Heidegger cometeu logo no capítulo I da Primeira Secção de «O ser e o tempo» uma falácia de anfibologia (ambiguidade de sentidos para a mesma palavra) em tornos dos termos «essência» e «existência». Caracterizou o ser aí como «o ser que somos nós mesmos em cada caso» e afirmou que «o próprio ser é o que vai dentro de este ente em cada caso». Escreveu:
«Desta caracterização do "ser aí" (Dasein) resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a" . O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem de conceber-se partindo do seu ser (existentia). O problema ontológico é justamente o de mostrar que se escolhemos o termo existência para designar o ser de este ente, este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo tradicional existentia; existentia quer dizer ontologicamente "ser diante dos olhos", uma forma de ser que por essência não convèm ao carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em lugar do termo existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo existência, como determinação do ser, para o "ser aí".» (Martin Heidegger, El Ser y el tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica; a letra negrita é posta por mim).
Este texto de Heidegger é algo confuso e é espantoso que, lido por tantos milhares de filósofos e académicos, ninguém tenha gritado: «O rei vai nú!» - o rei é evidentemente Heidegger paramentado com uma retórica ambígua. Afirma, na primeira e segunda linhas, que a essência (quid) do ser-aí brota da existência, do ser, sem reparar que um quid brota de outro quid e não do puro existir vazio que seria o ser.
Heidegger joga equivocamente com os termos essência/ quê é (tó ti), e existência/ o que é, existe (tó on, em grego), como se o ser não possuísse um quid mas fosse apenas quod.
O desdobramento de sentido de «existência» em existir clássico (existentia) e existir eu mesmo (existência) é pertinente mas não esclarece a questão fundamental do ser: a essência deste. É o ritmo do universo traduzido em movimento ondulatório? É uma substância universal geradora do espírito, da matéria e da vida? É o eu ou ser-aí no meu caso?
Heidegger passa ao lado da determinação da essência do ser - aliás sempre o fará - e sugere o ser ora como estrutura geral ora como existir. Não é verdadeiramente claro. Ele caracterizou sempre o ser quanto às regiões ou "espaços" que preenche - o ser-aí, o ser no mundo, o ser à mão, o ser diante dos olhos, o ser para a morte, etc - mas nunca definiu o ser em si mesmo, não desenhou a sua forma.
Por isso a acusação que faz à ontologia tradicional de esta «ter esquecido o sentido do ser» recai sobre ele mesmo na medida em que oculta, em parte, o sentido do termo ser. Lança o nevoeiro da confusão com a frase: «O quê é (essentia) de este ente... tem de conceber-se partindo do seu ser (existência)». Isto é muito escolástico e parece copiar São Tomás de Aquino em «O ente e a essência» quando o «doutor angélico» afirma que a essência de Deus é o puro existir e dela brotam as diversas essências (homem, árvore, planeta, etc).
Heidegger prossegue:
«A essência do "ser aí" está na sua existência. » (Heidegger, ibid, pag 54).
Quando identifica a essência do "ser aí" com a existência, Heidegger solta as águas da confusão. A existência segundo ele é o ser. Mas trata-se de uma definição amputada, unilateral: o ser possui ou não um quid, um quê-é, uma estrutura geral determinada que é mais que um mero existir? A palavra "ser" tem dois sentidos: enquanto verbo, em sentido abstracto, designa o existir, a existência; enquanto substantivo, enquanto algo concreto ou concretizável, designa a essência, uma essência geral, universal, em que todos os entes se banham, em particular o "ser-aí" (cada homem).
Heidegger não faz explicitamente esta distinção.
