Diversas imprecisões pautam o manual do professor da Areal Editores «Ser no mundo, filosofia 11º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, sem embargo de possuir textos de boa qualidade.
OS EMPIRISTAS DIZEM QUE A ÚNICA FONTE DE CONHECIMENTO É OS SENTIDOS?
Diz o manual da Areal:
« Segundo os empiristas, a única fonte do conhecimento são os sentidos. O conhecimento não pode resultar da razão, dado que esta não possui qualquer informação. » (André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág. 163; o destaque a negrito é de minha autoria).
Isto não é, rigorosamente, verdade. Para alguns empiristas, os radicalmente sensualistas ou sensacionistas, anti-intelectualistas, os sentidos são a única fonte de conhecimento. Mas para outros, como David Hume, os sentidos são a principal mas não exclusiva fonte de conhecimento: a razão e a imaginação são também fontes (imateriais) do conhecimento.
David Hume escreveu:
«Há sete espécies de diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes: as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. É da ideia de triângulo que deduzimos a relação de igualdade que existe entre os seus três ângulos e dois rectos; e esta relação é invariável enquanto a nossa ideia permanecer a mesma. As relações de contiguidade e distância entre dois objectos pelo contrário podem variar apenas por uma alteração de lugar, sem qualquer mudança nos objectos ou nas ideias; e o lugar depende de inúmeras circunstâncias diversas, as quais a mente não pode prever. O mesmo se pasa com a identidade e a causação.» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
Afinal estas relações filosóficas vêm dos sentidos? Ou são construções da razão e da imaginação aplicadas aos dados dos sentidos e simultâneas a estes? São construções da razão, a posteriori. Não se pode limitar o conhecimento ao dado empírico, segundo Hume e outros empiristas.
O DOGMATISMO SÓ DEFENDE QUE O CONHECIMENTO É POSSÍVEL?
Lê-se no manual:
«Entende-se por dogmatismo a posição que defende que o conhecimento é possível e que a defesa da sua impossibilidade não faz sentido. Para o dogmático, é evidente que há contacto entre sujeito e objecto e que o conhecimento que temos da realidade corresponde à verdade. Por conseguinte, é também evidente a possibilidade de apreensão da realidade por parte do ser humano. Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.»(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 154).
Há uma flutuação de imprecisão nesta definição de dogmatismo. Este é a teoria das certezas, do conhecimento real, efectivo e não apenas da possibilidade do conhecimento. O probabilismo, uma síntese entre cepticismo e dogmatismo, estabelece que o conhecimento é provável, possível, - e nesse ponto é dogmatismo - mas recusa-se a determiná-lo em concreto - e aqui é cepticismo. Portanto, o probabilismo defende que o conhecimento é possível tal como o dogmatismo. Não é a possibilidade que os distingue já que é comum a ambos.
A frase «Segundo os defensores do dogmatismo, essa confiança resulta da capacidade racional do ser humano.» está parcialmente errada. Há empiristas, dogmáticos, que sustentam que essa confiança na verdade do conhecimento resulta da capacidade perceptiva empírica, e não da razão...
SÓ HÁ CONHECIMENTO VERDADEIRO? NÃO HÁ CONHECIMENTO VEROSÍMIL?
Vejamos agora uma tese da filosofia analítica que o manual defende:
«1- Só existe conhecimento se ele for verdadeiro.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 147).
Há conhecimento da Bíblia e da ideia de Paraíso nela contida. Ora, o Paraíso é verdadeiro? É verosímil: pode existir, de facto, embora não possamos jurar que existe. Há conhecimento mentalmente verdadeiro e potencialmente falso na realidade extra-mental. A este conhecimento chama-se verosímil, provável. A teoria da Terra Oca é um conhecimento especulativo, verosímil sobre a existência do reino de Agartha, onde viveria uma civilização de seres humanos, no interior do núcleo do planeta Terra. Não é um conjunto de proposições sem sentido, como diz o positivismo lógico.
