Aristóteles acusou Platão de multiplicar os modelos ou formas arquetípicas num mundo inteligível e de estes modelos serem, dentro desse mundo inteligível, cópias de outros modelos. Escreveu:
«Ademais, as Formas serão modelos não somente das coisas sensíveis, mas também delas mesmas, por exemplo, o género entendido como género das espécies. Por conseguinte, a mesma coisa será ao mesmo tempo cópia e modelo.» (Aristóteles, Metafísica, Livro XIII, 107b, 30-35, pág. 519 da versão da Editorial Gredos, Madrid).
Parece-nos antidialética a crítica de Aristóteles: a dialética supõe que uma mesma coisa ou ideia têm relações de pertença ou similaridade com múltiplas coisas ou ideias. Sem embargo da grandeza intelectual de Aristóteles, este já errara ao dizer que «cada coisa só tem um contrário». Ora Aristóteles, na sua crítica ao Mundo das Ideias àparte da matéria teorizado por Platão, entende que, por exemplo, que é incoerente haver o arquétipo de Animal e os Arquétipos de Homem, Elefante, Serpente, Leão etc., que serão espécies de Animal. Segundo ele, um arquétipo não poderia estar contido em outro mais genérico.
Não há, no entanto, neste aspecto, incoerência nenhuma em Platão. Basta pensar que, a haver Mundo dos Arquétipos, estes não estão irmanados no mesmo plano mas hierarquizados em diferentes degraus.
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Johannes Hessen sustentou que há diversas formas de realismo e coloca-as todas ao mesmo nível: realismo ingénuo, realismo natural, realismo crítico, realismo volitivo. Escreveu no seu célebre tratado de gnoseologia:
«Entendemos por realismo a posição epistemológica segundo a qual há coisas reais, independentes da consciência. Esta posição admite diversas modalidades. A primeira, tanto histórica como psicologicamente, é o realismo ingénuo. Este realismo não se acha ainda influenciado por nenhuma reflexão crítica acerca do conhecimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 93; o bold é posto por nós).
E continua Hessen:
«Diferente do realismo ingénuo é o realismo natural. Este já não é ingénuo mas está influenciado por reflexões críticas sobre o conhecimento. Isto revela-se no facto de que já não identifica o conteúdo da percepção e o objecto, mas sim distingue um do outro.» (...)
«A terceira forma de realismo é o realismo crítico porque assenta em considerações de crítica ao conhecimento. O realismo crítico não acredita que convenham às coisas todas as propriedades inseridas nos conteúdos da percepção mas é, pelo contrário, da opinião que todas as propriedades ou qualidades das coisas que apreendemos só por um sentido, como as cores, os sons, os odores, os sabores, etc, existem unicamente na nossa consciência.» (Hessen, ibid, pag 94; o bold é posto por nós)
Finalmente, apresenta a quarta espécie de realismo, o realismo volitivo, que afirma que há mundo material fora de nós e que o percebemos pela nossa vontade de viver:
«Se fossemos puros seres intelectuais, não teríamos consciência alguma da realidade. Devemos exclusivamente esta à nossa vontade. As coisas opõem resistência às nossas volições e desejos, e nestas resistências vivemos a realidade das coisas. Estas apresentam-se à nossa consciência como reais, justamente porque se fazem sentir como factores adversos na nossa vida volitiva. A esta forma de realismo é costume chamar-se realismo volitivo. »
«O realismo volitivo é um produto da filosofia moderna. Encontramo-lo pela primeira vez no século XIX. Pode-se considerar como seu primeiro representante o filósofo francês MAINE DE BIRAN. O que depois mais se esforçou por o fundamentar e desenvolver foi GUILHERME DILTHEY.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, página 101; o bold é posto por nós).
Esta seriação horizontal de modalidades do realismo, todas no mesmo plano, como se fossem extrínsecas entre si, contém um erro. O erro de Hessen consiste em misturar o género ontognoseológico, que engloba o realismo natural e o realismo crítico, com o género fonte ou motor do conhecimento ( quinesognoseológico, poderia dizer-se), que engloba volição versus representação (espelhamento). São dois planos, dois géneros diferentes: o do ser-conhecer e o do ser-originar. Na verdade, pode haver um realismo natural voltivo e um realismo natural representativo (que reflecte, como um espelho, a realidade exterior). A volição ou vontade de viver e assimilar o mundo pode estar subjacente às três formas de realismo, ingénuo, natural e crítico. Volitivo opõe-se a não voltivo, a representativo ou perceptivo.