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Em um dos seus mais belos textos filosóficos, datado de 1942, Heidegger escreveu:
«A expressão óntico, inspirada no grego tò ón, o ente, significa aquilo que se cinge ao ente. Mas o grego "ón", ente, encerra dentro de si uma essência própria de entidade (ousía) que no transcurso da sua história nunca permanece igual.(...) Como ón significa tanto "ente" como "o quê é" ( 1) on enquanto "ente" pode ser reunido (legéin) em direcção a "o quê é" ( 2) . Até se pode dizer que, de acordo com a sua ambiguidade, ón já está reunido como ente por mor da sua entidade. É ontológico. Mas com a essência do ón e a partir de ela, esse reunir que é, o lógos, transforma-se em cada caso e com ela, a ontologia. Desde que ón, o que se apresenta, se abriu como físis, a presença do que se apresenta reside, para os pensadores gregos, no fainestaí, na manifestação do não oculto que se mostra a si mesma. De acordo com isto, a multiplicidade do que se apresenta, tà onta, é pensada como aquilo que na sua manifestação é simplesmente aceite como o que se apresenta. A aceitação (dékestai) fica sem continuidade. Efectivamente, não continua a pensar mais além, na presença daquilo que se apresenta. Fica na dóxa. Pelo contrário, o noein é aquele perceber que percebe o presente na sua presença e a partir de aí abarca-a com ele.»( Martin Heidegger, Caminos de Bosque, El concepto de experiencia de Hegel, pag 133, Alianza Editorial, Madrid; o negrito é posto por mim).
1) Nota minha: A tradução espanhola desta passagem diz: "Como ón significa tanto "ente" como "lo que es". Atrevi-me a alterá-la, substituindo "o que é" por o "quê é" porque me parece absurda a versão espanhola: o ente é "o que é", "algo que é" , e não "o quê é" , tò tí, isto é o quid, a forma específica ou individual.
2) Nota minha: de novo corrijo aqui a tradução espanhola de "lo que es" substituindo-a por "lo qué-es" ( o quê é).
Ser possui na língua grega, o significado de presença, conforme sublinha Heidegger. Mas a essência não é, em rigor, presença, mas forma, estrutura. A essência delimita, especifica ou individualiza o ente, como a forma da estátua de mármore delimita ou individualiza o mármore em bruto. No texto acima, a presença designa o "ser" e o presente indica o "ente".
A acusação de Heidegger à tradição filosófica é a de esta esquecer o ser, que subjaz ao ente e o transcende, em favor do ente. Por exemplo: a metafísica cristã, confundiu o "ser", qualidade totalizante, com o ente "Deus", um espírito omnipotente, benéfico e autor do mundo.
A minha crítica a Heidegger, pensador brilhante da ontologia e, em certa medida, da filosofia analítica, reside na sua ambígua interpretação do termo "ser", nomeadamente expressa na seguinte passagem de Sein und Zeit:
«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. E com razão - si definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O "ser" não pode, com efeito, conceber-se como um ente; enti non additur aliqua natura; o "ser" não pode ser objecto de determinação predicando dele um ente.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 13, Fondo de cultura económica de España, Madrid; o negrito é colocado por mim).
Penso que o conceito de ser é definivel. A sua definição é dupla:
A) É o existir universal (presença).
B) É a essência geral de todos os entes, incluindo do ser-aí (cada homem, na sua singularidade).
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Teodorico de Freiberg, um pensador dominicano alemão (1250? - 1320) que se opôs à doutrina de Tomás de Aquino, escreveu sobre o ente:
«1. Ora o ente é o que há de mais geral. Compreende em si, na sua extensão, tudo, quer segundo a coisa quer segundo a significação. Significa a essência de tudo aquilo de que é predicado, seja predicado de uma substância seja de um acidente, conforme diz o Filósofo no princípio do Livro IV da Metafísica. Não há inconveniente em ser predicado da substância e do acidente, indicando a essência daquilo de que é predicado. Isto porque o ser é predicado da substância e do acidente segundo uma noção diferente, dado que a substância e o acidente derivam de noções diferentes, enquanto são entes.»
«2. De facto ambos são ditos "ente" enquanto têm uma certa essência. Mas a substância tem a essência segundo uma noção diferente da que o acidente tem. Isto é claro com base naquilo que Agostinho diz no capítulo 16 de A Imortalidade da Alma: «O que faz com que qualquer essência seja uma essência é o facto de ser.» Contudo o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pags. 27-28; o negrito é colocado por mim).
