Pode o imperativo categórico teorizado por Kant justificar a actividade terrorista anti sistema político-social? A meu ver, e no ver de outros, pode. No que teoriza como imperativo categórico, Kant postula fórmulas inconsistentes entre si.
O imperativo categórico idealizado por Kant é formal, isto é, abstracto, e autónomo, ou seja, variável de pessoa para pessoa, não imposto de fora à consciência. Ele diz: «Age como se quisesses que a tua acção fosse lei universal da natureza». Em termos populares: «Fazer o bem, sem olhar a quem; aplicar a lei, doa a quem doer».
Escreveu Adela Cortina:
«A priori, una moral universalista carece de límites, ya que desde el imperativo categórico todo puede ponerse en cuéstion; por tanto, también la acción política queda subordinada al juicio moral. Pero esta moralización del mundo político, puede favorecer actitudes terroristas, porque el terrorista, que se autocomprende como defensor último de la justicia, quererá realizar la libertad mediante la violencia directa: apelando a principios universales, practicará el "terror de la virtud"» (Adela Cortina, Ética sin moral, Editorial Tecnos, Madrid, 2008, pag 150).
Um terrorista da ETA pode matar guardas civis a partir do seguinte imperativo categórico por ele formulado: «Agirei como se quisesse que fosse lei universal o direito de todos os povos à autodeterminação, logo combaterei, com armas, pela independência do País Vasco, neutralizando ou executando todos os que se opuserem a isso, sejam guardas civis, juízes, deputados, governantes, ou até meus vizinhos, amigos e familiares.»
É isto um imperativo categórico? É, na medida em que se universaliza uma máxima, princípio moral subjectivo.
Kant escreveu:
«A lei moral é santa (inviolável). O homem não é certamente assaz santo, mas a humanidade deve ser para ele santa na sua pessoa. Em toda a criação, tudo o que se quiser e sobre que se tem algum poder pode também utilizar-se simplesmente como meio; unicamente o homem e, com ele, toda a criatura racional é fim em si mesmo». (Emanuel Kant, Crítica da Razão prática, Edições 70, pag 103)
A humanidade não é cada homem singular: é o conjunto de todos os homens. Por isso a santidade da humanidade, fim em si, sobrepõe-se à santidade de cada homem, fim em si. O terrorista não está moralmente inibido de matar alguns ao exercer a sua lei moral que «respeita a humanidade oprimida», isto é, a humanidade em geral, do mesmo modo que o soldado mata no campo de batalha guiado pelo imperativo categórico de «defender a pátria, mesmo à custa do sacrifício pessoal da vida».
Parece certo que Kant condenava o terrorismo, no seu imperativo categórico particular, gizado na mente de Emanuel Kant. Mas o princípio do imperativo categórico na sua primeira fórmula de universalizar a máxima de cada um, legado pelo filósofo pode ser aplicado com liberdade, até para fundar a acção terrorista, uma vez que é desprovido de conteúdo empírico.
Note-se que as fórmulas do imperativo categórico são inconsistentes entre si. A fórmula «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza» (Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pag 59) é, em muitos casos incompatível com a fórmula «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.» (Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pag 69). Esta última fórmula não é autónoma, mas heterónoma, porque nos força a considerar todas as pessoas como fins roubando-nos o poder de legislar moralmente.
Exemplo: um polícia dos grupos de operações especiais que tem por imperativo categórico «Age no sentido de defenderes todos os cidadãos honestos e pacíficos face ao crime organizado» ao abater a tiro um sequestrador armado que aponta a arma a um refém, deixa este livre ao considerá-lo como um fim mas não trata o sequestrador como um fim mas como um meio, a tal ponto que lhe rouba a vida. Viola, pois, o imperativo categórico na modalidade «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.»
Nota: No Centro de Formação Margens do Guadiana, com sede na Escola Secundária com 3º Ciclo Diogo de Gouveia, R. Luís de Camões, 708-508 BEJA (telefone: 284 328 063), estão abertas as inscrições para a acção de formação para professores de filosofia (Grupo 410) «A teoria geral dos valores e a Ética, na perspectiva do método dialéctico», equivalente a dois créditos, 50 horas de duração (50HP), CCPFC/ACC 52326/08 CF. O formador é o autor deste blog.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
É habitual, nos actuais manuais de ética, estabelecer uma divisão triádica entre as correntes éticas: ética das virtudes, ética deontológica e ética consequencialista.