Volição e inteleção só são contrárias como modalidades do género fontes do conhecimento. O nivelamento, isto é, a colocação das diversas entidades ao mesmo nível dentro do mesmo género implica exclusão mútua. A tese de Aristóteles de que cada coisa só tem um contrário é absolutamente errónea. Por exemplo, a espécie homem tem como contrárias as espécies elefante, leão, abelha, cavalo e uma infinidade de outras. Dentro de um mesmo género, as suas componentes (correntes, espécies) são extrínsecas entre si. Volição e inteleção são colaterais na relação com as correntes do realismo - a introdução de um terceiro elemento numa relação pode transformar os contrários em colaterais - isto é, podem coexistir na mesma modalidade de realismo. A classificação de Hessen é mais um exemplo da ignorância da dialética que sempre reinou entre os filósofos, em particular da lei dos géneros e das espécies que o autor deste blog formulou.
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.Para Aristóteles os universais são: o uno (tó hen), o que é (tó ón) e os géneros (por exemplo: animal, ser vivo, planta). A essência (eidos) não é um universal mas algo comum (koinos) a múltiplas coisas. Escreveu, de forma pouco clara e mesmo incoerente:
«E posto que “uno se diz do mesmo modo que “algo que é” e a substância do que é uno é una e as coisas cuja substância é numericamente una são algo numericamente uno, é evidente que não podem ser substância das coisas nem “uno nem algo que é e tão pouco pode sê-lo aquilo em que consiste ser elemento ou ser-princípio- (…) Com efeito a substância (ousía)não se dá em nenhuma outra coisa que em si mesma, e naquilo que a tem e de que é substância. Ademais o que é uno não pode estar ao mesmo tempo em muitos sítios, ao passo que o comum se dá simultaneamente em muitos sítios.»
«.Assim, pois, resulta evidente que nenhum universal existe separado fora das coisas singulares. Sem embargo, os que afirmam que as Formas existem deste modo, em certo sentido têm razão ao separá-las, se é que são substâncias, mas em certo sentido não têm razão, já que denominam «Forma» ao uno que abarca uma multiplicidade.(...) .Assim, pois, é claro que nenhuma das coisas que se dizem universalmente é substância e que nenhuma substância se compõe de substâncias»(Aristóteles, Metafísica, Livro VII, capítulo XVI, 1040b, 15-30; 1041b, 3).
Aristóteles enferma de incoerência: por um lado, afirma que os universais (uno, algo que é) não existem na substância ou coisa singular (exemplo: esta casa, este cão, esta planície); por outro lado afirma que nenhum universal existe separado fora das coisas singulares, ou seja, o “uno” e “o que é” não existem fora de cada casa, de cada cão, de cada homem, etc.
Dizer que o uno não pode estar simultaneamente em muitos sítios ao passo que a essência, a forma comum a um dado grupo de objectos (por exemplo: a essência árvore) está em muitos sítios ao mesmo tempo é interpretar uno como mundo de arquétipos – estes são irrepetíveis, únicos, àparte.
Mas a ideia dialética de uno como unidade universal de todas as coisas, físicas ou não físicas, está ausente em Aristóteles, que confunde uno com princípio-arquétipo.
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A analogia é, segundo Aristóteles, um nível transgenérico, superior aos géneros. Tal como o género, a analogia é um universal. A primeira analogia teorizada por Aristóteles é entre ser e uno.
Uno pode ser interpretado de duas maneiras diferentes: como quantidade, visão de Aristóteles, isto é acidente interno da substância (exemplo: «Esta árvore é una, é uma só»); como substância, visão de Platão, isto é ser-essência geral (exemplo: « O ser é o mundo dos arquétipos, englobando o Bem, o Belo, o Justo, o Uno, a Sabedoria»). Nesta óptica, Uno é adjectivo ou numeral em Aristóteles e substantivo em Platão.
«Ademais, mas em outro sentido, os princípios são os mesmos analogicamente: assim é com acto e potência, se bem que estes são também distintos, e de distintos modos, para coisas distintas. » (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 1-5).
Acto e potência são análogos? Não serão espécies do género «modos de ser»? E as espécies são análogas entre si? Ou são genericamente unas?