Os autores do manual tomam a posição do «ou é preto ou é branco, não há tons intermédios, ou o conhecimento é verdadeiro ou não é conhecimento». É uma falácia de falsa dicotomia. Existe o conhecimento verosímil.
INDISTINÇÃO ENTRE DOGMATISMO INGÉNUO E DOGMATISMO CRÍTICO
Sobre as duas posições extremas quanto à possibilidade de conhecimento lê-se mo manual:
«Originariamente, podem ser identificadas duas posições extremas quanto à possibilidade do conhecimento: dogmatismo ingénuo e cepticismo radical.
Os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer. Para os defensores do cepticismo radical o conhecimento não é possível. Estas duas posições radicais contrastam com outras posturas mais moderadas. Alguns pensadores acreditam que é possível conhecer uma parte da realidade (por exemplo, os defensores do dogmatismo metafísico) outros acreditam que o conhecimento do mundo é limitado mas que a verdade existe, apesar de não nos ser acessível (posição defendida, por exemplo, pelo cepticismo moderado).»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, «Ser no mundo, filosofia 11º ano», com revisão científica de Viriato Soromenho-Marques e Vera Rodrigues, Areal Editores, pág 167).
Crítica minha: dogmatismo ingénuo está incompletamente definido ao dizer-se que «os defensores do dogmatismo ingénuo sustentam que o ser humano é capaz de conhecer» quando a definição correcta é: «o dogmatismo ingénuo sustenta que o ser humano conhece a realidade sem duvidar das aparências». O manual não alude a dogmatismo crítico, que é o contraponto do dogmatismo ingénuo, mas apresenta a noção vaga de dogmatismo metafísico como sendo esse contraponto. Ora o dogmatismo ingénuo inclui, em regra, o dogmatismo metafísico (Exemplo: creio no Paraíso, no Inferno e creio que a erva é verde e o céu é azul e que o Sol e a Lua se deslocam no céu ao longo do dia») ainda que exista dogmatismo metafísico crítico. Ingénuo não se opõe a metafísico mas sim a não ingénuo, crítico.
AUSÊNCIA DE DEFINIÇÃO CLARA DO BINÓMIO IDEALISMO-REALISMO
Os tratados ou dicionários de filosofia, nas suas classificações das correntes gnosiológicas, fazem sempre referência,ao binómio realismo-idealismo. Este manual «Ser no mundo, 11º ano» quase omite pura e simplesmente o tema, apesar de ter uma ou outra referência transversal:
«Platão representa a forma mais antiga de racionalismo, ainda que normalmente seja conhecido como idealista devido à sua teoria das ideias universais.» (André Leonor, Filipe Ribeiro, ibid pág. 161).
Há citações de autores para definir realismo como a seguinte, que aponta o «realismo das ideias» em Platão:
«Herdeiro desta tradição, a primeira concepção de um Russel segundo a qual os objectos e as relações matemáticas têm uma existência real e separada do espírito, é também um realismo (...) Através do realismo exprime-se a ideia segundo a qual o espírito não é Todo-Poderoso, que não pode por si próprio atingir ou conduzir ao verdadeiro, que a verdade se impõe sem que possamos dispor dela...» (VVAA, Dicionário Prático de Filosofia, Terramar, pp. 328-329, citado in «Ser no Mundo, Filosofia 11º», Areal Editores, pág 256).
Não se fornece, no entanto, a definição, ou as diversas definições, de idealismo. Isto é uma prova de debilidade teórica de autores e revisores do manual, de não dominarem a ontognosiologia, em particular a distinção entre o idealismo -nas suas várias acepções - e o realismo - nas suas várias acepções. Descartes é idealista ou realista? E David Hume? E Kant? Apesar de abordarem a doutrina destes filósofos em alguns aspectos, os autores do manual nada dizem sobre o assunto. Presume-se que não sabem classificar como realismo ou idealismo estas doutrinas e os seus diferentes degraus.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O livro de exercícios "O essencial em actividades" anexo ao manual de filosofia 10º ano "Ser no mundo" de André Leonor e Filipe Ribeiro, da Areal Editores, é um espelho da confusão instalada pela filosofia analítica anglo-norte-americana entre as universidades e os professores de filosofia do ensino secundário. As famosas perguntas de escolha múltipla possuem, frequentemente, duas ou três respostas certas mas os autores deste manual acham que só há uma resposta certa para cada grupo das quatro respostas possíveis que elaboram...
