Sexta-feira, 7 de Outubro de 2011
Questionar João Branquinho: o estudo dos primeiros princípios é separável do estudo do ser?

João Branquinho, catedrático de filosofia analítica da universidade de Lisboa escreveu no blog  "crítica na rede": 
 

«Com efeito, a província da metafísica foi dividida por Aristóteles em três departamentos: a) o estudo dos primeiros princípios e das primeiras causas; b) o estudo do divino, ou teologia; e c) o estudo do ser enquanto ser, ou ontologia. Ora, à luz de uma maneira corrente de mapear o território da filosofia e as suas disciplinas e problemas, pode-se dizer, por um lado, que a investigação mencionada em b pertence actualmente à disciplina de filosofia da religião, e, por outro lado, com respeito à investigação mencionada em a, que uma parte dela cai no âmbito da lógica e a outra parte no âmbito da filosofia da ciência. » (João Branquinho, Objecto e método da metafísica, Metafísica logicamente disciplinada, em 19 de Agosto de 2004, transcrito por mim em 6 de Outubro de 2011; o negrito é por mim colocado).

 

 

Esta divisão em três departamentos da metafísica é ambígua - não vou discutir, de imediato, se o responsável da ambiguidade é o próprio Aristóteles, ou se é João Branquinho. A questão está em que não se pode separar os primeiros princípios, do ser enquanto ser. Para Tales de Mileto, a água é princípio - ainda que Hegel tenha posto em dúvida que Tales já possuisse um grau de abstracção do pensamento que lhe permitisse supor a água como princípio interno de todas as coisas - e é também o ser, ou pelo menos a parte material do ser, se admitirmos que deus ou deuses é a parte espiritual do ser. 

O ser inclui os princípios gerais mas também a tessitura permanente ou estável das coisas.

 

Aristóteles escreveu:

 

«Posto que também o matemático utiliza os axiomas comuns, mas no seu âmbito particular, à filosofia primeira corresponderá estudar também os seus princípios. Pois "se se subtraem quantidades iguais de quantidades iguais, os restos são iguais" é um axioma comum a todo o tipo de quantidades, mas as matemáticas investigam aplicando-o a alguma parte da matéria que lhes é própria, por exemplo, linhas, ângulos, números, ou algum dos outros tipos de quantidade, mas não enquanto coisas que são, mas enquanto cada uma de estas coisas é contínua em uma, duas ou três dimensões. A filosofia, pelo contrário, não investiga acerca de realidades particulares, enquanto a cada uma delas acontece ter alguma propriedade, mas sim acerca do que é, enquanto cada uma delas é algo que é. E o mesmo que com as matemáticas acontece também com a ciência física. Com efeito, a física estuda os acidentes e os princípios das coisas que são, enquanto são movidas, e não enquanto coisas que são (enquanto que dissemos que a ciência primeira se ocupa de estas, na medida em que as coisas que estuda são coisas que são, e não enquanto são alguma outra coisa). Por isso ha-de afirmar-se que esta e a ciência matemática são partes da sabedoria». (Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1061 b, 20-30; o negrito é posto por mim)

 

Há, pois, na doutrina de Aristóteles, uma anterioridade ontológica das coisas imóveis, objecto da filosofia, em relação às operações matemáticas, que são móveis na inteligência, e em relação aos movimentos dos corpos físicos. A filosofia estuda as coisas que são - esta forma do presente do indicativo do verbo «ser» significa eternidade, imobilidade e imutabilidade.

 

No fundo, a filosofia engloba os princípios gerais de todas as ciências - o ser enquanto ser - e é o resíduo, a ossatura comum a todas as ciências. Estuda o que é invariável, imutável - nisto, Aristóteles é um platónico, considera imóveis as essências principiais e eternas- aquilo que não que devém. A física estuda as coisas que são, em movimento- as essências de esfera, dardo, onda, por exemplo. Mas cada ciência assenta num suporte imóvel, as essências eternas, e, portanto, assenta no objecto da  filosofia que, como coluna vertebral, aguenta as ciências. Há os princípios imóveis, raíz da «árvore» do ser, princípios que fazem parte do ser. Na filosofia de Aristóteles, Deus é um dos princípios imóveis.

 

Ao dizer que o estudo dos primeiros princípios e das primeiras causas caem, hoje, na esfera da lógica, João Branquinho exprime o seu pendor para a filosofia "analítica".

Mas por que  razão a lógica há de abarcar as primeiras causas e não apenas as segundas? Por que motivo há-de a lógica conter os primeiros princípios? Por que razão não poderá a lógica nascer do terreno principial do ilógico e os primeiros princípios escaparem à lógica? E a filosofia da ciência abarca os primeiros princípios, como diz João Branquinho?  Terá capacidade para tal?

 

Em minha opinião, os primeiros princípios - como por exemplo, matéria ou espírito como fonte do universo, de tudo - continuam a ser objecto prioritário da filosofia da qual a ciência materialista é apenas uma versão. Não concordo pois que sejam a lógica ou a filosofia da ciência a absorver hoje o estudo dos primeiros princípios, das primeiras causas, como sustenta João Branquinho: é uma visão excessivamente positivista... Estes princípios são ainda objecto da metafísica ou filosofia primeira, como o eram há 2400 anos.

 

 

ARISTÓTELES NO LIVRO XI: FÍSICA, MATEMÁTICA E TEOLOGIA COMO AS CIÊNCIAS TEORÉTICAS

 

Aristóteles distingue no livro XI da Metafísica, três ciências teoréticas: a física, a matemática e a teologia. E, aparentemente pelo menos, omite a filosofia primeira, a metafísica racional.

 

«Por outro lado, posto que há uma ciência do que é, enquanto é e enquanto é separado, há-de observar-se se esta acaso se identifica com a física ou se, mais precisamente, é distinta dela. Certamente, a física trata das coisas que têm em si mesmas um princípio de movimento, enquanto que a matemática, por sua vez, é ciência teorética acerca de coisas que têm permanência, mas não existência separada. Portanto, alguma de estas ciências distintas se ocupa do que é separado e imóvel, se é que há alguma tal substância, quer dizer, separada e imóvel, algo que tratamos de demonstrar. E, se entre as coisas que são, existe uma tal natureza, ali estará também seguramente o divino, e ela será princípio primeiro e supremo. É, pois, evidente, que há três géneros de ciências teoréticas: Física, Matemáticas, Teologia. » (Aristóteles, Metafísica, Livro XI, 1064 a, 30-35, 1064 b, 1-5; o negrito é colocado por mim).

 

Assim, a filosofia é a ciência do que é - essências e relações eternas anteriores aos objectos físicos - e a teologia é a ciência do que é e separado- Deus, a inteligência suprema, imóvel, alheio ao mundo. Dir-se-ia que a teologia está contida na filosofia mas não esgota esta. A filosofia é a razão vertebradora da física, da matemática, das ciências teoréticas: é lógica, ontologia, eidologia (ou noologia).

 

A filosofia apreende, por exemplo, a essência de cavalo e o género animal, conceitos que são anteriores ontologicamente aos cavalos reais e animais reais e formula o juízo «Os cavalos são animais» que integra a espécie cavalo no género animal . Este juízo é uma relação. A física estuda os cavalos e os animais em geral no seu movimento local (phorá) e, se não estou em erro - isto é,  se considerarmos a biologia incluída na física ou ciência geral da natureza-  no seu movimento interno que é a geração (génesis), alteração (alloíosis), corrupção (phtorá). 

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:48
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