«Ademais, ainda que as causas das substâncias o sejam de todas as coisas,sem embargo, como foi dito, as causas e os princípios são distintos para coisas distintas que não pertencem ao mesmo género - cores, sons, substância, qualidade - a não ser analogicamente.» (Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 25-30).
Cores e sons, em certo sentido, não pertencem ao mesmo género: cores e formas visíveis são espécies do género visão e sons e silêncio são espécies do género audição. Mas, na verdade, sendo árvore e homem espécies do género ser vivo, podemos detectar uma analogia de forma entre ambas: as raízes da árvore são análogas aos pés do homem, o tronco da árvore é análogo às pernas e ao tronco do homem, os ramos são análogos aos braços, a copa é análoga à cabeça. Assim, neste caso, a analogia instala-se no seio do género e não está acima dele.
Mas há, certamente, analogia entre géneros como, por exemplo, a analogia entre o género "ser" (ontologia) e o género "conhecer" (gnosiologia).
O SOL E A ECLÍPTICA, CAUSAS DO HOMEM, NÃO TÊM FORMA?
Como causas do homem, Aristóteles aponta os elementos, a forma ou essência, o pai e a mãe, o sol e a roda das constelações atravessada pela trajectória aparente do sol designada por eclíptica:
«Assim, do homem, são causa os elementos - fogo e água enquanto matéria - e a forma própria e também algum agente exterior como o pai; e além de tais coisas, o sol e a eclíptica, os quais não sendo matéria nem forma nem privação, nem sendo da mesma espécie são, sem embargo, produtores de movimento»
«Além do mais, há-de observar-se que algumas coisas podem enunciar-se universalmente, mas outras não. Os princípios imediatos de todas as coisas são o isto primeiro em acto e outra coisa que está em potência. Portanto, aqueles universais não existem, já que o indivíduo é princípio dos indivíduos.»
( Aristóteles, Metafísica, livro XII, 1071 a, 10-20; o destaque a bold é da minha autoria).
Nestes excertos, Aristóteles frisa a primazia do individual concreto sobre o universal. Ao dizer que os universais não existem, Aristóteles está a criticar a teoria das Ideias em Platão segundo a qual, por exemplo, a Ideia de Homem - uma forma imutável, eterna e perfeita de homem - existe separada, num mundo inteligível, supra-terreno.
Mas questionemos o que Aristóteles escreve sobre o sol. Este tem forma circular e matéria ígnea - aliás, matéria etérea ou quinta essência no sistema aristotélico, se não erro. Como pode Aristóteles negar forma ao sol? E como pode algo sem forma nem matéria produzir movimento, exceptuando Deus, o pensamento imóvel e eterno? E a eclíptica ou trajectória aparente do Sol não tem forma ou é uma forma sem matéria em permanente actualização?
Suponho que Aristóteles nega que o sol e a eclíptica tenham forma comum (eidos) ou essência mas não nega que possuam forma ou configuração individual.
É de salientar que ao dizer que o sol e a eclíptica são causas do homem e produtores do movimento Aristóteles pode estar a querer significar que há um determinismo astral, solar e zodiacal, na vida do homem: o nascimento, o crescimento, a estabilização na maturidade, do homem - e quiçá as suas acções ou grande parte destas - são geradas pelo movimento do sol na eclíptica e pelos graus desta (graus do Zodíaco).
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A «Metafísica» de Aristóteles, fonte inesgotável de saber filosófico, encerra a seguinte passagem:
«Enfim, certas coisas são um numéricamente, outras especificamente, outras genericamente, e outras por analogia; numericamente são-no aquelas coisas cuja matéria é uma, especificamente são-no aquelas cuja definição é uma, genericamente aquela cuja figura de predicação é a mesma e, por fim, por analogia as que guardam entre si a mesma proporção que guardam entre si outras duas. Por outro lado, as modalidades posteriores acompanham sempre as anteriores; assim, as coisas que são um numericamente são-no também especificamente, mas nem todas as coisas que o são especificamente são-no também numericamente; por sua vez, todas as que o são especificamente são-no também genericamente, mas nem todas as que o são genericamente o são ademais especificamente, ainda que o são, sim, por analogia; por seu lado, nem todas as que o são por analogia o são também genericamente.» (Aristóteles, Metafísica, Livro V, 1036 b, 30-35, 1037 a 1-5; o negrito é posto por mim).
