No prefácio ao «Teeteto», José Trindade Santos expõe o seu estudo em que destaca os conceitos de fluxismo, sensismo e relativismo. Escreve sobre este importante texto de Platão que, a meu ver, inaugura a fenomenologia na Antiguidade:
«O exemplo da cor que não está nos olhos nem nas coisas, gerando-se entre ambos, concretiza a teoria de diversas perspectivas. Em primeiro lugar a cor não é em si, no sentido em que não é algo definido, que se acha em qualquer lugar concreto, pois resulta do impacto de um certo movimento no olho (153e-154a). Em segundo lugar, não é "uma coisa" "algo" ou de certo modo . Portanto não poderá aparecer a mesma a diversos sentintes ou até ao mesmo sentinte, pelo facto de resultar de concurso de distintos percipiente e percebido já que nem aquele será do mesmo modo, de si para si.»
«Vemos assim que a ontologia fluxista - tudo é movimento - não só constitui uma boa explicação da epistemologia relativista - as coisas são para cada um como lhe parecem - como a ultrapassa, a ponto de a reconfigurar por completo. Inicialmente, a dificuldade era a de compatibilizar as diferenças na percepção (aisthêsis) de um mesmo percepcionado (aisthêton) por diversos sentintes (aisthanomenoi) com a infalilibilidade, requerida pela equação da percepção da percepção com o saber.»
(José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pp.62-63; o bold é acrescentado por nós).
«Mas não há continuidade entre as duas doutrinas, pois a coerência e consistência do sensismo nada devem ao relativismo. "As coisas não podem ser para cada um como lhe parecem", porque não há "coisas", não há "cada um", nem nada que se assemelhe a parecer. O sensismo constitui a epistemologia possível num real submetido a um fluxo infrene, totalmente alheio a uma operação cognitiva. (ibid pág. 171; o destaque a bold é nosso).
E Trindade Santos define assim o sensismo:
«É o princípio sensista (PS) de acordo com o qual nada há além da percepção, constituindo "percipiente", "percebido" e "percepção" meras referências (154 a-b; 156-e- 157c, vide 1823b).»
«A fundamentá-lo encontramos apenas o "princípio fluxista" (PF) segundo o qual a realidade se reduz ao movimento, sem que seja possível dizer "o que" se move, pois careceria de identidade (152d).»
(José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pág 70; o bold é acrescentado por nós).
Convém dizer, ao invés do que acima escreveu Trindade Santos, que o sensismo - o ser reduz-se a um fluxo de sensações - é uma modalidade do relativismo, entendido como teoria que sustenta que a verdade varia incessantemente com as épocas, os lugares, as classes sociais, as etnias religiosas e políticas, etc. Trindade Santos interpreta relativismo como variação da percepção de indivíduo para indivíduo e parece não conceber que, ao contrário do que diz, não há trânsito do relativismo para o sensismo uma vez que este último é, em si mesmo, relativismo. Relativismo, no sentido que Trindade Santos lhe dá, pertence ao género sociognosiológico (quem ou quantos conhecem...) e sensismo pertence ao género ontognosiológico ( o quê, o que se conhece). Mas relativismo em sentido mais amplo, teoria de que a verdade não é absoluta, mas varia, pertence ao género modalidade ontológica( ser estático, ser mutável) engloba o sensismo, o fluxo das sensações, a impermanência sensorial que, no século XVIII, David Hume retomaria no seu fenomenismo de impressões de sensação em fluxo e de ideias sem objecto real no mundo exterior.
Sensismo não se opõe a relativismo. O sensismo fluxista é relativismo e o sensismo imobilista - se é que tal posição existe; corresponde a imobilizar a imagem de um vídeo, a ver sempre algo imóvel eimutável - é absolutismo.
ONTOLOGIA SENSISTA OU EPISTEMOLOGIA SENSISTA?
Uma primeira questão é saber se é lícito usar o termo ontologia sensista. Trindade Santos usa-o tal como usa, com mais propriedade quanto a nós, o termo epistemologia (teoria do conhecimento) sensista. Ora a sensação permanece sempre na esfera da gnosiologia, não constitui ser, não é ontológica.
Quanto à designação de ontologia fluxista não a contestamos. Apenas destaco que fluxismo não é o ser mas um modo intrínseco ao ser. O ser é: matéria exterior em si mesma (realismo), matéria interior ao espírito, ideia (idealismo), correlação matéria em si-espírito humano (fenomenismo /fenomenologia) sob a égide do cepticismo. José Trindade Santos está certo quando afirma:
«Neste contexto, a análise do fluxo não parece servir qualquer propósito construtivo, limitando-se a mostrar que um mundo dominado pela fenomenologia fluxista não alberga um mínimo de estabilidade que lhe permita ser acessível à percepção, logo, à linguagem e ao saber. (José Trindade Santos, in prefácio de Teeteto, de Platão, Fundação Calouste Gulbenkian, pág.106-107).
É necessário frisar que o fluxismo não conduz necessariamente a uma «ontologia» sensista. O materialismo dialético, tal como a doutrina de Heráclito, é fluxista, considera que todas as coisas estão em devir, em perpétuo fluxo, mas sustenta uma ontologia realista, isto é, há um mundo de objectos materiais para lá da consciência do sujeito, independente desta e anterior a ela. O fluxisno não é por si só uma ontologia mas um modo de ser desta. Contrapõe-se a imobilismo. Fluxismo pode conduzir a três ontologias distintas: realismo, idealismo ou fenomenismo/fenomenologia. O sensismo ou empirismo sensista- a realidade exterior não passa de um fluxo de imagens sensoriais - é uma espécie acidental, isto é, não contida na totalidade dentro do género fenomenismo. Há um fenomenismo sensório-intelectual - o de David Hume - que reduz a realidade exterior a um fluxo de imagens e ideias e que pode ser interpretado como idealismo.
E relativismo tem dois sentidos, o que não é clarificado por Trindade Santos: um deles, no género sociológico, é o de cada homem ou grupo de pessoas ver a realidade e os valores de forma diferente de outros homens ou grupos de pessoas; o outro é o da mutação incessante da realidade em si mesma.
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