Quarta-feira, 8 de Fevereiro de 2017
Teste de filosofia do 11º ano (1 de Fevereiro de 2017)

 

 Eis um teste de filosofia para o 11º ano do ensino secundário em Portugal.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B

1 de Fevereiro de 2016. Professor: Francisco Queiroz

I

“.O espaço não é um conceito empírico extraído de experiências externas…O entendimento faz a síntese do diverso da intuição empírica e é condicionado, ao passo que a razão é incondicionada e produz antinomias» (Kant, Crítica da Razão Pura)

 

1) Explique estes pensamentos de Kant.

 

 2) Explique, como, segundo a gnosiologia de Kant, se formam o fenómeno ESCOLA, o conceito empírico de ESCOLA e o juízo a priori «Cinco mais seis é igual a onze».

      

3) Relacione, justificando:

A) As sete relações filosóficas em David Hume e as formas a priori da sensibilidade e do entendimento na teoria de Kant

B) As três res e três tipos de ideias em Descartes

C) Holismo e astúcia da razão em Hegel.

D) Idealismo, empirismo, teoria da tábua rasa e ideias de «eu», «alma» e «substância» em David Hume.

 

1) O espaço não é um conceito empírico extraído de experiências exteriores porque para o idealista Kant o espaço é a priori, existe antes de qualquer objecto físico, como sendo o lado externo, exterior ao nosso corpo, da sensibilidade. (VALE DOIS VALORES).O entendimento, faculdade que pensa os fenómenos mas não os sente, faz a síntese do diverso das intuições porque recebe milhares de intuições sensoriais de fenómenos (exemplo: muitas imagens de rosas brancas, vermelhas, etc) que sobem ao entendimento e este com as categorias de pluralidade, unidade, realidade, etc, reduzem-nas a um conceito único de rosa. É condicionado porque a sua atenção está centrada no mundo visível dos fenómenos (comboios a circular, salários dos trabalhadores, etc). A razão, faculdade que pensa os númenos ou objectos incognoscíveis (Deus, imortalidade da alma, a totalidade do mundo, não os objectos físicos) é livre, incondicionada porque vai além da experiência e entra na metafísica, pode «inverter» a ordem da natureza e imaginar que o filho nasça antes da mãe, etc. Balança ao gerar as antinomias, leis ou teses opostas, como por exemplo «Deus existe, Deus não existe, a liberdade existe, a liberdade não existe» (VALE TRÊS VALORES).

 

 

2) O númeno ou objecto metafísico afecta de alguma maneira a sensibilidade fazendo nascer nesta um caos empírico de matéria indeterminada e as formas a priori de espaço (figuras, extensão) e tempo (duração, simultaneidade, sucessão) moldam essa matéria transformando-a no fenómeno escola, que é o objecto visível ou coisa para nós. As imagens do fenómeno são levadas pela imaginação às categorias de unidade, pluralidade, realidade e outras do entendimento ou intelecto ligado ao mundo empírico e aí são reduzidas à unidade, a um conceito único de escola. Na forma a priori do tempo, na sensibilidade existem os números cinco, seis, onze e outros, estas intuições são elevadas ao entendimento, às categorias de unidade, pluralidade, totalidade, necessidade e estas categorias com a ajuda da tábua de juízos puros, em particular do juízo apodíctico, produzem o juízo a priori «Cinco mais seis é igual a onze» (VALE TRÊS VALORES).

 

3) A) As sete relações filosóficas são, segundo David Hume: identidade, semelhança, relações de tempo e de lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. É discutível saber se são noções a posteriori, ou seja, que surgem na experiência sensorial e não antes desta, ou se são formas a priori, isto é, estruturas vazias que estão antes da primeira experiência. As formas a priori da sensibilidade, em Kant, são: o espaço, cujo conteúdo é extensão e figuras geométricas, e o tempo, cujas determinações são duração, sucessão, simultaneidade e números.

É fácil detectar correspondências entre Hume e Kant: as relações de tempo e de lugar, em Hume, correspondem ao espaço e tempo à priori em Kant; a proporção de quantidade ou número, em Hume, equivale aos números contidos no tempo, em Kant.