Tomemos, por exemplo, a explanação «RAZÕES PARA O UTILITARISMO:UMA AVALIAÇÃO COMPARATIVA DE PONTOS DE VISTA ÉTICOS» de Claudio F. Costa (Universidade Federal do Rio Grande do Norte):
«É comum que da boa intenção se siga a boa ação e que desta última se siga um bom resultado e vice-versa. Por causa disso, teorias éticas podem identificar o locus primário do valor moral nas disposições de caráter do agente, das quais emerge a sua intenção, no tipo de acção que ela produz, ou na conseqüência resultante da acção. No primeiro caso temos as éticas da virtude, no segundo as éticas deontológicas ("deon" = dever) e no terceiro as éticas teleológicas (´telos`=objectivo, fim) ou consequencialistas. »
Esta divisão triádica é errónea: na verdade, não há nenhuma distinção essencial entre ética das virtudes e ética deontológica. São uma só. A virtude não é apenas cultivada por Aristóteles mas também por Kant. O imperativo categórico kantiano é uma regra que deriva da virtude da equidade racional para com toda a humanidade. Separar a «virtude» do «tipo de acção» que ela produz é um erro de hiperanálise ( divisão mecanicista do que é indivisível). É como separar o braço da mão - esta está contida no braço. A virtude é a acção, racional e benévola, que se repete indefinidamente. Aristóteles sustentou que «a virtude do homem será hábito que faz o homem bom e com o qual executa o homem o seu ofício bem e perfeitamente.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco I, Livro II, Capítulo VI).
Vejamos como Claudio F.Costa define as éticas da virtude:
«1. Éticas da Virtude
«A ética da virtude teve a sua origem entre os filósofos gregos, principalmente em Aristóteles(1), tendo sido redescoberta contemporaneamente por filósofos como G. E. M.Anscombe(2) e Alasdair McIntyre(3). Ela deixa de localizar o centro irradiador do valormoral no agir para localizá-lo no ser daquele que age. Ela se resume no dito "O que vale é a intenção". O que vale não é o que o agente faz, mas as disposições de caráter que determinam motivos ou intenções das quais resultam as ações que possibilitam às pessoasviverem bem em uma sociedade. Essas disposições chamam-se virtudes. Virtudes podem ser morais e não-morais. Virtudes morais são a bondade, o senso de justiça, a sinceridade, a honestidade, a fidelidade, a lealdade... E virtudes não-morais são a coragem, a força de vontade. Muitos consideraram a bondade e o senso de justiça as duas virtudes morais cardinais(4). Essas duas virtudes parecem, ademais, ser interdependentes, pois uma boa pessoa, para escolher as boas ações, precisará possuir senso de justiça e ninguém deseja o zelo justiceiro sem magnanimidade de um inquisidor». (Cláudio F.Costa; o negrito é colocado por mim).
Note-se que a frase «O que vale não é o que o agente faz, mas as disposições de caráter que determinam motivos ou intenções das quais resultam as ações que possibilitam às pessoas viverem bem em uma sociedade» está errada. A virtude não é só intenção: é intenção mais acção. Se ficarmos apenas pela intenção, sem agir, isso não é virtude, mas vício de preguiça, omissão de auxílio a outrém ou coberdia.
Esta ética aristotélica não é senão ética deontológica (deón, dever, em grego). Também Kant coloca o centro de gravidade da ética na acção subordinada à intenção moral. E aí nada o diferencia de Aristóteles e de muitos outros filósofos. A ética de Kant é apenas uma modalidade dentro desta ética pluralista das virtudes: aquela modalidade que eleva a equidade, o querer agir de forma universal, sem distinções de pessoas, à categoria de virtude maior. A ética de Kant é a ética das virtudes do iluminismo, a ética personalista da sociedade burguesa, formal, isto é, abstracta, vazia, para permitir que cada pessoa construa uma máxima ou norma moral pessoal que a satisfaça no quadro do respeito pelos direitos de todas as outras.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Estarão correctos aqueles que sustentam que a« filosofia é uma disciplina não empírica e não formal»?
Aires Almeida e Desidério Murcho definem do seguinte modo a filosofia (o negrito é de nossa autoria):
«A filosofia trata de problemas conceptuais e não formais.Como a matemática, a filosofia não é uma disciplina empírica, isto é, não trata de problemas que se possam resolver pela observação ou pela experimentação. Assim a filosofia não é uma disciplina como a física ou a história que são disciplinas empíricas. Contudo, ao contrário da matemática, a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais. Os problemas da filosofia só podem resolver-se por via da discussão racional, cuidadosa e sistemática.»