O DETERMINISMO DIZ QUE O LIVRE-ARBÍTRIO É ILUSÃO? QUE CONFUSÃO...
Vejamos a primeira questão do grupo I da ficha 02 deste manual de exercícios "Ser no mundo, 10º ano", centrada num texto de Durkheim:
"Quando desempenho a minha tarefa de irmão, de esposo ou de cidadão, quando executo os compromissos que tomei, cumpro deveres que estão definidos, para além de mim e dos meus actos, no direito e nos costumes. Mesmo quando eles estão de acordo com os meus sentimentos próprios e lhes sinto interiormente a realidade, esta não deixa de ser objectiva, pois não fui eu que os estabeleci, antes os recebi pela educação. (...)
«Estes tipos de conhecimento ou de pensamento não são só exteriores ao indivíduo, como dotados dum poder imperativo e coercivo en virtude do que lhe impõem, quer queira, quer não. Sem dúvida, quando a ela me conformo de boa vontade, esta coerção não se faz, ou faz-se pouco, sentir, por inútil.»
(..................................................................................................................................................)
(E.Durkheim, As regras do método sociológico, Presença , pp 29-31)
Grupo I
Relacione a frase destacada no texto com o argumento determinista de acordo com o qual o livre-arbítrio é ilusão.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, página 15)
Resposta dos autores: Segundo os defensores do determinismo, a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão. Nos casos em que julgamos agir por vontade própria, esta liberdade apenas resulta de causas objectivas que desconhecemos.
Da mesma forma, na frase destacada no texto, mesmo quando julgamos agir de acordo com a nossa vontade, o móbil da acção não está no sujeito. (in "O essencial em actividades", pág. 60).
Crítica minha: É um erro dizer que, «segundo os defensores do determinismo, a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão». Há defensores do determinismo, designados radicais, que sustentam que não há espaço para existir livre-arbítrio e há defensores do determinismo, baptizados de moderados ou compatibilistas - na equívoca classificação dos "analíticos" - que sustentam que há livre-arbítrio mais além da vasta rede do determinismo. O que André Leonor e Filipe Ribeiro deveriam dizer é: «segundo os defensores do fatalismo, e segundo os defensores do "determinismo radical" a liberdade do ser humano não passa de uma ilusão», mas confundem determinismo, doutrina segundo a qual, nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos, com fatalismo, doutrina segundo a qual tudo está predestinado e não existe livre-arbítrio.
SÓ HÁ ACÇÃO HUMANA QUANDO HÁ VONTADE CONSCIENTE E DELIBERAÇÃO? SE ASSIM FOSSE OS HOMENS SERIAM ANJOS...
Prossigamos a análise do livro de exercícios da Areal Editores 10º ano de filosofia, na ficha 2:
Grupo II
«Na resposta a cada um dos itens de 1.1 a 1.4. , selecione a única opção correcta.
1.1. Consideramos que se trata de acção humana quando:
(A) O sujeito tem papel passivo naquilo que acontece.
(B) Aquilo que sucede implica um movimento realizado por um ser humano, ainda que involuntariamente.
(C) O que sucede resulta da decisão consciente, voluntária de um agente.
(D) Algo é realizado por um ser humano.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 16)
Resposta dos autores: Só a hipótese "C" está certa.
