Terça-feira, 29 de Outubro de 2019
Divergências de Schopenhauer com Kant

 

Artur Schopenhauer( Danzig, 22 de Fevereiro de 1788 — Frankfurt, 21 de Setembro de 1860) que se considerava um discípulo de Kant, admitiu, tal como este, que o espaço e o tempo são formas a priori da consciência humana. Mas extrinsecou espaço e tempo e matéria, do sujeito, para Schopenhauer incognoscível, ao passo que Kant manteve o espaço, o tempo e a essência dos fenómenos dentro  do espírito do sujeito, como partes sensíveis deste. Schopenhauer escreveu:

 

«Aquele que conhece tudo e não é conhecido por ninguém é o sujeito. Ele é o sustentáculo do mundo, a condição sempreeternamente pressuposta de tudo quanto se manifesta, de todo o objecto. Pois tudo quanto existe está aí só para o sujeito.» (...)

 

«Assim pois o mundo como representação, único aspecto que consideramos aqui, tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. Uma é o objecto, cuja forma é o espaço e o tempo, e através da dita forma a pluraridade. Mas a outra metade, o sujeito, não se acha no espaço e no tempo, pois essa metade está inteira e indivisível em cada ser que tem representações; daí que um só de tais sujeitos complete com o objecto o mundo enquanto representação tão cabalmente como qualquer outro dos milhões de sujeitos existentes e, ao desaparecer cada um de tais sujeitos, desaparece também então o mundo enquanto representação. Estas metades são inseparáveis inclusive para o pensamento, pois cada uma delas só tem significado e existência por e para a outra, coexistindo e desaparecendo com ela. Delimitam-se imediatamente e ali onde começa o objecto cessa o sujeito . A comunhão de tais limites mostra-se em que as formas essenciais e e por isso gerais de todo o objecto, que são  espaço, tempo e causalidade, também podem ser encontradas e cabalmente reconhecidas a partir do sujeito, sem conhecimento do próprio objecto, quer dizer, que com a linguagem de Kant as ditas formas se acham a priori na nossa consciência. Ter descoberto isso é um mérito capital  e enorme de Kant.»

 

(Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, Alianza Editorial, pag 116-117 ; o destaque a negrito é posto por nós).

 

Schopenhauer afasta-se de Kant ao considerar que sujeito e objecto são duas metades iguais, correlatas, que se fundem na representação (imagem, ideia, juízo, raciocínio). Mas Kant, que dava dois sentidos diferentes à palavra objecto - o objecto metafísico, real, ou númeno, como Deus, liberdade; o objecto físico, irreal, ou fenómeno como montanha, rio - não pensava que objecto físico (casa, cão, nuvem, corpo humano, etc.) e sujeito estivessem num plano de igualdade e de geração mútua como Schopenhauer fenomenólogo. Kant achava que o objecto fenómeno estava dentro da sensibilidade do sujeito era uma criação desta com as ferramentas do espaço (extensão, formas geométricas) e do tempo (duração, simultaneidade, sucessão).

 

Kant escreveu:

«Assim quando separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensação como seja impenetrabilidade, dureza, cor, etc, algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um objecto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade». 

(Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 62)

 

Este trecho revela o construtivismo idealista de Kant: o objecto, como por exemplo uma pedra, só possui a forma a priori, uma forma fantasmagórica de linhas,  e a dureza, impenetrabilidade, a cor são invenções da nossa subjectividade e está dentro do espaço que é a parte externa da sensibilidade do sujeito (se este morrer o cosmos inteiro que é a sua mente com as galáxias e o sistema solar desaparece). 

 

Ao postular no texto acima que «Mas a outra metade, o sujeito, não se acha no espaço e no tempo, pois essa metade está inteira e indivisível em cada ser que tem representações», Schopenhauer afasta-se do idealismo de Kant, pois este apresenta o espaço e o tempo como componentes essenciais do sujeito, como as formas a priori da sensibilidade dentro das quais se gera o universo inteiro visível e palpável.

