Cirne-Lima oferece uma definição insubstancial, formal, de Bem e de Mal na sua «ética da coerência dialéctica» que não é, senão, uma cópia retocada das éticas procedimentalistas de Habermas e Apel.
«Qual é o critério que deve reger nossas decisões livres? Evidentemente aquele que é expresso pelo princípio da coerência universal. Bom é tudo aquilo que é coerente consigo mesmo, com o seu meio ambiente imediato - os outros homens - e mediato - a natureza - e, em última instância, com todo o universo. Mau é aquilo que é incoerente em qualquer dos níveis citados. Tanto o bem como o mal se constituem através da coerência ou da incoerência, ambas entendidas em seu sentido pleno, que do individual vai para o universal, e deste retorna àquele, num movimento de vai-e-vem que caracteriza e constitui tanto o indivíduo em seu bom sentido como o universal concreto que é o universo. Mas, em casos do dia-a-dia, como saber se uma decisão é coerente em todos esses níveis? Aí é preciso, primeiro, conversar consigo mesmo, para ver se há coerência interna. Logo depois, conversar com os homens ao meu redor, de minha família e de minha sociedade, para ver se minha decisão pode ser por eles aceite sem prejudicá-los. A seguir, devo ampliar essa conversa real, feita na roda do discurso do meu mundo real, de maneira que ela se transforme numa conversa na roda ideal do discurso, roda esta que abrange todos os homens, mais, todos os seres do universo. A decisão é boa se e quando ela pode ser inserida harmoniosamente na rede de relações que constituem o universo. A acção é eticamente boa se e enquanto ela possui, dentro de si, coerência universal. Má, se e quando não há coerência universal.»
«Vemos, de imediato, a semelhança entre a teoria proposta e a ética do discurso de Apel e Habermas. Certo, correctíssimo. Meu princípio de coerência, quando aplicado ao espírito, é uma formulação do imperativo categórico de Kant, do princípio U de Apel e Habermas. Só que minha proposta explica coisas que eles não conseguem explicar, como, por exemplo, as regras do bem-viver (dês guten Lebens), que eles confessam não poder fundamentar e que eu fundamento de maneira bem simples através da coerência consigo mesmo, pensada é claro como etapa que leva do eu individual ao eu que se sabe o universo. Apel e Habermas não conseguem fundamentar a eticidade só com os princípios D e U, e dizem expressamente que tem de haver no discurso Gründe, razões, que são decisivas. Isso não obstante, não introduzem um terceiro princípio, um princípio G (Gründe), sem o qual a ética do discurso não subsiste, por recair no formalismo vazio. (Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 226-227; o bold é nosso)
O coerentismo ético de Cirne-Lima, segundo o qual o bem é coerência consigo mesmo, com os outros e com o universo, é um formalismo. Não é uma ética substancialista como a de Aristóteles, Nietzschze ou Marx que indicam, expressamente, o que é o bem e o que é o mal em dadas circunstâncias. Na verdade, Cirne-Lima não nos diz nada em concreto sobre o conteúdo sensível-ideal do bem e do mal. Por isso, é uma ética formalista-procedimentalista, uma cópia das de Apel e Habermas, a que se adiciona a palavra «coerência».
A coerência é um princípio insuficiente para discernir o bem do mal. Imaginemos um carrasco ao serviço da Inquisição ou um membro da Santa Vehm, organização antijudia existente na Alemanha já no século XIV, que assassina homens ou mulheres à traição porque são judeus ou ricos detestados pela população da zona e se sente bem consigo mesmo após cada homicídio (coerência consigo mesmo). Suponhamos que a própria população do bairro ou da aldeia aplaude os crimes (coerência com os outros) uma vez que participa do mesmo espírito sanguinário colectivo. Suponhamos ainda que abutres ou outras aves de rapina vêm devorar os cadáveres das vítimas (coerência com o universo: reciclagem natural de resíduos). Segundo o princípio da coerência de Cirne-Lima estes homicídios de judeus ou outros, cometidos por gente sem remorsos (em coerência consigo mesma) com o consentimento da larga maioria ou da totalidade da população em redor e em harmonia com o universo, são, necessariamente, actos bons.
A VACUIDADE ÉTICA DO «UNIVERSAL CONCRETO» DE CIRNE LIMA
«O erro cometido por Kant e pelos kantianos, por Apel e Habermas, consiste, a meu ver, em pensar o princípio da universalização como um universal abstracto como todos nós, depois do nominalismo de Ockham, o fazemos. O universal, pensado assim, é uma classe e, ao contrário das ideias platónicas e das formas aristotélicas, é um construto linguístico, um fruto da criação colectiva, e é, por isso, algo arbitrário. Hoje sabemos que um conceito universal, neste sentido contemporâneo do termo, possui sentido conforme seu uso; o uso define, assim, o universal. O princípio da universalização, entendido desta forma, como universal abstracto, não leva a um critério universal do dever-ser que seja defensável, porque universal tomado nesse sentido significa sempre algo de particular, histórico, contingente, pertencente a uma determinada cultura.»