Teodorico não é de uma clareza absoluta porque não distingue as propriedades do ser das propriedades da essência. Joga na ambiguidade do termo "ser" que, ora é interpretado como existir ora como configuração, quid. E invoca Santo Agostinho mas, de facto, este equivocou-se: não é o ser que faz com que uma essência seja essência; o ser faz com que uma essência exista enquanto essência, ou seja, esteja impressa, plasmada, numa matéria indeterminada (o ser) gerando um ente concreto. Ser é ontologia e essência é eidologia. Em certo sentido, esta é anterior à ontologia. Se eu pensar em um cavalo com tromba de elefante e barbatanas de peixe em vez de patas traseiras penso numa essência que não existe no mundo biocósmico, mas que existe apenas na minha imaginação. Logo, não é o ser que faz com que a essência seja: é a forma, como princípio, que desenha ou estrutura a essência, não o ser. Há essências que são e outras que não são. Homem de sangue verde é uma essência imaginária, que não é (não existe no real), mas homem de sangue vermelho é uma essência real. Logo não é o ser que faz a essência: o ser é um correlato da essência, não o autor ou causa eficiente, fabricante, daquela. Parece que Platão, sem embargo de deslizar anfibologicamente em dois sentidos da palavra ser - existência e conjunto das formas imóveis inteligíveis - terá teorizado a Díade do Grande e do Pequeno como fonte das formas ou essências e o Uno como fonte do ser.
Também não parece que «o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente». Se entendermos por ser o existir, a mesma noção de existir se aplica à substância - a forma permanente do ente - e ao acidente - a forma transitória e parcelar do ente.
O ente (tó on) é para Aristóteles um sujeito indeterminado, universal, apto a contrair-se em qualquer substância: as suas características primordiais são existir e ser uno. « E o ente constitui o comum a todas as coisas» (Aristóteles, Metafísica, 1004 b, 20-25) .A filosofia - séculos mais tarde designada ontologia - é a ciência do ente, do que é. Género, espécie, substância primeira e acidente são modos do ente.
Teodorico distingue a quididade - uma qualidade determinada e estrutural; a essência ou forma da espécie, em Aristóteles - do quid ( que o tradutor Mário Santiago de Carvalho traduz por "o que" e nós por "o quê é») - a qualidade determinada particularizada ou individuada em tal ou qual ente. Mas mistura o quid com o quod e nesse sentido afasta-se de Aristóteles:
«4. Mas "quididade", que deriva de "o que" por abstracção, significa apenas o princípio formal que faz com que uma coisa seja essencialmente qualquer coisa. E é isto que comunmente se diz, e bem, ou seja, que nos simples a quididade e aquilo que é "o que" se identificam. Ora isto não acontece nos compostos de matéria e de forma. Nestes só a forma é quididade.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 32; o negrito é colocado por mim).
«8. Neste segundo modo de significação, tomado em sentido comum, é evidente que "brancura" e "branco" diferem quanto à significação. "Brancura" significa somente a qualidade, e "branco" significa o agregado do sujeito e da qualidade. E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.» (ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
A minha discordância relativamente a esta posição, inteligentemente explanada, é a seguinte: o quid ou quê-é, na perspectiva aristotélica, não engloba a totalidade do ente, mas constitui, de certo modo, o invólucro, a configuração, a estrutura deste. Uma estátua de mármore é um quid, não pelo mármore em bruto, mas pela forma que neste o escultor imprimiu. O quod é o ente abstractamente considerado, como algo existente, sem forma determinada.
A CONFUSÃO DA EXISTÊNCIA COM A ESSÊNCIA
A incoerência fende,subtilmente, o texto de Teodorico:
«5. O ser e "o que é" diferem no seguinte. O ser designa toda a essência da coisa. "O que é" significa uma parte da coisa, nas coisas compostas.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 45; o negrito é colocado por mim).