 

KANT E FICHTE POSTULAVAM O SUJEITO COMO CRIADOR, CAUSA, DO OBJECTO FÍSICO, SCHOPENHAUER NÃO

 

Schopenhauer esforçou-se por isolar a teoria de Fichte, neo kantiano que apenas divergia de Kant por suprimir o númeno ou objecto metafísico incognoscível, da teoria de Kant. Mas Fichte é mais fiel a Kant do que Schopenhauer. Este, que pretende ter sido o primeiro a colocar como base da filosofia a representação, em vez do dualismo sujeito-objecto, escreveu: 

 

«Costuma cometer-se um grande erro ao acreditar que, como a intuição está mediada pela conhecimento da causalidade, a relação entre sujeito e objecto consiste na de causa e efeito, quando mais precisamente essa relação só tem lugar entre o objecto mediato e o mediatizado, portanto sempre entre dois objectos. Neste falso pressuposto se baseia precisamente a néscia polémica sobre a realidade do mundo exterior, na qual se enfrentam o dogmatismo e o cepticismo, apresentando-se o primeiro umas vezes como idealismo e outras como realismo. O realismo coloca o objecto como causa e o seu efeito no sujeito. O idealismo fichteano converte o  objecto em efeito do  sujeito».

 

(Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, Alianza Editorial, pag 128 ; o destaque a negrito é posto por nós).

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 15:48
link do post | comentar | favorito

Quarta-feira, 8 de Fevereiro de 2017
Teste de filosofia do 11º ano (1 de Fevereiro de 2017)

 

 Eis um teste de filosofia para o 11º ano do ensino secundário em Portugal.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja

Escola Secundária Diogo de Gouveia , Beja

TESTE DE FILOSOFIA, 11º ANO TURMA B

1 de Fevereiro de 2016. Professor: Francisco Queiroz

I

“.O espaço não é um conceito empírico extraído de experiências externas…O entendimento faz a síntese do diverso da intuição empírica e é condicionado, ao passo que a razão é incondicionada e produz antinomias» (Kant, Crítica da Razão Pura)

 

1) Explique estes pensamentos de Kant.

 

 2) Explique, como, segundo a gnosiologia de Kant, se formam o fenómeno ESCOLA, o conceito empírico de ESCOLA e o juízo a priori «Cinco mais seis é igual a onze».

      

3) Relacione, justificando:

A) As sete relações filosóficas em David Hume e as formas a priori da sensibilidade e do entendimento na teoria de Kant

B) As três res e três tipos de ideias em Descartes

C) Holismo e astúcia da razão em Hegel.

D) Idealismo, empirismo, teoria da tábua rasa e ideias de «eu», «alma» e «substância» em David Hume.

 

1) O espaço não é um conceito empírico extraído de experiências exteriores porque para o idealista Kant o espaço é a priori, existe antes de qualquer objecto físico, como sendo o lado externo, exterior ao nosso corpo, da sensibilidade. (VALE DOIS VALORES).O entendimento, faculdade que pensa os fenómenos mas não os sente, faz a síntese do diverso das intuições porque recebe milhares de intuições sensoriais de fenómenos (exemplo: muitas imagens de rosas brancas, vermelhas, etc) que sobem ao entendimento e este com as categorias de pluralidade, unidade, realidade, etc, reduzem-nas a um conceito único de rosa. É condicionado porque a sua atenção está centrada no mundo visível dos fenómenos (comboios a circular, salários dos trabalhadores, etc). A razão, faculdade que pensa os númenos ou objectos incognoscíveis (Deus, imortalidade da alma, a totalidade do mundo, não os objectos físicos) é livre, incondicionada porque vai além da experiência e entra na metafísica, pode «inverter» a ordem da natureza e imaginar que o filho nasça antes da mãe, etc. Balança ao gerar as antinomias, leis ou teses opostas, como por exemplo «Deus existe, Deus não existe, a liberdade existe, a liberdade não existe» (VALE TRÊS VALORES).