 

As categorias, em Kant,  são formas a priori do entendinento, isto é, mecanismos inatos do pensamento, anteriores a toda a experiência sensorial, como por exemplo, unidade, pluralidade e totalidade (categorias da quantidade). São 12 e constituem a seguinte tábua:

«TÁBUA DAS CATEGORIAS»

I

Da quantidade:

Unidade

 Pluralidade

   Totalidade

           2                                                                                   3

Da Qualidade                                                              Da relação

Realidade                                                                    Inerência e subsistência

Negação                                                                      ( substancia et accidens)

Limitação                                                                    Causalidade e dependência

                                                                                                     (causa e efeito)

.....................................................................................Comunidade

                                                                                    (acção recíproca entre

                                                                                     o agente e o paciente)

                                                                         4

Da Modalidade:

Possibilidade-Impossibilidade

Existência-Não-existência

Necessidade-Contingência

 

 

Podemos fazer corresponder a relação filosófica de causação (determinismo), em Hume, à categoria de necessidade (lei infalível de causa-efeito)  em Kant. Também podemos estabelecer correspondência entre a relação filosófica de identidade e a categoria de inerência e subsistência (substância e acidente). As formas a priori do entendimento incluem as categorias e os juízos puros (afirmativos, negativos, assertóricos, apodícticos, etc) que são doze (VALE TRÊS VALORES).

 

B) As três res ou substâncias primordiais em Descartes são: a res divina, Deus, espírito criador do universo, fonte das outras duas; a res cogitans ou pensamento humano sobre ciências, filosofia, senso comum, etc; a res extensa, isto é, a matéria, abstracta e indeterminada, constituída por comprimento, largura e altura dos corpos, destituída de cor, som, cheiro. Os três tipos de ideias são : inatas, nascem connosco (ideias de triângulo, corpo, número, etc); adventícias, isto é, percepções empíricas; factícias, isto é, forjadas na imaginação. Podemos fazer corresponder as ideias adventícias à res extensa, por exemplo, ou as inatas, conforme o ponto de vista.(VALE QUATRO VALORES).

 

C) Holismo é a teoria que diz que a verdade é o todo e que o comportamento de cada parte só pode ser explicado em função do Todo. A astúcia da razão universal é a utilização das ambições pessoais de cada homem de Estado pela razão extra hunana ou Deus  de modo a fazer avançar a história para onde a razão quer. Sendo a astúcia da razão uma estratégia holística de manipular os homens ela é holismo, (VALE DOIS VALORES).

 

D) O idealismo, isto é, a doutrina que diz que o mundo material exterior à mente humana não existe, é ilusório, é base da teoria de Hume. Por exemplo, o"eu" em David Hume não é uma realidade, mas uma ideia ilusória, uma vez que somos apenas uma corrente de percepções empíricas a que a memória e a imaginação atribuem um núcleo invariável chamado «eu». Do mesmo modo, a   substância (exemplos: as substâncias cadeira ou nuvem) é uma ideia fabricada pela nossa imaginação servindo-se das sete relações filosóficas que são disposições sensório-intelectuais a priori da mente humana: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. A ideia de permanência, de continuidade entre as percepções empíricas forja as ideias de eu e de substância. As relações de tempo e lugar não estão em objectos materiais fora de nós mas são um modo de ver e pensar inerente à nossa mente - e isto é idealismo. David Hume é empirista  porque sustenta que as nossas impressões de sensação ou percepções empíricas (exemplo: a visão de um gato, o sabor da açorda alentejana) são a fonte das nossas ideias. Sustenta a teoria da tábua rasa que diz que ao nascer a mente humana vem vazia de conhecimentos. (VALE TRÊS VALORES).

 

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Sexta-feira, 9 de Dezembro de 2011
Heidegger deturpou a teoria do tempo concebida por Aristóteles

 Com a pretensão de se apresentar como o criador da mais elaborada e filosófica doutrina do tempo, Martin Heidegger falsificou a teoria do tempo de Aristóteles. Também Kant falsificou a posição idealista de George Berkeley para atacar e superar este na opinião pública: Kant usou a frase de Berkeley de que «o espaço é impossível», descontextualizando-a, para ridicularizar o próprio Berkeley e classificá-lo de idealista dogmático, e para se apresentar com uma teoria original, quando ele mesmo, Kant, perfilhou a mesma tese idealista de Berkeley de que «o espaço é impossível em si mesmo», isto é, fora da mente humana. Os filósofos e os aspirantes a filósofos não escapam à vaidade de serem prestigiados, de "ficarem na história" e, com certa  frequência, adulteram as ideias dos seus opositores ou apropriam-se delas dando-lhes uma nova roupagem.

 

Sobre o tempo, Aristóteles é mais claro e mais profundo na Física do que Heidegger em O Ser e o Tempo, livro este que pretende ser uma réplica e uma superação da Física.

.