Ora isto contradiz a seguinte passagem acima citada:
«E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.»(ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
Comparando estas dois pensamentos, deduzimos que, na interpretação de Teodorico, o ser e o quê-é (na sua terminologia: "o que") são uma e a mesma coisa já que «significam toda a essência da coisa». Isto é um equívoco, uma confusão entre existência (ser) e essência ("quê-é, "o que").
O prefaciador Mário Santiago de Carvalho, sem embargo dos seus altos méritos na difusão da filosofia medieval, não parece ter detectado o equívoco do dominicano alemão do século XIV, equívoco que se desmonta assim: se "o que" ou quid constitui toda a essência da coisa, isto é, o composto forma-matéria, como sustentou Teodorico, então a substância primeira ou ente individualizado - exemplo: este vaso azul de barro - em nada se distingue da sua espécie ou substância segunda - o conjunto dos vasos azuis de barro. Aristóteles apontou a matéria como princípio de individuação mas essa teoria está aqui ausente. Em Teodorico, a matéria, originariamente destituída de forma, está incluída no quid, o que constitui um desvio do pensamento aristotélico e uma confusão entre a forma, acidental ou essencial (quid) e a não forma (matéria-prima, hylé).
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No "Ente e a Essência" Tomás de Aquino confundiu, em Deus, a essência com a existência, o theo ou Inteligência suprema, criadora ou não, com o tó on ou seja o ente, o ser :
«Há com efeito uma realidade, Deus, cuja essência é o seu próprio existir. Por esta razão, Por esta razão, há alguns filósofos dizem que Deus não tem quididade ou essência, uma vez que a sua essência se não diferencia do seu existir. Daqui se segue que ele não entra em nenhum género, porque tudo o que entra num género tem de ter quididade, além do seu existir, pois a quididade ou a natureza de um género ou de uma espécie compreende, enquanto que o existir se diversifica pelos vários indivíduos. Se dizermos que Deus é somente existir, não temos de cair no erro dos que afirmaram que Ele é esse universal pelo qual todas as coisas existem formalmente. De facto este existir que é Deus é de uma consideração tal que nenhuma adição lhe pode ser feita.»(Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag 92)
Segundo São Tomás, Deus é pura existência mas não é o ser mais comum, o universal de Aristóteles, um dos transcendentais. Se fosse o ser mais comum que penetra em todas as coisas, Deus perderia, em certa medida, o estatuto supremo que só o distanciamento, lá no Alto, Lhe dá. Dizer que a essência de Deus é a sua existência é confundir o quid ou tó ti (o quê é, a talidade, o definido) com o tó on (o que é, o ente, o existente indefinido). São Tomás cai neste paradoxo e tenta superar a ambiguidade de Deus não ter essência dizendo o seguinte:
«De modo semelhante, ainda que seja apenas existir, não devem faltar-lhe as restantes perfeições . » (Tomás de Aquino, Ibid, pag 93).
O raciocínio é paradoxal: Deus é apenas existir, mas ao mesmo tempo é omnipotência, bondade absoluta, sabedoria absoluta, justiça absoluta, beleza absoluta, misericórdia absoluta, etc. Portanto, Deus não é somente existir, possui uma essência que emerge da existência. Tomás de Aquino patina na neve da incoerência teórica.
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Há pelo menos quatro sentidos da palavra ser:
1) Existência ou existir. Exemplo: «Os homens são (existem)».
2) Essência. Exemplo: «O ser é uno, imóvel, esférico.» A definição clássica de Parménides é simultaneamente essencialista («O ser é uno, imóvel, imutável, contínuo») e existencialista («O ser é»).
3) Conexão de Essências. Exemplo: «O coelho é um ser vivo». As essências são «coelho» e «ser vivo». O ser traduz-se aqui na partícula de ligação «é», componente do predicado.
4) Coisa ou unidade de determinações essenciais e inessenciais. Exemplo: «Este coelho branco, de focinho sujo» As determinações essenciais são «coelho branco» e «focinho» e as inessenciais são «sujo».