 

 

2) O númeno ou objecto metafísico afecta de alguma maneira a sensibilidade fazendo nascer nesta um caos empírico de matéria indeterminada e as formas a priori de espaço (figuras, extensão) e tempo (duração, simultaneidade, sucessão) moldam essa matéria transformando-a no fenómeno escola, que é o objecto visível ou coisa para nós. As imagens do fenómeno são levadas pela imaginação às categorias de unidade, pluralidade, realidade e outras do entendimento ou intelecto ligado ao mundo empírico e aí são reduzidas à unidade, a um conceito único de escola. Na forma a priori do tempo, na sensibilidade existem os números cinco, seis, onze e outros, estas intuições são elevadas ao entendimento, às categorias de unidade, pluralidade, totalidade, necessidade e estas categorias com a ajuda da tábua de juízos puros, em particular do juízo apodíctico, produzem o juízo a priori «Cinco mais seis é igual a onze» (VALE TRÊS VALORES).

 

3) A) As sete relações filosóficas são, segundo David Hume: identidade, semelhança, relações de tempo e de lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. É discutível saber se são noções a posteriori, ou seja, que surgem na experiência sensorial e não antes desta, ou se são formas a priori, isto é, estruturas vazias que estão antes da primeira experiência. As formas a priori da sensibilidade, em Kant, são: o espaço, cujo conteúdo é extensão e figuras geométricas, e o tempo, cujas determinações são duração, sucessão, simultaneidade e números.

É fácil detectar correspondências entre Hume e Kant: as relações de tempo e de lugar, em Hume, correspondem ao espaço e tempo à priori em Kant; a proporção de quantidade ou número, em Hume, equivale aos números contidos no tempo, em Kant.

 

As categorias, em Kant,  são formas a priori do entendinento, isto é, mecanismos inatos do pensamento, anteriores a toda a experiência sensorial, como por exemplo, unidade, pluralidade e totalidade (categorias da quantidade). São 12 e constituem a seguinte tábua:

«TÁBUA DAS CATEGORIAS»

I

Da quantidade:

Unidade

 Pluralidade

   Totalidade

           2                                                                                   3

Da Qualidade                                                              Da relação

Realidade                                                                    Inerência e subsistência

Negação                                                                      ( substancia et accidens)

Limitação                                                                    Causalidade e dependência

                                                                                                     (causa e efeito)

.....................................................................................Comunidade

                                                                                    (acção recíproca entre

                                                                                     o agente e o paciente)

                                                                         4

Da Modalidade:

Possibilidade-Impossibilidade

Existência-Não-existência

Necessidade-Contingência

 

 

Podemos fazer corresponder a relação filosófica de causação (determinismo), em Hume, à categoria de necessidade (lei infalível de causa-efeito)  em Kant. Também podemos estabelecer correspondência entre a relação filosófica de identidade e a categoria de inerência e subsistência (substância e acidente). As formas a priori do entendimento incluem as categorias e os juízos puros (afirmativos, negativos, assertóricos, apodícticos, etc) que são doze (VALE TRÊS VALORES).

 

B) As três res ou substâncias primordiais em Descartes são: a res divina, Deus, espírito criador do universo, fonte das outras duas; a res cogitans ou pensamento humano sobre ciências, filosofia, senso comum, etc; a res extensa, isto é, a matéria, abstracta e indeterminada, constituída por comprimento, largura e altura dos corpos, destituída de cor, som, cheiro. Os três tipos de ideias são : inatas, nascem connosco (ideias de triângulo, corpo, número, etc); adventícias, isto é, percepções empíricas; factícias, isto é, forjadas na imaginação. Podemos fazer corresponder as ideias adventícias à res extensa, por exemplo, ou as inatas, conforme o ponto de vista.(VALE QUATRO VALORES).

 

C) Holismo é a teoria que diz que a verdade é o todo e que o comportamento de cada parte só pode ser explicado em função do Todo. A astúcia da razão universal é a utilização das ambições pessoais de cada homem de Estado pela razão extra hunana ou Deus  de modo a fazer avançar a história para onde a razão quer. Sendo a astúcia da razão uma estratégia holística de manipular os homens ela é holismo, (VALE DOIS VALORES).