Crítica minha: As hipóteses B, C e D estão correctas. Existe acção humana voluntária e acção humana involuntária. Que é o homicídio involuntário senão uma acção humana? Se um condutor de um autocarro adormece ao volante e o autocarro se precipita por uma ravina, morrendo dezenas de passageiros, podemos dizer que não houve acção humana, nesse acontecimento, como sustentam Leonor e Ribeiro? É óbvio que houve. O motorista foi o agente dessa tragédia. Se não se tratasse de uma acção humana, os juízes não poderiam julgar o motorista. Restringir a acção humana aos actos que brotam de uma deliberação racional (livre-arbítrio) é considerar que o homem não pertence à animalidade - e isto está em paralelo com a estúpida noção de libertismo segundo a qual o homem decidiria como um anjo no céu, sem sofrer pressão alguma das suas células, do nível de açúcar no sangue, da pressão exterior económica, política, etc, da sociedade. Com que legitimidade vêm Leonor e Ribeiro impor, taxonomicamente, que uma explosão de fúria e violência de um homem num bar, após ser empurrado, não é uma acção humana só porque não foi deliberada, pensada, sujeita a livre-arbítrio?
CONDICIONANTES BIOLÓGICAS É CLARAMENTE DISTINTO DE CONDICIONANTES FÍSICAS?
E prossegue a ficha 2 do livro de exercícios de André Leonor e Filipe Ribeiro:
«1.3 Analise as afirmações que se seguem sobre as condicionantes da acção humana. Selecione, em seguida a opção correcta:
A) As condicionantes biológicas estão associadas aos limites físicos de cada indivíduo, enquanto as psicológicas se referem a traços de personalidade.
B) As condicionantes físicas estão associadas aos limites físicos de cada indivíduo, enquanto as psicológicas se referem a traços de personalidade.
C) As condicionantes biológicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, enquanto as psicológicas se referem às limitações do organismo humano.
D) As condicionantes físicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, enquanto as psicológicas se referem às limitações do organismo humano.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, página 17)
Resposta dos autores: A única resposta certa é a "B".
Crítica minha: Esta questão exprime uma grande miopia de raciocínio. É um exemplo de como não se devem fazer perguntas de escolha múltipla de respostas que quase nada diferem ou nada diferem entre si. Todas as respostas estão certas. A resposta "A" está certa: as condicionantes biológicas de um indivíduo - por exemplo, a capacidade respiratória reduzida de uma pessoa operada a um pulmão - ligam-se aos seus limites físicos -no exemplo: a pessoa dispor apenas de um pulmão, tendo-lhe sido amputado o outro. A resposta "B" também está certa: o físico identifica-se com o biológico, basicamente.
A resposta "C" também está certa, por muita surpresa que isso cause: é óbvio que as condicionantes biológicas estão associadas aos limites característicos da espécie humana, - a espécie humana não tem guelras , por isso cada homem não pode ter vida subaquática permanente - e, adoptando o ponto de vista behaviorista, que nega a subsistência de uma psique congénita em cada pessoa, é verdade que as condicionantes psicológicas se referem às limitações do organismo humano - por exemplo: a tristeza, a depressão estão ligadas, ao menos nos idosos, à falta de vitamina "D".
A resposta "D" está igualmente certa, pois é praticamente igual à "C".
O FAZER NÃO IMPLICA OBJECTIVOS DEFINIDOS E CONSCIENTES?
E eis outra deformada questão da ficha 2, Grupo 2, do manual que estamos a analisar:
«1.4 Analise as afirmações que se seguem acerca da distinção entre agir e fazer. Selecione, em seguida, a opção correcta.
A) O agir tem em vista um objectivo enquanto o fazer é voluntário.
B) O agir não implica qualquer decisão, enquanto o fazer implica uma decisão consciente.
C) O fazer é exclusivo dos animais e o agir é exclusivo do ser humano.
D) O agir é voluntário, ao passo que o fazer não implica objectivos definidos e conscientes.»
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 17).
Resposta dos autores: A única resposta correcta é a "D".