«É enganador pensar que os problemas da filosofia por serem de natureza conceptual não são verdadeiros problemas ou não são problemas reais. O problema de saber se o aborto é eticamente permissível não é menos real só porque é um problema conceptual.»
(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags. 10-11)
Um dos erros latentes deste texto é opôr formal a conceptual. Formal não se opõe a conceptual: todo o conceito é uma forma espiritual. Opõe-se sim a substancial ou «material». Há conceitos formais - como o conceito de um, de dois, de três, de todo e de parte - e há conceitos substanciais - como o conceito ou ideia de cão, de árvore, de aborto, de mar, de espírito, de matéria...A filosofia trata obviamente de problemas formais na medida em que se converte em lógica clássica ou proposicional simbólica e em dialéctica.
Por exemplo, o problema da Unidade geradora da Multiplicidade é, em si mesmo, formal e conceptual.
Ao contrário do que sustentam Aires de Almeida e Desidério Murcho, a filosofia é uma disciplina simultaneamente empírica e meta-empírica, isto é, metafísica. Se não possuisse uma vertente empírica, a filosofia não poderia produzir nenhuma ciência empírica ou prática como aconteceu ao longo dos séculos - o átomo de Demócrito e Leucipo, da Antiguidade Clássica, é um conceito filosófico que evoluiu num sentido empírico a ponto de se lhe determinar substancialidade (hidrogénio, oxigénio, cobre..) e correspondente número de massa - nem tão pouco influiria na reformulação das ciências.
Na verdade, a filosofia trata de problemas que se podem resolver pela experimentação biotecnológica ou político-social. Por exemplo, a filosofia da autogestão das empresas como «a melhor forma de criar justiça social e riqueza» nasce de problemas empíricos, possui um carácter parcialmente empírico e pode ser testada empiricamente. Do mesmo modo, sucede com o aborto: a sensibilidade de cada pessoa , o seu lado empírico, influi na filosofia dessa pessoa àcerca do aborto voluntário. A filosofia é a ciência empírica ou hermenêutica que duvida de si mesma: será que a função faz o orgão, como dizia Lamarck? Serão os sonhos manifestações dos desejos, muitas vezes distorcidas, como dizia Freud? Serão as vacinas úteis à saúde ou causarão arterioesclerose, cancro e um debilitamento geral das defesas orgânicas?
Separar a filosofia da realidade empírica, negar-lhe vertente empírica, é próprio de uma visão antidialética do mundo, hiper-analítica, que fragmenta o que não pode ser dissociado.
Igualmente se equivocam Aires e Desidério ao sustentar que «a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais». Mas é óbvio que se ocupa disso! Os princípios da lógica clássica (identidade, não contradição, terceiro excluído, razão suficiente) não são senão mecanismos ou provas formais e a filosofia ocupa-se deles, inclui-os no seu arsenal de pensamentos. A filosofia ocupa-se de todos os problemas que constituem o cerne das ciências, lógicas, empírico-formais ou hermenêutico-sociais: o surgimento de qualquer dúvida ou profundidade especulativa numa ciência (por exemplo o pensamento de um matemático sobre se «dois adicionado a três é o mesmo que quatro adicionado a um») converte instantânea e automaticamente a certeza científica em filosofia.
O erro de Desidério e Aires reside em confundirem conceptual com metafísico ou racional-abstracto, como se depreende da seguinte passagem (o negrito no texto abaixo é nosso):
«Dizer que um problema é conceptual é só dizer que não é um problema susceptível de ser resolvido recorrendo à experiência ou ao simples cálculo - mas pode ser um problema real e importante. Acontece apenas que é um problema cuja solução depende fundamentalmente do pensamento incluindo a avaliação crítica de pontos de vista diferentes».
(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags.11)
Um mecânico que se apercebe que é necessário mudar a rótula do sistema de rodas de um automóvel observou sensorialmente e concebeu - formou um conceito - intelectualmente a solução do problema. E vai resolver ou traduzir esse conceito empírico num acto experimental: a mudança da rótula.
Falta a Aires e Desidério a distinção entre conceito empírico e conceito meta-empírico ou metafísico. Se possuíssem essa noção, não se equivocariam, não usariam de forma espúria o termo «conceptual».
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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