Referindo-se aos que interpretam o tempo a partir do movimento dos ponteiros do relógio,Heidegger escreveu:

 

«O tempo é o numerado que se mostra no seguir, apresentando e numerando, o ponteiro peregrinante, de tal maneira que o apresentar se temporaliza na sua unidade extática com o reter e o estar na expetativa patentes no horizonte do anteriormente e do posteriormente. Mas isto não é outra coisa que a interpretação ontológico-existenciária a definição que Aristóteles dá do tempo: «Isto, a saber, é o tempo, o numerado no movimento com que se depara no horizonte do anteriormente e do posteriormente.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 219b, 2).(...) A origem do tempo assim patente não constitui para Aristóteles nenhum problema.» (...)

«Toda a dilucidação posterior do conceito de tempo atém-se fundamentalmentre à definição aristotélica, quer dizer, faz do tempo um tema naquela forma em que se mostra no "cuidar de" , "olhando em redor". (...) Ao apresentar o móvel no seu movimento, diz-se: "agora aqui", "agora aqui" e assim sucessivamente. O numerado são os agoras. E estes mostram-se "em cada agora" como "em seguida já não"

«O tempo resulta compreendido como "um atrás do outro", como "fluxo" dos agoras, como "curso do tempo". (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 454, Fondo de Cultura Económica; o negrito é posto por mim).

 

Heidegger falsifica a posição de Aristóteles ao dizer que este descreve o tempo como uma linha contínua feita de agoras em contiguidade uns com os outros e que a sua concepção do tempo não constitui nenhum problema, é ingénua. É falso, como se pode ver pelas citações abaixo da Física de Aristóteles.  

 

ARISTÓTELES NEGA QUE O TEMPO SEJA FORMADO DE "AGORAS", AO CONTRÁRIO DO QUE DELE DIZ HEIDEGGER

 

Heidegger acusa Aristóteles de nivelar os momentos do tempo, dizendo:

 

«Na interpretação vulgar do tempo como sequência  de agoras falta assim a databilidade como também a a significatividade» :

«A constituição horizontal-extática da temporalidade, em que se fundam a databilidade e a significatividade do agora, resulta nivelada por obra desse encobrimento.» (Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 455).

 

 

Não vejo como esta crítica possa atingir a textura da teoria aristotélica do tempo. Sem embargo de alguma oscilação de posição, Aristóteles não inclui o "agora" (nyn) ou instante no tempo: antes concebe o "agora" como um limite, indivisível, entre o passado e o futuro que constituem o fio do tempo. Portanto, Aristóteles defende a descontinuidade entre o agora e o passado e o agora e o futuro. Não se vê com clareza onde está o tal nivelamento do tempo em Aristóteles que Heidegger denuncia. O senso comum possui uma concepção atomística do tempo (este seria uma soma de agoras) mas não é essa a concepção de Aristóteles que torna o tempo semisubjetivo ou fenomenológico:

 

 

«Ademais, se o que nos permite dizer que uma coisa se moveu na totalidade do tempo AC, ou em qualquer outro tempo, é o facto de tomar o extremo desse tempo, a saber, um "agora" (pois o "agora" é o que delimita o tempo e o que se encontra entre dois "agoras" é tempo).. (Aristóteles, Fisica, Livro VI, 237a , 1-5).

 

«Assim, pois, enquanto limite, o agora não é tempo, mas um acidente deste; mas, enquanto numera, é número.» (Física, Livro VI, 220a, 20)»

 

Se o "agora" é um acidente do tempo, significa que não é a  essência deste. Há um movimento não local, não espacial, no tempo que o agora não incorpora, porque é estático. E prossegue Aristóteles:

 

«O "agora", considerado em si mesmo e primariamente, não em sentido derivado, quer dizer, como um lapso de tempo, é também necessariamente indivisível, e como tal é inerente a todo o tempo. Pois o "agora" é de algum modo o limite extremo do passado e nele não há nada de futuro, e é também o limite extremo do futuro e nele não há nada do passado; justamente por isso dizemos que é o limite de ambos. Quando se tiver demonstrado que é em si tal como o descrevemos, e que é um e o mesmo, ficará claro que o "agora" é indivisível.» (Aristóteles, Física, Livro VI, 233b, 30-35, 234 a, 1-59; o negrito é posto por mim).

 

 

 

O desmentido mais contundente da interpretação falaciosa de Heidegger sobre Aristóteles é dado por esta citação:

 

«Mas ainda que o tempo seja divisível, algumas das suas partes já foram, outras estão por vir, e nenhuma "é". O agora não é uma parte, pois uma parte é a medida do todo, e o todo tem que estar composto de partes, mas não parece que o tempo esteja composto de agoras. (...) Porque há que admitir que é tão impossível que os agoras sejam contíguos entre si, como um ponto o seja com outro ponto. Então se não se destruísse no seguinte agora, mas sim em outro, existiria simultaneamente com os infinitos agoras que há entre ambos, o que é impossível.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 218 a, 5-10; 15-20; o negrito é posto por mim).