Quais são as coisas que são um, numericamente? São os indivíduos, considerados um a um. Cada indivíduo, integrado numa determinada espécie, é um e uno, porque a matéria só é uma e una em cada individuo. O coração de Sócrates não é um só com o de Cleoptara ou o de Platão porque são materialmente distintos entre si e estão alojados em corpos diferentes. Sócrates é um numericamente porque as suas partes, a cabeça, o tronco, as pernas, os braços, a alma são uma só coisa. Mas não é um especificamente nem genericamente porque não existem a espécie Sócrates nem o género Sócrates.
A frase "nem todas as (coisas) que o são genericamente o são ademais especificamente" não é inteiramente clara: o que Aristóteles pretendeu dizer, aparentemente, é que numa dada espécie, que é a parte, não cabe o género todo, isto é, as espécies que constituem o género. Exemplo: as galinhas são do género animal tal como os homens mas as galinhas, parte do género animal, não são a espécie homem. A frase de Aristóteles pode suscitar a equívoca interpretação de que há um resíduo do género que não comporta espécies quando, de facto, o género não é senão o conjunto das espécies que o integram. A mesma crítica se aplica à frase " nem todas as (coisas) que o são por analogia são-no também genericamente."
Resta notar que a analogia é uma aproximação ainda mais ténue e elevada do que o género. Aristóteles não a define como uma forma una ou uma figura de predicação una (uma forma unida a uma «trans»-forma, o género) mas como uma semelhança de proporções entre dois pares de coisas ( exemplo: os pés estão para o homem, como as raízes estão para a árvore, é a mesma proporção). A espécie homem pertence ao género animal e a espécie árvore ao género vegetal mas ambos guardam entre si uma analogia de forma: os pés são análogos às raízes, as pernas e o tronco humano são análogos ao tronco da árvore, os braços são análogos aos ramos da árvore. A analogia entre homem e árvore é acompanhada por uma unidade de género entre ambos: o género (ou supra-género) ser vivo.
Assim, tanto o nível inferior do numericamente - o da individuação - como o nível superior do analogicamente - o da dissolução dos géneros - são caracterizados, em forte tonalidade, pela marca do número, individuador de um ente singular ou de dois pares de coisas. É como se a zona central desta hierarquia - a espécie e o género - fosse essencialmente qualitativa e os extremos - o singular, a prote ousía; o universal, a analogia - fossem essencialmente quantitativos, números.
Pensar com Aristóteles é desenvolver, de facto, a nossa capacidade e erudição filosófica.
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Platão teve o mérito de definir a dialéctica como a divisão por géneros de uma forma geral que tudo abrange:
«O ESTRANGEIRO- Dividir por géneros e não confundir a mesma forma com outra, ou a outra com a mesma, não diremos que é próprio da ciência dialéctica?
«TEETEO- Sim dizemos.» (Platão, Sofista, in Diálogos, pag 78, Publicações Europa-América).
Os cinco géneros teorizados por Platão em «Sofista» são: o ser, o repouso, o movimento, o mesmo e o outro.
«O ESTRANGEIRO - Ora, os mais importantes destes géneros são três: o próprio ser, o repouso e o movimento.
«TEETETO - Sim, extremamente importantes.»
«O ESTRANGEIRO - Dizemos ainda que estes dois últimos não se podem misturar um com o outro.
«TEETETO- Certamente.
«O ESTRANGEIRO - Mas o ser pode misturar-se com os dois porque, penso, os dois são.»
«TEETETO - Incontestavelmente.
«O ESTRANGEIRO - Portanto, temos três.»
«TEETETO- Seguramente.
«O ESTRANGEIRO - Portanto, cada um deles é outro relativamente aos outros, mas o mesmo relativamente a si mesmo.
«TEETETO- Sim.
«O ESTRANGEIRO- Mas o que queremos dizer com as palavras que acabamos de pronunciar, o mesmo e o outro? São dois géneros diferentes dos três primeiros, embora sempre misturados necessariamente com eles? E devemos concluir o nosso inquérito como se fossem cinco e não três, ou o mesmo e o outro são nomes que damos inconsciente a algum dos nossos três géneros?»
(Platão, Sofista, in Diálogos, pag 79-80, PEA; o negrito é posto por mim ).