Crítica minha: Seria preciso definir cientificamente o que é fazer e o que é agir. É o fazer uma modalidade (espécie) do agir (género)? É o agir uma modalidade do fazer? São dois géneros mutuamente independentes?. Não há unanimidade sobre isto. Logo é arbitrário construir e avaliar perguntas com esta terminologia. A maioria dos autores de manuais dá como exemplos do "agir" actos como conversar (mas conversar não é fazer diálogo?), filosofar, viajar, escrever (mas escrever não é fazer um texto?), dizer mal de alguém ou reconciliar-se com alguém e como exemplos do "fazer" actos como lavrar os campos, colher frutos das árvores, fabricar objectos com maquinaria, guiar automóvel, digerir comida (fazer a digestão), excretar resíduos, etc. O fazer teria um sentido mais prático, mais imerso no mundo material, do que o agir. Assim se diz: «Tenho de fazer dinheiro, a trabalhar» e não se diz : «Tenho de agir dinheiro, a trabalhar».
Quando André Leonor e Filipe Ribeiro apontam como resposta certa «O agir é voluntário, ao passo que o fazer não implica objectivos definidos e conscientes.» equivocam-se. Então, um carpinteiro que faz ou fabrica mesas não tem o objectivo definido de materializar o modelo que tinha em mente e de o vender por um preço compensador? É óbvio que tem. A resposta "D" está (parcialmente) errónea.
Nenhuma das quatro respostas se pode considerar correcta sem se definir à partida, com clareza, agir e fazer.Para Lao Tsé, o filósofo chinês do taoísmo, agir e fazer é a mesma coisa, por isso usou o termo não-agir.
O INTERCULTURALISMO IMPEDE O TOTAL DIÁLOGO COM VALORES INTOLERÁVEIS?
Na ficha 3, figura a seguinte questão:
1-4 Segundo o interculturalismo:
(A) É possível universalizarem-se todos os valores.
(B) Há lugar à constituição de valores transculturais.
(C) Os valores universalizáveis devem depender da cultura mais forte.
(D) Devemos ter uma atitude de total diálogo com valores que nos são alheios, mesmo que não sejam toleráveis. »
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 22).
Resposta dos autores: a única resposta certa é a "B".
Crítica minha: Se por interculturalismo entendermos a troca de ideias e informações entre diversas culturas e ideologias e a exposição dos valores de todas elas, isso implica um total diálogo com os valores alheios aos nossos. Se sou interculturalista, que me impede de dialogar com um nazi, com um estalinista, com um fundamentalista islâmico ou com um fundamentalista judeu? Há, portanto, duas respostas certas: a "B" e a "D" .
O JUÍZO ESTÉTICO NÃO É UM JUÍZO DE CONHECIMENTO?
Na ficha 6 do manual, está a seguinte questão do grupo II:
1.2 Analise as afirmações que se seguem sobre o juízo estético. Seleccione em seguida a opção correcta.
(A) O juízo estético resulta da avaliação dos críticos de arte.
(B) O juízo estético não é um juízo de conhecimento nem obedece a normas morais.
(C) O juízo estético é um juízo de valor que obecece a normas éticas.
(D) O juízo estético é um juízo de conhecimento. »
(André Leonor, Filipe Ribeiro, O essencial em actividades, Filosofia 10º ano, Ser no Mundo, Areal Editores, página 44).
Resposta dos autores: a correcta é a afirmação "B".
Crítica minha: A resposta correcta é a "D". A resposta "B" está errada. Então o juízo estético não é de conhecimento? Se assim fosse, não seria possível um júri de cinema dizer, com um mínimo de fundamento, que «12 anos escravo» ou «Gravidade» foram os melhores filmes do ano, nem se poderia dizer que o poeta A é superior, a versejar, ao poeta B. O que é o conhecimento? É a apreensão, sensorial-intuitiva ou intelectual-racional, de uma realidade material, ideal ou outra por uma mente. O juízo estético exprime o conhecimento da arte e da natureza física na sua vertente artística. É um juízo essencialmente sensorial mas constitui conhecimento.