(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 228; o bold é nosso)
A primeira frase do excerto acima é paradoxal: então os teoremas e as operações matemáticas, concebidas ou repensadas após Ockham, são arbitrárias pelo facto de serem universais? Em que é que o nominalismo de Ockam, que afirmou a irrealidade dos universais, mudou a posterior maneira de pensar os universais pela grande maioria dos pensadores pós Ockham?
Não consta que todos nós pensemos, desde Ockham, o universal como um constructo linguístico, algo arbitrário.
Vejamos como Cirne-Lima caracteriza o «universal concreto» que a sua ética veicularia, e que, segundo ele, «não existe nas éticas de Habermas e Apel»:
«O panorama muda completamente se tomamos o princípio de universalização e/ou imperativo categórico não como um universal abstracto mas como o universal concreto. O universal concreto, termo típico da filosofia de Hegel mas já prefigurado em toda a tradição neoplatónica, significa não um pigmento da mente, mas algo existente no mundo real e concreto. Assim - exemplos de Hegel - a família, a sociedade e o Estado são formas de universal concreto. Eu acrescentaria: a linguagem falada por um povo é um universal concreto; uma passeata de grevistas protestando contra o fechamento de uma fábrica e gritando, em uníssono, palavras de ordem, os hinos cantados em cantochão pelos monges de uma abadia medieval, os movimentos de ordem unida exibidos por um grupo de elite de fuzileiros, tudo isso são universais concretos, nos quais o indivíduo como que desaparece, ficando no primeiro plano aquele todo maior, real, existente, concreto, visível, ordenado. O universal concreto em seu sentido pleno é, nisso sigo fielmente Hegel, o universo. » ( )
«Este sim, é o critério último da eticidade: a universalização, entendida como possibilidade de inserção harmoniosa na totalidade, camada por camada, através de todas as mediações, até chegar ao universal concreto que é o universo. Este é o terceiro princípio do meu projecto de sistema, o princípio da coerência universal. Ele difere do imperativo categórico de Kant e do princípio U de Habermas porque o universal nele não é abstracto mas sim concreto.»
(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 228-229; o bold é nosso)
Esta universalização entendida como encaixe harmonioso das peças da máquina mundi e da societas umas nas outras continua a ser formalismo ético, ainda que Cirne Lima tente fazer parecer que não.
Desçamos ao concreto, dividamos cada universal concreto em dois ou mais pólos, o que Cirne-Lima não faz. Se se tratar de movimentos de uma elite de fuzileiros (um universal concreto) reprimindo uma manifestação de grevistas (outro universal concreto), como discernir o bem do mal? De que lado nos devemos colocar? Cirne Lima não responde a isto. Se a coerência for fruto da revolução, aplaudirá os grevistas? Se a coerência nascer da repressão executada pelas forças da ordem, aplaudirá as balas disparadas pelos fuzileiros? Que nos ensina a «ética da coerência dialéctica» sobre a revolução popular democrática que toma forma nas ruas de Teerão em Junho de 2009?
Devemos unir-nos aos conservadores de Amadinejad, à polícia, e preservar a harmonia da sociedade islâmica tradicional? Ou devemos apoiar os revolucionários que querem harmonizar-se com o modelo pluralista das sociedades ocidentais capitalistas? Ou manter-nos neutrais?
Coerência é um termo vago ou formal demais para ser suporte de ética não formalista. E Cirne-Lima petende que a sua ética é não formalista. De facto, é formalista regional, ao passo que a de Kant é formalista universal. Ao contrário de Aristóteles, de São Tomás de Aquino, de Karl Marx, de Max Scheller e de muitos outros filósofos que veiculam éticas materiais, Cirne Lima deixa-nos a flutuar no formalismo e arma-nos com a espada abstracta da «coerência dialéctica» pretendendo superar Kant, Habermas e Apel. Mas acaso Habermas ao preconizar a ética do diálogo/discurso para consensuar valores éticos não está a unir o universal formal ao substancial particular de cada grupo social? Acaso isso não é coerência dialéctica, o mesmo que preconiza Cirne Lima?
A pretensão de Cirne Lima em superiorizar-se a Habermas e Apel é apenas um sofisma, alardeando o valor mágico da palavra «coerência» sem lhe determinar a substância concreta em cada caso.
Além disso, esta noção de eticidade orgânica expressa por Cirne Lima acaba por anular a liberdade individual, a dissidência do singular face ao colectivo: ele mesmo o reconhece ao dizer que «tudo isso são universais concretos, nos quais o indivíduo como que desaparece, ficando no primeiro plano aquele todo maior, real, existente, concreto, visível, ordenado.» O fascismo, o estalinismo, as sociedades imperiais e outros modelos sociais encontrariam justificação no «princípio da coerência ética»: afinal, o indivíduo é apenas um elo da cadeia harmónica.
Comparado com este organicismo ético não dialéctico - os pilares da ética são o carácter dos grupos sociais, incluídos os povos, e o carácter da natureza biofísica, numa harmonia universal - o formalismo de Kant é muito mais revolucionário porque coloca o centro de gravidade da decisão ética em cada indivíduo.