Há erros antidialécticos nesta classificação de cinco géneros construída por Platão: o ser não está ao nível do movimento e do repouso mas Platão nivela-os. Estes dois últimos são espécies do género supremo ser. Platão reconhece que o ser pode misturar-se com o movimento e o repouso mas erra ao considerá-los como três géneros enquanto correlacionados: trata-se de um género e duas espécies. Do mesmo modo, o mesmo e o outro são espécies do ser, colocadas, embora. acima da dicotomia movimento-repouso: o mesmo é, o outro é, no sentido de ser como existência. O «mesmo» é género lógico das espécies movimento e repouso - há o mesmo movimento e o mesmo repouso - e o «outro» é também género lógico das espécies movimento e repouso - há outro movimento e outro repouso.
A grande confusão terminológica e ideal de Platão, prosseguida em muitos outros filósofos incluindo Heidegger, é a duplicidade do termo «ser» atribuido indiferentemente a duas dimensões distintas: existência e essência (forma, to tí, quid). Heidegger, apesar de delinear uma ruptura com a tradição ontológica, continuou preso de uma ambígua interpretação do termo "ser". Platão usa o termo "ser" em dois sentidos distintos: forma ou formas eternas, existência. E assim, nos seus diálogos, elabora brilhantes argumentos sofísticos, como por exemplo:
«O ESTRANGEIRO- Contudo, nem o movimento nem o repouso são o outro nem o mesmo.
«TEETETO- Como é isso?
«O ESTRANGEIRO - Seja o que for que atribuamos ao movimento e ao repouso, isso não pode ser nem um nem o outro dos dois.»
(Platão, Sofista, in Diálogos, pag 80, PEA).
A falácia reside na dissociação entre a parte e o todo: o movimento é espécie dos géneros lógicos outro e mesmo e o repouso é espécie dos géneros lógicos outro e mesmo. Não é verdade dizer que «o movimento não é outro nem o mesmo» - o movimento é outro e mesmo, ainda que não abarque a totalidade das qualidades outro e mesmo - do mesmo modo que não é verdade dizer que a parte não é o todo reduzido ou amputado.
Note-se que movimento e repouso são nomes ou substantivos comuns e mesmo e outro são pronomes demonstrativos, isto é, substitutos dos nomes, mais abstratos que estes. Aparentemente, os pronomes pertencerão, em regra, a uma classe mais abstrata, um género mais elevado, do que substantivos como couve, alegria, calor. A determinação mesmo encontra-se em todas as couves ou em todas as alegrias possíveis mas a determinação couve e a determinação alegria não se encontram em todas as conceptualizações ou aplicações de mesmo.
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Charles.Augustus Strong, (Haverhill, 28 de Novembro de 1862- Fiesole, 23 de Janeiro de 1940) um dos filósofos do "realismo crítico" norte-americano, escreveu sobre o dado da percepção sensorial e as correntes gnosiológicas que o interpretam:
«O ponto chave no problema da percepção sensorial refere-se à natureza do dado. Com o termo "dado" designo aquilo de que somos imediatamente conscientes. No transcurso da filosofia moderna sucederam-se seis pontos de vista diferentes sobre este tema. I) O dado é a coisa real; 2) é uma representação ideal do objecto real; 3) é uma coisa ideal de natureza psicológica; 4) é um objecto ideal de natureza lógica; 5) é algo de natureza psicológica mas real; 6) é uma coisa de natureza lógica, mas real; tais são as posturas do realismo ingénuo, do representacionismo, do subjectivismo psicológico, do subjectivismo lógico, do objectivismo psicológico e do objectivismo lógico. A posição que tratarei neste artigo, diferente de todas estas, é que 7) o dado é a essência lógica da coisa real.» (C.A. Strong citado in Paul Kurtz, Filosofía norteamericana en el siglo veinte, páginas 346-347, Fondo de Cultura Económica, México).
Não há clareza autêntica nesta classificação. Em primeiro lugar, o realismo ingénuo não confunde o dado perceptivo com o referente - isso só sucede durante os sonhos ou em estado de alucinação. O realismo ingénuo concebe o mundo como alteridade e a percepção como espelho do mundo, sem questionar esta.