 

D) O idealismo, isto é, a doutrina que diz que o mundo material exterior à mente humana não existe, é ilusório, é base da teoria de Hume. Por exemplo, o"eu" em David Hume não é uma realidade, mas uma ideia ilusória, uma vez que somos apenas uma corrente de percepções empíricas a que a memória e a imaginação atribuem um núcleo invariável chamado «eu». Do mesmo modo, a   substância (exemplos: as substâncias cadeira ou nuvem) é uma ideia fabricada pela nossa imaginação servindo-se das sete relações filosóficas que são disposições sensório-intelectuais a priori da mente humana: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. A ideia de permanência, de continuidade entre as percepções empíricas forja as ideias de eu e de substância. As relações de tempo e lugar não estão em objectos materiais fora de nós mas são um modo de ver e pensar inerente à nossa mente - e isto é idealismo. David Hume é empirista  porque sustenta que as nossas impressões de sensação ou percepções empíricas (exemplo: a visão de um gato, o sabor da açorda alentejana) são a fonte das nossas ideias. Sustenta a teoria da tábua rasa que diz que ao nascer a mente humana vem vazia de conhecimentos. (VALE TRÊS VALORES).

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 21:41
link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 29 de Setembro de 2011
Locke: a natureza insubstancial, incorpórea do espaço

John Locke combateu a ideia de substância - coisa estável, que subsiste por si mesma, como por exemplo, um cavalo - e de acidente - qualidade algo "volátil" ou fortuita que se insere na substância, no caso anterior, a cor negra do cavalo, o tamanho das crinas, a altura exacta. David Hume adoptaria a mesma posição anti aristotélica. 

 

«17. Se se pergunta (como é habitual) se este espaço destituído de corpo é uma substância ou um acidente, responderei prontamente que o ignoro, e não me envergonho  da minha ignorãncia, até que os fizeram a pergunta não me proporcionarem uma ideia clara e distinta da substância.»  (John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, volume I, pag 217, Fundação Calouste Gulbenkian).

 

Locke advoga a teoria do espaço insubstancial, extensão sem quaisquer corpos materiais.

 

«É certo que nem a solidez pode existir sem a extensão, nem a cor escarlate sem a extensão, mas isso não impede que sejam ideias distintas. Há muitas ideias que requerem outras como necessárias para a sua existência ou concepção, mas que, no entanto, são ideias muito distintas. O movimento não pode ser, nem pode conceber-se sem o espaço, e, no entanto, o movimento não é o espaço, nem o espaço é o movimento, pois o espaço pode existir sem ele: trata-se de ideias muito distintas. (...)» (Locke, ibid, pag 214).

 

«12. Primeiro: a extensão não inclui a solidez nem resistência ao movimento de um corpo, como acontece com o corpo.

« 13 . Segundo: as partes do espaço puro são inseparáveis umas das outras, de tal modo que a continuidade não pode ser interrompida, nem real nem mentalmente. (Locke, ibid, pag 215)»

 

«...podemos conceber tão facilmente o espaço sem solidez como podemos conceber o corpo ou o espaço sem o movimento, ainda que seja muito duvidoso que o corpo e o movimento possam existir sem espaço. Mas quer se considere o espaço somente como uma relação da existência de outros seres situados à distância, quer se pense que devem entender-se literalmente estas palavras do mui sábio rei Salomão. "Porque se o céu e o céu dos céus não te podem conter" (III Reis VIII, 27) ou aquelas mais enfáticas do inspirado filósofo S.Paulo: "nele vivemos e nos movemos, e existimos" (Actos XVII, 28) é assunto que deixo à consideração de cada um». (Locke, ibid, pag 225; o negrito é posto por mim).

 

Ao duvidar que o espaço seja substância, isto é, algo em si mesmo que serve de suporte para outras entidades, Locke abre uma porta para abandonar a concepção realista do mundo, segundo a qual o espaço e o tempo são realidades em si exteriores, em geral, às mentes humanas.