Este tipo de perguntas, mal concebidas, fruto de mentes analíticas que vêem a árvore isolada mas não a floresta (hiper-análise), conduzem a respostas ambíguas ou erróneas e só contribuem para confundir alunos e professores. É isto o teor do "ensino da filosofia" dominante hoje em Portugal no ensino secundário e no sector universitário da filosofia analítica: definições unilaterais impostas ditatorialmente aos alunos (por que razão os alunos têm de distinguir actos humanos de actos do homem, uma vez que essa é versão particular de São Tomás de Aquino, se acto humano é, semanticamente, o mesmo que acto do homem?), incapacidade de pensar dialecticamente, erros notórios de lógica informal.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O manual «Ser no mundo, Filosofia 10º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, com revisão científica de Viriato Soromenho Marques, da Areal Editores, lavra em algumas confusões teóricas. Uma delas é a oposição rígida entre etnocentrismo e relativismo cultural.
ETNOCENTRISMO É CONTRÁRIO DE RELATIVISMO CULTURAL?
Escrevem André Leonor e Filipe Ribeiro :
«Segundo o relativismo cultural, as culturas não são comparáveis quanto à correcção valorativa, não sendo, por isso, possível hierarquizá-las. Não existem culturas melhores nem piores, apenas culturas diferentes. Com base nesta ideia, os defensores do relativismo afirmam que esta atitude fomenta uma atitude de tolerância cultural, pois se todos partilharem deste princípio é possível uma convivência saudável e pacífica entre culturas («Ser no mundo, Filosofia 10º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, pag. 105, Areal Editores).
Etnocentrismo não se opõe, como contrário, a relativismo. Podemos dizer que a sucessão histórica de diversos etnocentrismos é relativismo, ou seja, é variação e variedade. Exemplo, a história da Palestina: dominada pelo etnocentismo do império egípcio no século XV antes de Cristo, depois pelos etnocentismos hebraico (século X antes de Cristo), assírio ( século VIII, AC), romano e bizantino (de 66 DC a 614 DC), otomano de 1517 a 1917, britânico de 1917 a 1947...
O etnocentrismo opõe-se, como contrário, ao etnoperiferismo, a doutrina que afirma que nenhuma cultura é central, superior às outras, são todas periféricas. Há um etnocentrismo relativista, como o etnocentrismo norte-americano e o da União Europeia que se resume assim: «Aceitamos as diferentes culturas de todos os povos do mundo, mas consideramo-nos superiores nos nossos valores democráticos de matriz cristã, universalistas, por isso intervimos militarmente na antiga Jugoslávia, no Iraque ou no Afeganistão em defesa dos nossos valores». E há um etnocentrismo fascista ou absolutista como o da Espanha do general Franco, de 1939 a 1975, que poderia enunciar-se assim: «Espanha, grande, una e livre, sob o império da Falange Espanhola e do caudilho Franco, é o único país do mundo livre da influência judaico-maçónica e comunista, somos superiores».
O relativismo não implica o nivelamento por igual de todas as culturas, do mesmo modo que o relativismo epistémico de Karl Popper não implica dizer que as teorias das ciências empíricas, sendo todas conjuntos de conjecturas, valem todas o mesmo. Popper escolhia as mais consistentes. A história da ciência manifesta o relativismo, isto é, a mudança do paradigma dominante na sequência temporal: hoje a teoria do Big Bang e do universo inflacionário é aceite pela maioria da comunidade científica, mas nos anos 50 predominava a teoria do universo estacionário. Isto é relativismo mas não iguala as duas perspectivas, em termos sociológicos: os defensores do Big Bang julgam ter razão e superiorizam-se no seu discurso.
A posição de Hegel sobre as religiões é um exemplo do etnocentrismo relativista: a religião mais perfeita é o protestantismo, porque abolindo o clero estabelece a ponte directa entre o crente e Deus uno e trino, cujo filho, Jesus, se ofereceu como sacrifício em prol da humanidade; depois vem o catolicismo, com o inconveniente do clero mediador e das estátuas, seguem-se outras religiões e, por último, a religião do homem que diviniza o crocodilo, religião que ainda possui um mínimo de verdade porque visa o Absoluto, o Outro. Assim, a verdade está distribuída em diferentes graus por todas as religiões mas o protestantismo luterano é a religião central.
Deixemos, pois, de falar na contrariedade etnocentrismo/ relativismo e ponhamos a questão de outra maneira.