Há outras confusões: o que distingue a posição 2, baptizada de representacionismo, da posição 1, realismo ingénuo, se este é um representacionismo natural? Também não é clara a definição de de subjectivismo psicológico, em que o dado seria uma "coisa ideal" psicológica e de "subjectivismo lógico" em que o dado seria um objecto ideal lógico. Strong não dá exemplo, flutua na nuvem cinzenta da imprecisão.
O subjectivismo psicológico e lógico podem ser representacionistas ou não - Strong não se apercebe disto, não vê como se articulam verticalmente géneros e espécies, não possui um raciocínio dialéctico, como a maioria dos catedráticos de filosofia em todo o planeta não possui também - e a prova é que esta classificação de Strong atravessou impune as décadas sem ser posta em causa pelos seus colegas e pelos universitários em geral. Representacionismo e não representacionismo são espécies do género captação da estrutura do referente ao passo que subjectivismo e objectivismo são espécies do género sociológico. Espécies de géneros distintos não podem ser postas no mesmo plano como Strong procede.
E o que distingue a posição 6 da posição 1 e da posição 7, esta última preferida por Charles Strong? Não é claro.
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Aristóteles distinguiu quatro predicáveis: o próprio, o acidente (symbebêkós), a definição e o género. Predicável significa uma entidade da qual se predica (diz, qualifica) algo - por exemplo, a espécie homem é predicável porque de homem predica-se animal («O homem é um animal») e o género animal é predicável porque de animal predica-se ente vivo («Todo o animal é um ente vivo»). Parece haver alguma subtil confusão, nesta classificação, entre dois planos: o ontológico (do ser) e o eidológico (da essência). O grande filósofo grego escreveu:
«Toda a proposição e todo o problema (problemata) indicam ora um género (génos), ora um próprio (ídios), ora um acidente (pois também a diferença, ao ser genérica, há-de ser colocada no mesmo lugar que o género); e, já que entre o próprio, há o que significa quê é o ser (Tò tí en eînai) e há o que não significa isso, há-de dividir-se o próprio nas duas partes anteriormente ditas, e a uma se chamará definição (horismós, em grego), que significa quê é o ser, e a outra, de acordo com a designação dada em comum a ambas, se chamará próprio. Assim pois é evidente, a partir do que foi dito, por que razão, de acordo com a presente divisão, tudo vem a reduzir-se a quatro coisas: próprio, definição, género ou acidente. (Aristóteles, Tópicos, Livro I in Tratados de Lógica (Órganon), pag 94-95, Editorial Gredos, Madrid).
O texto alude à diferença genérica. A diferença é genérica ou específica? Dentro de um género, as diferenças entre as diferentes espécies - exemplo, no género animal - são específicas e não genéricas. Não é clara, pois, a alusão à diferença genérica - existe, de facto uma diferença entre os géneros, mas existem também as diferenças específicas no seio de cada género.
Sobre a definição, essência traduzida no plano verbal, Aristóteles sustenta, acima, que faz parte do próprio tal como o próprio. Há aqui uma certa ambiguidade, uma duplicação de sentidos de próprio: há o próprio substância (exemplo: este vaso de barro), que inclui a forma comum, não própria, que lhe veio de cima, e o próprio acidente (exemplo: este barro), que é a porção de matéria ordenada e individuadora, aquilo que é mesmo singular e único. Não esqueçamos que para Aristóteles, a matéria é o princípio da individualização, a concreção no máximo grau.
A relação entre a substância e o acidente desenrola-se no plano ontológico, do que é e do que não é: a substância é, o acidente é e não é. O acidente é algo mas não é intrínseco à substância - referimo-nos ao acidente extrínseco, como por exemplo, a esferográfica (acidente) pousada sobre a substância mesa. Quando se trata do acidente intrínseco à essência (exemplo: o piscar de olhos ou o sorrir de cada ser humano) a descontinuidade mantém-se como característica do acidente: este é descontínuo, ora acontece ora desaparece, e só a sua forma, em conexão necessária com a substância, o classifica como acidente intrìnseco à substância, ao próprio.
A essência é, sempre, captada por abstracção, imprescindível no plano filosófico e científico; a essência existe misturada com a existência, com o existir ou ser puro.
Mas a relação entre o género, a essência-definição e o próprio - este entendido como substância, isto é, um composto de forma e matéria - desenvolve-se primariamente, não no plano ontológico, mas no plano eidológico, que é um plano formal concreto.
