderno até à segunda guerra mundial em que resistiu à Luftwaffe, a aviação alemã, e até hoje em que ensaia sair da União Europeia tutelada pela Alemanha e a França? E a liberdade de Portugal como país independente que a Espanha sempre quis anexar não se deverá à costa marítima portuguesa onde se situam as cidades principais, Lisboa e Porto, e à proximidade com a grande ilha que é a Grã-Bretanha?
NOTA 1-O texto que começa em "O mar dá sempre lugar a um tipo de vida peculiar" e termina em "propósito com que se escolheu, a saber: o perigo" é uma citação de Hegel.
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