O COMPATIBILISMO NÃO É DETERMINISMO MAIS ALGO?
A separação artificial entre os conceitos de compatibilismo e determinismo é outro equívoco deste manual. Lê-se nele:
«Para os deterministas, o indivíduo só seria livre se pudesse escapar à cadeia causal de acontecimentos que o determinam a agir.
Logo, o ser humano não é livre.»
«Para os compatibilistas o facto de o indivíduo poder dispor das condicionantes de acordo com a sua vontade significa que o ser humano faz uso da sua liberdade.
«Logo o ser humano é livre, apesar de não poder libertar-se das condicionantes da acção».
(«Ser no mundo, Filosofia 10º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, pag. 84, Areal Editores).
No entanto, na página 76 do manual os compatibilistas são designados como deterministas moderados.. que afirmam a existência do livre-arbítrio...Afinal, em que ficamos? Os deterministas negam ou não o livre-arbítrio? Há aqui a névoa da imprecisão porque não se definem as regiões ontológicas onde vigora o determinismo: na natureza biofísica, no espírito humano...
O compatibilismo, designado determinismo moderado (determinismo associado a livre-arbítrio, prefiro chamá-lo assim) é uma espécie dentro do género determinismo. Não pode pois dizer-se que os deterministas negam a liberdade do ser humano mas sim que apenas uma parte dos deterministas a negam.
ALGUMA NEBULOSIDADE SOBRE O QUE É VALOR
Este manual não define, teoricamente, o que é valor. Nas páginas 92 e 93, define juízo de facto e juízo de valor mas não define valor. Na página 93, sem se definir o que é valor, são dados exemplos de valores (belo, feio, bom, mau, justo, injusto, tolerante, intolerante, leal, desleal, pacífico, belicoso, desonesto) e são apontadas características dos valores como polaridade, hierarquia e historicidade e perenidade. Mas definir valor não acontece: não se distingue, com nitidez, que os valores são essências arquetípicas (platonismo), qualidades de substâncias (aristotelismo), essências fenomenológicas objectivas (Scheler), etc.
Diz ainda o manual que:
«O juízo de valor distingue-se do juízo de facto porque é:
> subjectivo, pois depende da opinião ou avaliação do sujeito que o enuncia
> não tem valor de verdade, pois os gostos e as preferências não podem ser classificados como verdadeiros ou falsos;» («Ser no mundo, Filosofia 10º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, pag. 93, Areal Editores).
O juízo de valor não tem valor de verdade? Claro que tem, ao menos em muitos casos. O juízo «As democracias são mais tolerantes com as vontades e protagonismos individuais dos cidadãos do que as ditaduras» é simultaneamente juízo de facto e juízo de valor. O que é a verdade? Exclui a tonalidade valor? Se o juíz ao condenar profere o juízo «O arguido foi desonesto porque desviou um milhão de euros da empresa em proveito próprio» podemos separar o juízo de valor (é desonesto) do juízo de facto (desviou um milhão de euros)? Não podemos.
UMA EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DE OBJECTIVISMO ESTÉTICO
Lê-se no manual:
«Objectivismo estético
Posição que defende que a classificação e construção de juízos estéticos depende dos atributos objectivos do objecto estético.»(«Ser no mundo, Filosofia 10º ano» de André Leonor e Filipe Ribeiro, pag. 196, Areal Editores).
Depende em que medida? Depende... eis uma forma verbal ambígua. Também o subjectivismo estético faz depender, em alguma medida, o juízo estético da objectividade do corpo físico exterior, como neste exemplo: «Acho bela a casca daquele sobreiro ainda que vocês não achem o mesmo.» E é tautológica: depende dos atributos objectivos. E o que são estes? "Objectivismo" depende de "objectivos", círculo vicioso, tautologia.
A minha definição é outra: objectivismo estético é a teoria que sustenta que os valores de belo e de feio são os mesmos para a esmagadora maioria das pessoas ou mesmo para todas. Exemplos: «o pôr do sol sobre o mar é um espectáculo belo, a visão de um cadáver em decomposição é um espectáculo feio.»
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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