Destes sentidos do vocábulo «ser» e das flexões verbais «foi»/ «foram», «era»/«eram», «é»/ «são», «será»/ «serão», etc há dois que são nitidamente quiditativos, isto é, determinativos do quid ou quê de algo: a essência e a coisa. Os outros dois, existência não é quiditativo e conexão ou relação é um misto de quiditativo e entitativo.
Heidegger usou a palavra ser, preferencialmente, no sentido de essência não a existência visível diante dos olhos como nos oferece o realismo natural (exemplo: «aquela árvore está ali, fora de mim, e vejo-a tal como é») mas a ex-sistência apriorística, as estruturas, o travejamento do «eu» (Ser-aí, Dasein) e dos entes que preenchem o mundo que só o Dasein possui e da conexão de essências e preferiu chamar «ente» à coisa, dotada de essência .
O SER COMO PRESENÇA CONSTANTE
Antes de mais, Heidegger honra lhe seja feita reportou a palavra ser (em grego: verbo einai) à etimologia grega.
«Para os gregos, ser quer dizer o mesmo que presença constante. Constância e presente são, porém, caracteres do tempo. Ente é para os gregos aquilo que permanece, o permanente nas coisas que existem, o que, na nudança do estado das coisas (por exemplo, tornar-se maior ou menor) resiste na mudança das qualidades. (Martin Heidegger, Lógica, A pergunta pela essência da linguagem, Fundação Calouste Gulbenkian, Pág. 218).
Há uma imprecisão ou incompletude de Heidegger nestas linhas acima. Constância e presente são tanto caracteres do tempo como do ser. Constância de quê? Presença de quê? A resposta é: constância, presença de ser ou de entes coisas que são que transportam em si o ser. É impossível perceber o tempo a presença vazia, a constância sem conteúdo - sem ser por referência ao ser. O tempo é invisível mas o ser concebido como dimensão material é visível, palpável. O tempo é um ou cada um dos momentos do ser no seu desdobramento.
Heidegger interpreta o existir (ex-sistir) do homem como a essência do homem emergente da essência do ser, isto é, o estar ligado umbilicalmente à verdade do ser e aqui o conceito de «ser» representa uma essência transcendente e originária, não o corpo humano nem o psiquismo susceptível de inflectir e errar:
«O homem porém, não é apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras faculdades, também possui a linguagem. Ao contrário, a linguagem é a casa do ser; nela morando, o homem ex-siste enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a.»
«Assim, o que importa na determinação da humanidade do homem enquanto ex-sistência é que o homem não é o essencial, mas o ser enquanto dimensão do elemento ex-stático da ex-sistência.» (Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães Editores, Págs. 71-72; a letra negrita é posta por mim.)
Se o homem não é o essencial, onde é que este se encontra? No ser. Aqui ser é concebido como um destino um destino ou, à maneira de Platão, um conjunto de arquétipos, essências ou formas imóveis e eternas que não são Deus uma essência fixa da qual a natureza de cada homem emana, como o ramo da árvore sai do tronco ou, melhor, como a folha sai do galho.
A linguagem não é de forma nenhuma arbitrária: ela vem do ser, o homem tem de se adaptar a ela, de a veicular íntegra e não a adulterar ou reinventar.
O SER É O SENHOR DOS DEUSES, DO ENTE MUNDANO E DO HOMEM, ESSE SER-ENTE
Sem dúvida, Heidegger distingue o «é» do «ser»: o «é» surge como uma propriedade essencial do ser que talvez nem exista nos entes, isto é, nas árvores, animais, nuvens, montanhas, casas, etc. De facto, já Platão dissera que estas são e não são, pois se transformam sem cessar sob a lei do devir.
«Contudo, já Parménides afirma nos primórdios do pensamento: estin gar einai, «É a saber, o ser.» Nesta palavra, esconde-se o mistério originário para todo o pensar. Talvez o é só possa ser dito de maneira adequada, apenas do ser, de maneira tal, que todo ente jamais propriamente é. (Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães Editores, Págs. 73).
