Ayer era, como Stuart Mill, um adepto do fenomenismo. E este, bebido em David Hume, não é senão idealismo ( os objectos físicos são ideias, criações mentais nossas que não passam disso mesmo) tal como em Kant que copiou Hume em alguns aspectos essenciais.
«No sentido em que é compatível com o realismo ingénuo a teoria causal é compatível também com o fenomenismo, isto é, com a tese de que os objectos físicos são construções lógicas de dados sensoriais...»
(A.J. Ayer, O Problema do Conhecimento, Editora Ulisseia, pág. 98; o destaque a negrito é posto por mim).
Quanto à impropriamente designada teoria causal esta é um realismo crítico (os objectos físicos estão fora de nós mas não têm algumas ou todas as cores, não produzem sons, não são quentes nem frios, etc, isto é, as suas aparência enganam).
Alfred Julius Ayer, um dos grandes filósofos analíticos do século XX, escreveu:
«Mas seja qual for a posição de Berkeley o fenomenista não nega que há objectos físicos. O que afirma é que se os há são constituídos por dados sensoriais. Se há alguns é uma questão de facto empírico, para ele indiferente. Basta-lhe que possa haver objectos físicos; o seu problema é então analisar as proposições que se lhes referem.» ( A. J. Ayer, O problema do conhecimento, Editora Ulisseia, Lisboa- Rio de Janeiro, pag 99; o destaque a negrito é por mim colocado.)
Há aqui uma contradição nos termos: segundo Ayer para o fenomenista há objectos físicos, ou seja extrasensoriais, porque a matéria é, em si mesma, extrasensorial, real, mas «são constituídos por dados semsoriais». Assim os objectos físicos existiram só sensorialmente, isto é, não existiriam em si mesmos ... Isto é uma incoerência. O raciocínio de Ayer assume a seguinte forma, violando o princípio da não contradição porque o mesmo objecto não pode ser em simultâneo e no mesmo aspecto físico e não físico:
«Segundo o fenomenista, há objectos físicos, isto é objectos materiais além dos sentidos.
Mas o objecto físico é apenas um conjunto de dados sensoriais.
Logo, o mundo físico da matéria é meramente sensorial, interior ao campo dos sentidos.»
David Hume, fenomenista, disse que apenas podemos chegar à certeza última que é o movimento dos corpos-ideias mas não podemos ter a certeza de que há objectos físicos além da percepção e do pensamento (cepticismo):
«Podemos pois concluir que o movimento pode ser, e de facto é, a causa do pensamento e da percepção...» Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 296)
«A ideia de movimento supõe necessariamente a de corpo movente. Ora qual é a nossa ideia de corpo movente, sem a qual o movimento é incompreensível? Deve reduzir-se à ideia de extensão ou de solidez, e por conseguinte a realidade do movimento depende da realidade destas outras qualidades. » (Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 274).
«A razão não nos dá e é impossível que alguma vez nos dê, em qualquer hipótese, qualquer convicção da existência contínua e distinta dos corpos. Esta opinião tem de se atribuir inteiramente à imaginação, que passa a ser o objecto da nossa investigação ».(Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 238; o destaque a negrito é posto por mim).
Hume admite a realidade do movimento e das ideias de solidez e extensão. Mas não afirma a existência da solidez e da extensão, isto é, da matéria em si mesma. Logo, Hume nega que haja objecto físicos.
«Todas as percepções do espírito são de duas espécies, a saber, impressões e ideias, as quais diferem entre si apenas nos diferentes graus de força e vivacidade. As ideias são copiadas das impressões e representam-nas em todas as suas partes. Quando queremos fazer variar de qualquer modo a ideia de um objecto particular podemos apenas aumentar-lhe ou diminuir-lhe a força e a vivacidade. Se operarmos nela qualquer outra mudança, representa um objecto ou impressão diferente.» Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag.132).
Hume distingue entre objecto e percepção, sempre indissociáveis: o objecto é sempre uma crença, uma espécie de númeno (coisa incognoscível, ontologicamente duvidosa) ou uma ideia complexa ou simples, resultante da associação, mistura ou reestruturação de percepções operada pela imaginação. Portanto o fenomenista Hume nega a existência de objectos físicos, ao contrário do que sustenta Ayer. Hume é um idealista ou oscila entre o cepticismo e o idealismo, a cada passo é um ou outro.
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Em «Introdução à Teoria do Conhecimento» o filósofo analítico Dan O´Brien, da Oxford Brookes University, explana uma visão algo equívoca sobre a teoria do conhecimento, que divide em cinco correntes essenciais: realismo directo, realismo indirecto, idealismo, fenomenismo, intencionalismo.
O REALISMO CRÍTICO (QUALIDADES PRIMÁRIAS E SECUNDÁRIAS) É REALISMO DIRECTO?
O´Brien considera o realismo directo divisível em realismo natural e realismo crítico.
«1. Realismo directo.