 

«O tempo não está composto de "agoras", nem uma linha de pontos, nem tampouco um movimento em ato de movimentos já cumpridos, pois quem afirme o anterior não faz senão supor que o movimento está composto de átomos de movimento, como se o tempo estivesse composto de "agoras" ou a magnitude de pontos.» (Aristóteles, Física, Livro VI, 241 a, 1-5; o negrito é posto por mim).

 

O tempo é contínuo, divisível até ao infinito e é número de movimento. É como uma linha, possui duração - o passado tem uma duração experienciada, enquanto há notícia dela, e o futuro possui uma duração ainda em potência -  e o agora é como um ponto que divide a linha do tempo. Ora uma linha não é, em rigor, um conjunto de pontos porque um ponto não possui extensão: do mesmo modo o tempo, que é duração, não é um conjunto de agoras, cada um dos quais não tem duração. Assim para Aristóteles, o tempo é numeração movente entre os agoras - o agora é formalmente sempre o mesmo, o limite, mas substancialmente, no seu conteúdo, altera-se a cada fração de segundo - e não, como diz Heidegger, um fluxo formado de agoras.

 

Ao contrário do que diz Heidegger, apresentando Aristóteles como defensor do tempo como um "fluxo" de "agoras" ou instantes presentes, o tempo é como um segmento de reta entre dois agoras ou uma linha reta lançada para trás a partir do limite que é o agora .  

 

«O tempo é, pois, contínuo pelo agora e divide-se no agora, mas também sob este aspeto segue a deslocação e a coisa deslocada» (Física, Livro IV, 220a, 5-10).

 

Esta frase, para ser compatível com a tese de que o tempo não se compõe de agoras, pode ser interpretada neste sentido: o tempo é composto de passado e futuro, descontínuos entre si, um já morto (o passado) o outro ainda por nascer (o futuro) separados pelo agora que faz nascer o tempo, incessantemente. 

 

«O agora é a continuidade do tempo, como já dissemos, pois enlaça o tempo passado com o tempo futuro e é o limite do tempo ...(Física, )  

 

 Ocorre-me ser possível comparar o agora com as fotografias da fita de celulóide que a máquina de projeção cinematográfica faz correr e o tempo com o filme. As fotos ("agoras") delimitam o filme, que é movimento .

 

A Física de Aristóteles é rica em definições precisas:

«Entendo por "contínuo" o que é divisível em divisíveis sempre divisíveis; e se temos por assente que isto é a continuidade, então o tempo tem que ser necessariamente contínuo» (Física, Livro VI, 232b, 20-25).

 

UMA CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA E UMA CONCEPÇÃO REALISTA EM ARISTÓTELES: TEMPO E ALMA SÃO INDISSOCIÁVEIS E TEMPO É A MEDIDA DO MOVIMENTO DA ESFERA

 

 

A meu ver, a concepção do tempo em Heidegger não constitui nenhum passo adiante em relação à concepção aristotélica do tempo, mal compreendida ou intencionalmente falsificada pelo filósofo alemão. Ora Heidegger escreveu:

 

«O tempo tornado público na medição do mesmo não se converte de maneira alguma em espaço por obra de datá-lo mediante relações métricas espaciais. » (Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Madrid, pag 450).

 

Aristóteles não converteu o tempo em espaço. E Heidegger prossegue:

 

«"O tempo" não está "diante dos olhos" nem no "sujeito" nem no "objeto", nem "dentro" nem "fora", e "é" anterior a toda a subjetividade e objetividade representa a própria condição de possibilidade de este "anterior". Tem em geral "um ser"?  E se não tem, é um fantasma ou é mais que todo o ente possível? (...) Antes de tudo, trata-se de compreender que a temporalidade, enquanto horizontal-extática, temporaliza o que chamamos um tempo mundano, que constitui a intratemporalidade do "à mão" e do "diante dos olhos". Mas então estes entes nunca podem chamar-se "temporais" em sentido rigoroso. São intemporais, como todos os entes que não têm a forma de ser do "ser-aí", dêem-se, gerem-se e corrompam-se "realmente" ou subsistam "idealmente" .» (Heidegger, ibid, pag 452),

 

O que Heidegger nos oferece é uma interpretação do tempo inspirada nas doutrinas de Kant - o tempo é criado pelo sujeito, não existe fora dele - e de Bergson - há um tempo psicológico interno, duração pura, diferente do tempo dos relógios. A temporalidade existenciária, mecanismo oculto, obscuro e profundo do "ser", na doutrina de Heidegger, não é senão a forma a priori do tempo, na doutrina de Kant,  que «temporaliza» isto é introduz a "aparência empírica temporal" nos fenómenos: o café de há minutos atrás, a rosa ressequida de há cinco dias, etc.Heidegger admite que os objetos são intemporais, estão fora do tempo à maneira de arquétipos em Platão ou das essências eternas em Aristóteles situadas em nenhum lugar ou de númenos em Kant.