A pretensão de Cirne Lima de ter sido «pioneiro» em estender a ética ao todo é visível no seguinte texto:
«Minha divergência está no facto de que a coerência universal, como a penso, perpassa todo um sistema, lógica, natureza e espírito; isso Apel e Habermas não aceitam de maneira alguma. Habermas disse, com muita elegância, que meu projecto é por demais ambicioso (zu ehrgeizig).
«Em compensação, exactamente por ser ambicioso, por ser abrangente, o projecto aqui apresentado consegue dar uma fundamentação sólida à ecologia, o que é um desideratum que praticamente ninguém consegue satisfazer.»
(Carlos Cirne Lima, Ética de coerência dialéctica, in Manfredo A.Oliveira, organizador, Correntes fundamentais da Ética Contemporânea, Editora Vozes, pag 229; o bold é nosso)
Antes de Cirne-Lima, Hans Jonas teorizou uma ética de responsabilidade que envolve o respeito pela natureza biofísica. E antes de Hans Jonas, muitos povos primitivos, mágicos, alquimistas e filósofos diversos preconizaram a religião da natureza com a correspondente ética ecológica.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Habermas, filósofo alemão da Escola Crítica de Frankfurt, nascido em 1929, entende a racionalidade de forma holística: recusa separá-la em dois continentes, o formal e o substancial. Nesse sentido, critica Max Weber.
«O potencial racional comunicativo é simultaneamente desenvolvido e alterado no decorrer da modernização capitalista. »
«A simultaneidade e a interdependência paradoxais dos dois processos só é possível quando se vencer a falsa alternativa que Max Weber estabeleceu entre racionalidade substancial e formal. Parte-se aqui do princípio de que o desencantamento (Entzauberung) de imagens religiosas e metafísicas do mundo da racionalidade juntamente com os conteúdos das tradições, rouba todas as conotações de conteúdo e assim também todas as forças para, além da organização teleologicamente racional dos meios, poder ainda exercer uma influência estruturante no mundo da vida. Em oposição a isto gostaria de insistir em que a razão comunicacional, apesar do seu carácter puramente processual, aliviado de todas as hipotecas religiosas e metafísicas, está directamente implicada no processo de vida social e que os actos de compreensão tomam conta dos actos de um mecanismo coordenador da acção. O tecido de acções comunicativas alimenta-se de recursos do mundo da vida e é, ao mesmo tempo, o médium através do qual se reproduzem as formas de vida concretas.» (Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, pag 292; o negrito é posto por nós).
Habermas sublinha igualmente o carácter circular do agir comunicacional:
«Na teoria do agir comunicacional o processo circular, que encerra o mundo da vida e a praxis comunicativa quotidiana, ocupa o lugar de mediador que Marx e o marxismo ocidental tinham reservado à praxis social.» (Habermas, ibid, pag 293; o destaque a negrito é nosso).
E sustenta que a razão comunicacional não elimina o erro mas partilha-o, socializa-o, do mesmo modo que partilha e socializa a verdade rectificadora.
«A razão comunicacional faz-se valer na força de coesão da compreensão intersubjectiva e do reconhecimento recíproco. No seio deste universo não é possível separar o irracional do racional do mesmo modo que, em Parménides, é separado o não-saber daquele saber que domina, como simplesmente afirmativo, sobre o que é o nada. Na sequência de Jakob Böhme e de Isaac Luria, Schelling afirma com razão que o erro, o crime e a ilusão não são irracionais mas sim manifestações da razão às avessas.» (Habermas, ibid, pag 299; o negrito é nosso).
A noção de praxis é reinterpretada por Habermas. Muito mais do que um agir instrumental, a praxis é um agir comunicacional que produz saber que permite transformar o mundo.
«Quando se reformula o sentido de praxis no sentido de agir comunicacional com o auxílio deste conceito de língua, as marcas universais da prática não se limitam só ao legein e teukein, isto é, às condições (que precisam de interpretação) para o contacto com uma natureza que se encontra no circuito de funções do agir instrumental. A praxis opera então muito mais à luz da razão comunicacional que impõe aos participantes na interacção uma orientação para as exigências de validação tornando assim possível uma acumulação de saber que transforma o mundo.» (Habermas, ibid, pag 307).
Embora recolhendo o contributo de Marx, Habermas diverge deste no conceito de praxis social. Entende esta não como actividade produtiva material mas como a interacção circular entre o mundo da vida, dividido em cultura, sociedade e pessoa, e o agir comunicacional
«Nem mesmo Marx escapou ao pensamento da totalidade de Hegel. Isto altera-se se a praxis social não for mais pensada socialmente como processo de trabalho.»
«Com os conceitos que se complementam reciprocamente do agir comunicacional e do mundo da vida é introduzida uma diferença entre determinações que- diferentemente da diferença entre trabalho e natureza - não reaparecem como momentos numa unidade superior. É certo que a reprodução do mundo da vida se nutre de contribuições do agir comunicacional, enquanto que este depende por sua vez do mundo da vida. Este processo circular não deve representar-se segundo o modelo da autocriação como uma produção a partir dos seus próprios produtos, nem mesmo associado à auto-realização. » (Habermas, ibid, pag 314).
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