 

No entanto, questione-se Locke: como podem dois entes estar à distância um do outro sem haver espaço e este ser apenas uma relação? Não é a distância um pedaço de extensão?

 

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 13:34
link do post | comentar | favorito

Quinta-feira, 18 de Fevereiro de 2010
A interpretação equívoca de Manuel Maria Carrilho sobre Kant e o pragmatismo

No seu livro «Que é Filosofia», editado em 1994, o catedrático português Manuel Maria Carrilho faz algumas equívocas apreciações sobre o kantismo e o pragmatismo: 

 

«O que o neopragmatismo sobretudo contesta é o passo que se dá desta intersubjectividade para a universalidade; ou, dito de outro modo, se há um erro de partida ele não se encontra em Hegel mas em Kant, no modelo epistemológico com que o criticismo pretendeu harmonizar a ciência e a ética. Este modelo tem na objectividade o seu ideal supremo, uma vez que, por um lado, a questão do conhecimento (do seu valor e limites) é decidida pela do objecto e do seu estatuto e, por outro, a moral exige a determinação a priori da legalidade da realidade em consideração. O pragmatismo rejeita completamente este modelo e o modo como ele aponta para um conhecimento a-histórico e acontextual, sugerindo como alternativa uma concepção em que os homens são pensados sempre em comunidade, em que o conhecimento e a acção se enraízam sempre num contexto e numa forma de vida.» (Manuel Maria Carrilho, O que é filosofia, Difusão Cultural, pág. 89; a letra negrita é posta por mim).

 

 Carrilho equivoca-se liminarmente ou é, no mínimo, de grande ambiguidade, ao dizer que na teoria de Kant « a questão do conhecimento (do seu valor e limites) é decidida pela do objecto e do seu estatuto». Mas é justamente o inverso! Afinal o que é a revolução coperniciana da gnoseologia de Kant?

 

É ó facto de o sujeito deixar de gravitar em torno do objecto físico exterior, centro do mundo do conhecimento, e a situação inverter-se, isto é, o objecto físico exterior passar a gravitar «em torno da» mente do sujeito, erigida agora em centro do processo de conhecimento. É a transferência da «objectividade» do objecto «exterior» para o sujeito interior, senciente e pensante.

 

Carrilho nem sequer precisa o que se entende por objectividade. O seu discurso retórico que, a cada passo nos remete para Kant, Hegel, Habermas, Apel, Austin, Heidegger, Derrida, Marx, Nietzschze, Foucault, Lacan, é escasso em definições claras e rigorosas. Voga no pássaro da anfibologia. Leu muito, mas não meditou o suficiente, não apreendeu a esmeralda multifacetada do sentido de certas palavras. Ora, na doutrina de Kant, a objectividade é a existência de leis e formas de conhecimento (espaço e tempo sensíveis, categorias e juízos puros do entendimento) interiores ao eu do sujeito, eu que engloba o espaço e o tempo: uma cadeira, por exemplo, não é objectiva em si mesma – porque nem sequer existe como ens a se, ser por si, real – mas a sua objectividade é uma intersubjectividade, isto é, a existência de um objecto ilusório, aparentemente real, que coincide nas mentes dos diversos sujeitos porque estas têm leis internas similares. Os números, por exemplo, são objectivos, para Kant, porque residem a priori no tempo, forma pura da sensibilidade, e são conceptualizados pela categoria de quantidade  do entendimento a priori, mas a côr ocre de um tronco de árvore e a própria substância madeira do tronco não são objectivas, são criações da sensibilidade e do entendimento, timbradas de subjectividade porque, ao nível do sensível, só a extensão e a figura possuem alguma objectividade na gnoseologia de Kant.

 

A matéria não é real para Kant, é um simples fenómeno, aparência de realidade:

 

«Devíamos, contudo, lembrar que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, nota de rodapé da Pág. 363).