«O realismo perceptual é a visão do senso comum de que mesas, molas para papel existem independentemente dos sujeitos que as percepcionam. Os realistas directos também afirmam que são esses objectos que percepcionamos directamente, podemos ver, cheirar, tocar, provar e ouvir estas coisas que nos são familiares. Há, no entanto, duas versões do realismo directo: o realismo directo ingénuo e o realismo directo científico. Estas concepções diferem quanto às propriedades que se admite que os objectos da percepção possuem quando não estão a ser percepcionados. Os realistas ingénuos afirmam que esses objectos podem continuar a ter todas as propriedades que normalmente percepcionamos, tais como a vermelhidão, a macieza e a tepidez. Os realistas científicos defendem que algumas das propriedades que um objecto possui quando percepcionado dependem do sujeito perceptual, e que os objectos não percepcionados não devem ser concebidos como se conservassem essas propriedades (...) O realismo científico é muitas vezes considerado nos termos da distinção lockeana entre qualidades secundárias e primárias (...) A chávena em si mesma não é vermelha mas a concepção física da sua superfície e a forma particular como esta superfície reflecte os raios de luz nos nossos olhos provoca em nós a experiência de ver vermelho (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 80-81; o destaque a negrito é colocado por mim).
E sobre o realismo indirecto escreve:
«Os realistas indirectos aceitam que a minha chávena de café existe independentemente de mim. Consideram, no entanto, que eu não tenho uma percepção directa desta chávena. O realismo indirecto afirma que a percepção envolve imagens mediadoras. Quando olhamos para um objecto não é esse objecto que vemos directamente mas um intermediário perceptual. Estes intermediários têm recebido várias designações: "dados dos sentidos", "sensa", "ideia", "sensibilia", "perceptos", "aparências" (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 82).
É evidente que há uma duplicação falaciosa nestas definições: como se pode chamar "realismo directo" à teoria das qualidades primárias e secundárias de Descartes e Locke se, em parte, não vemos directamente os objectos como são e lhes atribuímos cores, sons, cheiros, graus de dureza que não possuem mas que apenas são modos subjectivos de os percepcionarmos? Neste caso a cor vermelha que atribuo à chávena não existe nesta mas apenas nos meus olhos, na minha imaginação, e constitui um «sensa», «sensibilia», um «percepto» - e estamos dentro da definição de realismo indirecto, facto de que O´Brien não se dá conta.
O erro de Dan O´Brien consiste em classificar o realismo científico ou crítico como um realismo directo quando se trata, sobretudo, ou na totalidade de um realismo indirecto que salienta nitidamente a ruptura, a não correspondência exacta entre o objecto material exterior e a representação (percepção, ideia) que dele fazemos. Assim o conceito de realismo directo deveria limitar-se ao realismo natural ou ingénuo que afirma que o céu é azul, a erva é verde, o mármore é frio, a lã em quente, isto é, à corrente que, de um modo geral, não duvida da veracidade das percepções empíricas. Se há um realismo que declara que o mármore não é frio e a lã não é quente e que o quente e o frio não existem fora de nós mas são apenas sensações subjectivas, "sensibilia" então isso é realismo indirecto.
O INTENCIONALISMO É AUTÓNOMO FACE AO REALISMO E AO IDEALISMO?OU É UMA CARACTERÍSTICA GERAL DESTES?
Dan O´Brien escreve ainda sobre o intencionalismo, uma posição que, confusamente, situa no mesmo plano que o idealismo, o realismo e o fenomenismo:
«4. A teoria intencionalista da percepção.
«A última posição que iremos examinar nega que os dados dos sentidos estejam envolvidos na percepção e afirma, ao invés, que estamos em contacto perceptual directo com o mundo. Voltamos assim ao realismo directo com que este capítulo começou.» (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92).
«Os intencionalistas acentuam certos paralelos entre a experiência perceptual e as crenças. As crenças são representações do mundo. A intencionalidade é uma característica essencial da mente e descreve a propriedade que têm certos estados mentais de representarem - ou de serem acerca de - certos aspectos do mundo(...) O intencionalista defende que a percepção também envolve estados representacionais (o intencionalismo é por vezes designado "representacionismo"). (Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 93-94; o destaque a negrito é colocado por mim).
Mais uma vez a nuvem da confusão intelectual impede O´Brien de situar correctamente, espacio-mentalmente, os conceitos. O´Brien separa o intencionalismo. como se fosse autónomo, do realismo, do fenomenismo e do realismo, pondo todos ao mesmo nível, ignorando que todo o realismo é um intencionalismo ou representacionismo: a intentio ou representação, imagem ou conceito, espelha, de certo modo, um mundo de objectos exteriores. O´Brien confunde género e espécies distintos: intencionalismo é género que engloba os realismos, o idealismo e o fenomenismo. Em todas estas correntes se postula haver imagens ou ideias que representam algo. Intencionalismo pertence ao género gnosiológico (modo de conhecer) mas realismo, idealismo e fenomenismo pertencem ao género ontológico ou ontognosiológico (modos de ser).