Assim, o termo próprio encontra-se na encruzilhada do seu duplo sentido: é o que é (tó on) - sentido ontológico em comparação com o acidente - e é o quê é (tó tí)- sentido eidológico, que lhe é dado pelo facto de ser constituido por uma forma individual participada pela forma-espécie-definição e pelo género.
O aparente paradoxo da concepção aristotélica é o de duas entidades não individuais mas colectivas - a forma comum (definição) ou espécie e a matéria-prima (Hylé) - forjarem entes individuais concretos ao unirem-se, sendo a matéria o princípio da individuação.
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As histórias da filosofia possuem, em regra, a grande virtude de oferecer uma visão panorâmica, sinóptica, do percurso do pensamento filosófico desde Lao Tse ou Tales de Mileto até ao século XXI. Mas sobre elas pende a espada de Dâmocles de um risco: não conseguirem sintetizar todos os aspectos essenciais da filosofia de um pensador ou omitirem ou deformarem algum ou alguns desses traços. Sobre o filósofo espanhol José Ortega y Gasset, escreveu Nicola Abbagnano na sua meritória «História da Filosofia»:
«No limite entre o pragmatismo e o existencialismo pode ser colocada a obra do filosófo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) que nasceu em Madrid mas estudou e se formou na Alemanha.» (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, volume XIII, Editorial Presença, pag 34).
No limite entre pragmatismo e existencialismo ? Mas não há um limite nítido entre ambos: o pragmatismo e o existencialismo não são espécies do mesmo género, são géneros diferentes que se intersectam. Há um pragmatismo existencialista - uma parte do género existencialismo é espécie do género pragmatismo - e um pragmatismo essencialista. Pragmatismo opõe-se, directamente, a especulacionismo - ambos são espécie do género verificabilidade. Por outro lado, existencialismo opõe-se, directamente, a essencialismo - ambos são espécies do género eidologia. Não há, pois, uma linha fronteiriça nítida entre pragmáticos e existencialistas. Interpenetram-se. Como poderia estar Ortega no limite? Poderia, sim, estar na zona comum a ambos, na zona de intersecção.
Por outro lado, na súmula que fez da filosofia de Ortega y Gasset, Nicola Abbagnano não refere a posição ontognoseológica daquele: se o realismo, se o idealismo, se a fenomenologia... Ora Ortega é, sem dúvida, fenomenólogo. É, em certa medida, um émulo, na filosofia espanhola, do alemão Martin Heidegger. A sua filosofia da razão vital assenta na perspectiva da fenomenologia.
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O poderoso intelectual Aristóteles exibe algumas (aparentes) incoerências no que respeita à definição de substância (ousía, em grego) e de sujeito (hipokeimenon, em grego) . Por sujeito, entende o suporte - que sofre sujeição - de uma forma ou de qualidades diversas. A noção de sujeito é relativa, isto é, varia de degrau em degrau ontológico mas o sujeito primeiro é, antes de mais, a matéria prima (hylé, em grego), algo indeterminado, suporte das formas na criação das substâncias primeiras.
«Substância, assim chamada com mais propriedade, mais primariamente e em mais alto grau, é aquela que não se diz de um sujeito nem está num sujeito, por exemplo: o homem individual ou o cavalo individual. Chamam-se substâncias segundas as espécies a que pertencem as substâncias primariamente assim chamadas, tanto essas espécies como os seus géneros; por exemplo: o homem individual pertence à espécie homem, e o género da dita espécie é animal; assim, pois, estas substâncias chamam-se segundas, por exemplo: o homem e o animal.»
(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37, Editorial Gredos, Madrid)
«É comum a toda a substância o facto de não estar em um sujeito. Pois a substância primeira nem se diz de um sujeito nem está em um sujeito. E das substâncias segundas é igualmente manifesto que não estão em nenhum sujeito: com efeito, homem diz-se do homem individual como do seu sujeito, mas não está num sujeito - homem, com efeito, não está no homem individual -; de igual modo, também animal se diz do homem individual como do seu sujeito, mas animal não está no homem individual.» (...)
«Assim, não haverá substância alguma entre as coisas que estão em um sujeito.» (...)
«Mas isto não é exclusivo da substância, mas também a diferença é das coisas que não estão em um sujeito: com efeito pedestre e bípede dizem-se do homem como do seu sujeito, mas não estão em um sujeito; pois o bípede e o pedestre não estão no homem.»