 

Aristóteles parece ser mais preciso que Heidegger sobre a natureza do tempo. Começa por atribuir-lhe um ser próprio que não é a mudança visto que esta é um sair fora de si e o tempo não sai de si mesmo senão no "agora".

 

«Todas as coisas se geram e destroem no tempo. Por isso, enquanto alguns diziam que o tempo «era o mais sábio», o pitagórico Parón chamou-lhe com mais propriedade «o mais néscio», porque no tempo esquecemos. É claro, então, que o tempo tomado em si mesmo é mais causa de destruição do que de geração, como já se disse antes, porque a mudança é em si mesmo um sair fora de si, e o tempo só indirectamente é causa de geração e de ser. Um indício suficiente disso está no facto de que nada se gera se não se move de alguma maneira e actua enquanto que algo pode ser destruído sem que se mova e é sobretudo de esta destruição de que se costuma dizer que é obra do tempo. Mas o tempo não é a causa disto, mas dá-se o caso de que a mudança se produz no tempo.» (Física, Livro IV, 22b, 15-25).

 

A tese «o tempo só indiretamente é causa de geração e ser» é profunda e desafia o senso comum. Heidegger passou em claro isto, apostado que estava em liquidar a doutrina de Aristóteles. A concepção realista do tempo, em Aristóteles, não é um realismo ingénuo mas um realismo crítico nos umbrais da fenomenologia:

 

«É também digno de estudo o modo segundo o qual o tempo está em relação com a alma e por que razão se pensa que o tempo existe em todas as coisas, na terra, no mar e no céu. Acaso porque o tempo é uma propriedade ou um modo de ser do movimento, já que é o seu número, e todas essas coisas são movíveis, pois todas estão em lugar, e o tempo e o movimento estão juntos tanto em potência como em ato?»

 

«Quanto à primeira dificuldade, existiria ou não o tempo se existisse a alma? Porque se não puder haver alguém que numere tão pouco poderia haver algo que fosse numerado, e por consequência não poderia existir nenhum número, pois o número é o numerado ou o numerável. Mas se nada que não seja a alma, ou a inteligência da alma, pode numerar por natureza, resulta impossível a existência do tempo sem a existência da alma, a menos que seja aquilo que quando existe o tempo existe, como seria o caso se existisse se existisse um movimento sem que exista a alma; haveria, então, um antes e um depois no movimento, e o tempo seria estes enquanto numeráveis.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 223 a, 15-30; o negrito é colocado por mim).

 

Neste pensamento acima Aristóteles esboçou as duas hipóteses: a fenomenológica, isto é, o tempo só existe se existir a alma que o concebe; a realista, o tempo existe como número do movimento (circular), isto é, objetivamente, sem que exista a alma humana, a mente.

 

«Em sentido absoluto, o tempo é número de um movimento contínuo, não de uma qualquer classe de movimento.» (Física, 223 b, 1-5)

«.. então o movimento circular uniforme é a medida por excelência, porque o seu número é o mais conhecido. Nem a alteração nem o aumento nem a geração são uniformes, só a deslocação o é. Por isso pensa-se que o tempo é o movimento da esfera, porque por este são medidos os outros movimentos, e o tempo por este movimento.» (Física, 223 b, 15-25).

 

Aristóteles definiu o tempo como o número do movimento circular - e note-se que há números finitos e infinitos, pelo que a definição é muito rica - mas Heidegger nem isso conseguiu, remetendo a noção de tempo para o mecanismo obscuro do tempo originário situado no ser-aí (cada homem, na sua existência) - que equivale à alma, em Aristóteles, potência que numera - ou no ser em geral.  A vaidade de Heidegger, plasmada, ademais, na construção de um discurso difícil de perceber, e com ambiguidades importantes, impediu-o de reconhecer a inteligência  e a criatividade superiores de um filósofo que, vinte e três séculos antes, foi maior que ele: Aristóteles, talvez a maior inteligência de toda a história da filosofia.  

 

 

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