O ser é superior a Deus e aos deuses. Eis uma hierarquia traçada por Heidegger de cima para baixo: o ser, no alto; o sagrado, no degrau imediatamente inferior; a divindade, um degrau mais abaixo:
«Somente a partir da verdade do ser se deixa pensar a essência do sagrado. E somente a partir da essência do sagrado deve ser pensada a essência da divindade. E, finalmente, somente na luz da essência da divindade, pode ser pensado e dito o que deve nomear a palavra Deus». (Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães Editores, Págs. 101-102).
Isto significa que Deus não é o princípio de todas as coisas pode, talvez, sê-lo das coisas materiais e biológicas mas não da essência transcendente que constitui o ser, ante a qual a divindade se verga. Heidegger não é espiritualista, nem biologista/ vitalista, nem materialista: é ontologista, ontólogo. Por tudo isto se percebe que o ser é conexão de essências, enquanto necessidade, lei obrigatória e infalível, mas é, sobretudo, essência ou arbusto de essências, enquanto arquétipos, formas substanciais primeiras.
Assim poderá pensar-se, por hipótese, que a obediência dos filhos aos pais na infância e adolescência é uma essência constituinte do ser, o antropos eterno, e que quando Heidegger se referia ao esquecimento da verdade do ser pudesse estar a referir-se, por exemplo, a uma educação demasiado permissiva, em que os filhos não admitem receber uma advertência ou uma palmada correctiva dos pais, perdem o respeito e a obediência a estes e se convertem em «pequenos delinquentes». O homem tem o poder de afastar-se da verdade do ser e isso traduz-se na corrupção da linguagem.
O HOMEM É O PASTOR DO SER
Assim, o destino proposto por Heidegger ao homem é ser o «pastor do ser»:
«Pelo contrário, o homem é «atirado» pelo próprio ser na verdade do ser, para que, ex-sistindo, desta maneira, guarde a verdade do ser, para que na luz do ser, o ente se manifeste como o ente que efectivamente é. Se e como o ente aparece, se e como o Deus e os deuses, a história e a natureza penetram na clareira do ser, como se presentam e ausentam, não decide o homem. O advento do ente repousa no destino do ser. Para o homem, porém, permanece a questão de saber se ele acha a conveniência adequada à sua essência, que corresponde a este destino; pois de acordo com ele, o homem é o pastor do ser. É somente nesta direcção que Ser e Tempo pensa quando é experimentada a existência ex-stática como "o cuidado"...»(Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães Editores, Págs. 66-67; a letra negrita é posta por mim).
O pastor do ser caracteriza-se pelo cuidado ou cura (Sorge), atitude que tem um duplo sentido: o cuidado teórico-prático, intencional, em cumprir as directivas do ser que aqui é o pólo activo, o patrão do pastor, o dono das ovelhas e o cuidado prático de vigiar as ovelhas e reconduzi-las do prado ao redil aqui as ovelhas são também o ser, visto de forma passiva. Interpretações plausíveis do homem como pastor do ser: o praticante de ioga ou de reiki é "pastor do ser" considerando este como a energia cósmica que desce do alto e percorre a kundalini do ser humano; o professor de literatura, o escritor ou o filósofo são pastores do ser na medida em que fazem vir este, enquanto ideação, à tona de uma linguagem cuidada; o agricultor que respeita os ritmos biológicos da terra e a harmonia da paisagem pastoreia o "ser" entendido como bioesfera, como mundo da natureza vegetal e mineral...
A CONTRADIÇÃO ENTRE AS DEFINIÇÕES DE SER COMO TRANSCENDENTAL E DE SER COMO TRANSCENDENTE
Aparentemente, Heidegger filia-se em Aristóteles, ao considerar o ser como o o mais comum, o mais universal de todos os predicados, e em Platão, ao considerar o ser como o transcendente . Mas há uma contradição entre estas duas posições: o ser como o mais comum e universal, existente em todas as coisas, é imanência e transcendência, não é o transcendente pura e simplesmente. Portanto, Heidegger toma o ser pelo menos em dois sentidos distintos: como o transcendental (universal) e como o transcendente (supremo e exterior a, acima do comum).