(Aristóteles, Categorias, in Tratados de Lógica (Órganon) I, pag 37, Editorial Gredos, Madrid; o negrito é de minha autoria)
Um primeiro enigma a decifrar é o seguinte: que diferença há entre o homem individual e o seu sujeito? Será o homem individual uma hipo-essência, uma forma singular, que se distingue dos sujeitos Rosa Mota, Carlos Alves, Vera Tormenta Santana, Manuel Alegre e outros que se moldam, como carne, dentro dessa forma individual? Não parece. Interpretaremos, antes, o homem individual como este composto de forma e matéria e o seu sujeito como sendo a matéria-prima (hylé) porque esta encontra-se abaixo da forma, como massa moldável. Este primeiro texto diz que a substância não está no sujeito.
Afinal, por que razão a substância - por exemplo, este cavalo branco - não está no sujeito, isto é, na matéria prima? Não está no sujeito - como algo englobado neste - porque a substância primeira transcende o sujeito, que é aquilo que está sob, em baixo da pirâmide das categorias ( espécie, género, universal, etc). Numa comparação algo imperfeita: a substância primeira é a cúpula da sala em que o sujeito é o chão e as paredes. A cúpula assenta nas paredes e, indirectamente, no chão mas não está contida - parece ser este o sentido da expressão aristotélica «não está em» - no sujeito. Do mesmo modo, a espécie (por exemplo: homem) não está no indivíduo, (no caso: homem individual) porque transcende este e o género ( exemplo: animal) não está contido na espécie (no exemplo: homem). No entanto, na minha opinião, a espécie homem está, de forma reduzida, no homem individual. .
A noção de sujeito é relacional, tem um conteúdo concreto mutável.
Vejamos, agora, a seguinte passagem da Metafísica:
«Diz-se substância, se não em mais sentidos, pelo menos fundamentalmente em quatro: com efeito, a substância de cada coisa parece ser a essência, o universal, o género e, em quarto lugar, o sujeito.»
«O sujeito, por seu lado, é aquilo do qual se dizem as demais coisas sem que isso mesmo se diga, por sua vez, de nenhuma outra. Por isso devemos fazer, em primeiro lugar, as distinções oportunas àcerca dele: porque parece que substância é, em grau supremo, o sujeito primeiro. E diz-se que é tal, num sentido, a matéria, em outro sentido a forma, e em um terceiro sentido o composto de ambos ( chamo matéria, por exemplo, ao bronze, forma à configuração, e composto de ambos à estátua) de modo que se a forma específica é anterior à matéria e é em maior grau que ela, pela mesma razão será também anterior ao composto.» (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1028 b, 30-35, 1029 a 1-5).
Contra o que Aristóteles aqui escreve, não é, de facto, a substância - composto de forma e matéria - o sujeito primeiro. Este é a matéria prima (Hylé) porque é sobre esta que se imprime o cinzel da forma, dando origem à substância primeira (proté ousía).
Por outro lado, Aristóteles degradou, tornou múltiplo e ambíguo, o sentido da palavra substância. Esta é, em rigor, o ente individualizado (por exemplo este automóvel Ford de cor azul cobalto, aquele monte alentejano junto ao rio, esta nuvem, etc). A passagem da "Metafísica" que acabamos de ler, que refere a atribuição de quatro significados ao termo substância, um deles o de "universal", é corrigida ou clarificada por esta:
outra:
«Parece impossível, desde logo, que seja substância qualquer uma das coisas que se predicam universalmente. Em primeiro lugar, a substância de cada coisa é a própria de cada coisa que não se dá em nenhuma outra. Sem embargo, o universal é comum, já que universal se denomina aquilo que por natureza pertence a uma pluralidade. Assim, pois, de que será isto substância? Certamente, ou de todos ou de nenhum. Mas não é possível que o seja de todos e, por outro lado, se o fosse de uma só coisa, as demais coisas se identificariam com ela, posto que as coisas cuja substância é uma e cuja essência é uma são também elas uma só». (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1038 b, 10-15; o negrito é colocado por mim).
Aqui se diz, com clareza, que a substância não pode ser um universal, porque é um isto (tóde tí, em grego), determinado, concreto, limitado, individuado.
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