UMA CONFUSÃO INTITULADA ADVERBIALISMO
Escreve O´Brien, introduzindo o conceito de adverbialismo:
«4.1 Adverbialismo
«Uma maneira de rejeitar o pressuposto de que temos de estar cientes de algum objecto é fazer a chamada "manobra adverbial". Esta estratégia pode ser ilustrada virando-nos para outros exemplos onde não se apliquem tais pressupostos ontológicos. "David Beckham tem um magnífico pontapé de livre" não implica que ele possua um certo tipo de objecto - um pontapé - como coisa que ele pudesse dar ou vender como o seu magnífico carro. Em vez disso, compreendemos que esta frase significa que ele executa os pontapés magnificamente. "Magnífico" não deve ser tomado como um adjectivo que descreve a propriedade de um objecto; deve ser visto como um adjectivo que desempenha a função de um advérbio, descrevendo como uma dada acção é executada (...) O argumento dos adverbialistas no que concerne à percepção é que quando percepcionamos o vermelho estamos a percepcionar de modo vermelho ou vermelhamente (...) Ao levar a chávena de café à boca, vejo de modo castanho (castanhamente); não tenho a percepção dos dados dos sentidos castanhos e amargos, que são os análogos internos das propriedades do café debaixo do meu nariz.»
(Dan O´Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, pág. 92-93; o destaque a negrito é colocado por mim).
Adverbialismo (ponto 4.1) misturado com intencionalismo (ponto 4)? Como se relacionam? O´Brien é confuso, não hierarquiza estas noções entre si de maneira clara. Não está o adverbialismo - subjectivismo ou intersubjectivismo, assim o deveria caracterizar O´Brien - contido no realismo crítico ou científico das qualidades secundárias e primárias (exemplo: o perfume não existe fora do nosso nariz e da nossa mente, perfumadamente é um modo adverbial de captação subjectiva da realidade exterior que nos dá a ilusão do perfume da rosa ou do odor do café)? É óbvio que está mas Dan O´Brien não percebe essa inclusão e considera «adverbialismo» um modo de percepção aparte do realismo...
Como é típico dos medíocres filósofos analíticos eruditos (Nigel Warburton, John Searle, Simon Blackburn, etc.) O´Brien multiplica os «ismos» (adverbialismo, intencionalismo, realismo, etc) sem distinguir o que é ontológico do que é meramente gnoseológico e sociológico. Estas definições são grosseiramente justapostas - lembremos o quadrado em que, no seu livro "A Guide for the Perplexed", Penguin Books, página 113, Simon Blackburn mistura, nivelando-as, quatro teorias de géneros diferentes: realismo, eliminativismo, construtivismo, quietismo) e assim se ergue um desconexo edifício de definições filosóficas que mantém numa relativa escuridão os estudantes e os amantes da filosofia.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
É o fenomenismo uma teoria ontológica ou meramente gnosiológica?
Nigel Warburton distingue o fenomenismo do idealismo de forma errónea: não se apercebe que fenomenismo é uma concepção anti-metafísica, gnosiológica, ao passo que idealismo e realismo ontológicos são concepções metafísicas, ontológicas.
«Tal como o idealismo, o fenomenismo é uma teoria da percepção baseada na ideia de que só temos acesso à experiência sensorial e não ao mundo exterior. Mas difere do idealismo na sua explicação dos objectos físicos. Ao passo que os idealistas defendem que a nossa noção de objecto físico é uma abreviatura de um grupo de experiências sensoriais, fenomenistas como John Stuart Mill pensam que os objectos físicos podem ser completamente descritos em termos de padrões de experiências sensoriais efectivas ou possíveis.» (...)
«Um fenomenista é como alguém encurralado no seu próprio cinema privado, a ver filmes. Mas, ao contrário do idealista, que acredita que as coisas representadas no ecrã deixam de existir quando não estão a ser projectadas, o fenomenista acredita que estes objectos continuam a existir enquanto experiências possíveis, mesmo que não estejam a ser projectados no ecrã nesse momento.» (Nigel Warburton, Elementos básicos de Filosofia, Gradiva, Lisboa, 2007, pags 171-172; o negrito é nosso).
É falso que os idealistas em geral reduzam a existência dos objectos ao tempo em que os percepcionamos. Kant era idealista e não escreveu, em parte alguma, que o rio Danúbio deixava de existir quando não estivéssemos a contemplá-lo. O que Warburton designa por fenomenismo é o realismo fenomenista, a forma extrema do realismo crítico: há um mundo material transcendente a nós, incognoscível, porque as formas, cores, cheiros, sons, movimentos que captamos não reproduzem o mundo material como ele é, distorcem-no.
Para contrariar a confusão gerada por Nigel Warburton, na qual naufraga uma grande parte dos professores de filosofia, diremos o seguinte, em abono da verdade: Kant era idealista e fenomenista, em simultâneo. Alguém nos consegue explicar como é possível? Warburton, seguramente, não é ou não foi capaz de o fazer...
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