E contradiz-se ao dizer que o ser não é género de todos os entes:
«El ser, tema fundamental de la filosofía, no es género de ningún ente, y sin embargo toca a todo ente. Hay que buscar más alto su universalidad. El ser y su estructura están por encima de todo ente y toda posible determinación de un ente que sea ella misma ente. El ser es lo transcendens pura y simplemente. La trascendencia del ser ahí es una señalada trascendencia, en cuanto que implica la posibilidad y la necesidad de la más radical individuación. Todo abrir el ser en cuanto transcendens es conocimiento trascendental. La verdad fenomenológica (estado de abierto del ser) es veritas trascendentales.»
(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económico, pag 48).
Como pode o ser tocar em todos os entes sem os englobar? Só se for conexão de essências ( exemplo: a amendoeira é da essência árvore, o homem é da essência ente racional, os deuses são da essência supra-física) mas esta conexão não é transcendência pura e isso contraria a outra definição do ser como «o transcendente pura e simplesmente.»
O SER É ESSÊNCIA GERAL E CONEXÃO DE ESSÊNCIAS, O QUE HEIDEGGER NÃO EXPLICITA
Vemos ainda Heidegger insistir na interpretação parmenídia do ser como o eterno, que não foi nem será, - mas não na quididade ou talidade do ser, isto é, na sua essência concreta (por exemplo: se é uma esfera circular que possui as propriedades do bem, do mal, do belo, do feio, as cores do arco-íris, o espírito e a matéria, etc).
«Mas o ser- que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo é a aprendizagem pelo qual deve passar o pensar futuro não é Deus, nem um fundamento do mundo. O ser é mais longínquo do que qualquer ente e está mais próximo do homem do que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal, uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais próximo. E contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre apenas ao ente.» (Heidegger, Carta sobre o humanismo, Guimarães Editores, Págs. 67; a letra a negrito é colocada por mim).
Ao dizer «ser é o que é mesmo» Heidegger repete Parménides. O ser é o mais próximo porque constitui o «cimento» e os «tijolos» do homem tanto no plano do eu psíquico como do eu físico e é o mais longínquo porque integra o universo, os outros homens, a transcendência. Heidegger, tal como Parménides, não diz explicitamente que o ser é essência e conexão de essências: frutos (essências) da árvore (ser em geral) ligados pelos ramos (conexão).
A existência é uma propriedade da essência à essência do homem chama Heidegger ex-sistência, isto é, excrescência do ser - não de todas as essências, mas de muitas. O tempo é uma forma da existência.
Não há qualquer dúvida de que, na doutrina de Heidegger, o ser é prévio ao agir e isto é, como aliás salientou Heidegger, completamente contrário à tese existencialista de Sartre de que «o homem é aquilo que faz» - e isso exprime-se na seguinte passagem em que o mal é definido como integrando a essência do ódio e só posteriormente é caracterizado como componente da acção má:
«Como o salutar o bom particularmente se manifesta, na clareira do ser, o mal. A essência do mal não consiste na simples maldade do agir humano, mas reside na ruindade do ódio. Ambos, o bom e o ódio, somente podem desdobrar o seu ser, no seio do ser, na medida em que o próprio ser é o que está em conflito. Nisto se esconde a origem essencial do nadificar. »(Heidegger, Carta sobre o Humanismo, pag. 114)
PRECISÕES SOBRE O SER E O TEMPO QUE TALVEZ HEIDEGGER NÃO TENHA FEITO
O O tempo faz parte do ser entendido como existência e é exterior ao ser entendido como essência. Na verdade, o tempo existe mas não tem essência material. Ele é, por assim dizer, a essência negativa ou inessência do espaço, dos corpos materiais e dos corpos psíquicos. O tempo desmaterializa aqui e materializa acolá. É, pois, um movimento incessante e quase sempre invisível: é o devir, um misto de ser-essência e não ser-essência ou nada. À primeira vista, somos inclinados a pensar que possa ser a camada periférica da esfera do ser, sendo esta imóvel no seu centro. Dizer que a essência do tempo é passado-presente-futuro é definir a essência a partir de outras essências: forma dos objectos físicos e transformações internas destes, posição de alguns destes (exemplo: o sol e os planetas). O tempo presente é invisível, tal como o passado e o futuro. É apenas um «lugar» onde o ser se mostra nas suas dimensões materiais, psíquicas e espirituais. O presente é a transparência do ser. Ora a transparência não tem essência: é o deixar ver total, sem opacidade.