 

 

Carrilho, tal como Popper, Russell e o próprio Heidegger, nem sequer percebeu esta fina tese de Kant de que o objecto físico, seja uma árvore, um rio ou um animal, é produzido na sensibilidade subjectiva do sujeito, exterior ao corpo físico, e não passa de representação, isto é imagem tridimensional, que desapareceria caso a mente do sujeito cessasse. A objectividade que a teoria de Kant proclama atingir não deriva do objecto físico, como supõem Carrilho e outros, mas sim das leis necessárias imanentes à consciência percipiente e, em alguma medida, do númeno, ou objecto real metafísico, incognoscível (Deus, mundo como totalidade incondicionada, liberdade). 

 

Não é também absolutamente exacto que teoria de Kant « aponta para um modelo de conhecimento a-histórico e acontextual»: isto só é verdade em parte, no que se refere ao modo de conhecer humano, às formas a priori do conhecimento; não é verdade no que se refere à moral, dado que o imperativo categórico é formal e autónomo, varia de pessoa a pessoa, carregando o lastro da historicidade individual. 

 

 

 

Aliás, existem pontos de convergência entre a noção de objectividade de Kant e a de William James fundador do pragmatismo, isto é, um modelo parcialmente comum. Um desses pontos é o de ambos acentuarem que a indução amplificante não é uma lei objectiva inteiramente independente da mente humana mas uma construção desta no sentido de facilitar a interpretação do mundo e a manipulação ou instrumentalização das coisas físicas.

 

 

 

James escreveu:

 

«A verdade descansa, na sua maior parte, num sistema de crédito. Os nossos pensamentos e crenças "passam"  enquanto ninguém os puser à prova, do mesmo modo que passa uma nota de banco enquanto ninguém a recusar. (...)  Outra grande razão - além da economia de tempo - para renunciar a uma verificação completa nos assuntos usuais da vida, é que todas as coisas existem como géneros, e não singularmente. O nosso mundo, de uma vez por todas, teve de mostrar essa peculariedade. Assim, uma vez verificadas directamente as nossas ideias sobre o exemplar de um género consideramo-nos livres de aplicá-los a outros exemplares sem verificação.» (William James, Pragmatismo, Ediciones Folio, Barcelona, Págs. 134-135, a letra negrita é posta por mim).

 

 

 

Ora este modelo de objectivismo em James que recusa segurança absoluta, universalidade, à indução, já havia sido teorizado por David Hume e por Kant quando este escreveu:

 

« Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução) de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontraram excepções a esta ou àquela regra.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Introdução (B), Fundação Calouste Gulbenkian, Pág. 38).

 

 

 

Ademais, a transformação, operada por Kant, das ideias de Deus, alma imortal e liberdade em postulados da razão prática, isto é, meros princípios reguladores do comportamento humano, impossíveis de provar experiencialmente, não é, senão, pragmatismo. Kant duvidou, tal como William James, da metafísica especulativa que dá como certo haver um ente transcendente, Deus, criador e senhor do universo e dos homens. Nada disto é sublinhado por Carrilho que opõe, de forma simplista e equívoca, as noções de verdade e objectividade em Kant e no pragmatismo.

 

 

 

A escrita de Manuel Maria Carrilho prima por um certo «impressionismo» filosófico, um estilo retórico feito de muitas pinceladas superficiais, onde está ausente, não poucas vezes, a clareza do verdadeiro pensamento filosófico que, contudo, existe na imensa maioria dos textos de Kant e de William James.  

www.filosofar.blogs.sapo.pt

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 22:35
link do post | comentar | favorito

mais sobre mim
pesquisar
 
Janeiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


posts recentes

Divergências de Schopenha...

Teste de filosofia do 11º...

Locke: a natureza insubst...

A interpretação equívoca ...

arquivos

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Fevereiro 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Dezembro 2006

Novembro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

tags

todas as tags

favoritos

Teste de filosofia do 11º...

Suicídios de pilotos de a...

David Icke: a sexualidade...

links
blogs SAPO
subscrever feeds