Assim, o tempo é uma propriedade do espaço e das coisas não exactamente o devir delas porque, como Platão supõe no Timeu, pode conceber-se um movimento eterno das coisas imutáveis e perenes, dos arquétipos, sem que isso seja tempo. O tempo só é o devir das coisas físicas na medida em que estas se transformam e degradam irreversivelmente. A «essência» íntima do tempo não pode, pois, consistir na circularidade pura, no movimento circular perfeito, mas sim na linha recta ou no segmento de recta a prolongar-se - que se vai traçando de forma irreversível. Em «O Ser e o tempo» Heidegger, sob a influência de Kant, faz o espírito do homem produzir o tempo:
«El espíritu no cae en el tiempo, sino que existe como temporación original de la temporalidad. Ésta temporacia el tiempo mundano, en cuyo horizonte puede aparecer la historia como un gestarse intratemporacial. El espíritu no cae en el tiempo, sino que la existencia fáctica cae, en la caída, desde la temporalidad original y propia». (Martin Heidegger, El Ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 469).
Esta autonomização do tempo face ao ser ignora que o tempo é ser. Heidegger absorveu de Hegel o carácter principial e ontogenético do ser - no começo de tudo está o ser, o pensamento vazio - e de Kant o carácter modelador e ontogenético do tempo - o tempo como forma a priori da sensibilidade que participa na construção dos fenómenos ou objectos reais para os sentidos. Combinou o ser de Hegel, anterior ao ser humano (Dasein ou ser-aí em Heidegger) com o tempo de Kant, subjectivo, interior à sensibilidade do "eu" humano, anterior aos objectos físicos e co-criador destes e à sua história, fazendo do tempo originário intersubjectivo um foco temporalizador, gerador do tempo histórico objectivo. E não conseguiu encontrar a conexão entre o ser e o tempo como dá a entender nas palavras finais de Ser e Tempo:
«Qual é a exegese de este modo de temporalização da temporalidade? Há algum caminho desde o tempo original até ao sentido do ser? Revela-se também o tempo horizonte do ser?» (Martin Heidegger, O Ser e o Tempo, pág 471, edição espanhola).
O tempo, ao contrário do que sustenta Heidegger, é subjectivo e objectivo.
«O tempo" não está "diante dos olhos" nem no "sujeito", nem no "objecto", nem "dentro", nem "fora" e "é" anterior a toda a subjectividade e objectividade, porque representa a própria condição de possibilidade desse "anterior". Tem em geral um ser? E se não, é um fantasma ou é mais que todo o possível ente?» (Heidegger, Ser e Tempo, Pág 452, edição espanhola).
O tempo é apresentado aqui com um carácter genérico, proto-ontólgico - ou melhor: proto-ôntico, no sentido heideggeriano - transcendente, quase coincidindo com o ser. Que lhe falta para se tornar «ser», na óptica heideggeriana? Provavelmente o carácter destinador, a concrecção ou talidade do ser, dado que o tempo é vazio, como a transparência do vidro da janela que vai mostrando o interior da «casa do ser». Não é o tempo que destina ou projecta o destino. O tempo executa o destino dos entes (homens, paisagens, cidades, aviões, computadores, etc) projectado e ordenado pelo ser. O tempo é, pois, na minha óptica, o artífice que põe em prática a ideação levada a cabo pelo ser, «arquitecto geral». O tempo é uma dimensão móvel do ser. Não são extrínsecos: o ser contém o tempo mas este não contém a totalidade do ser. Heidegger não tem razão ao acusar a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo e orientar-se para definições de ser como tempo e na base do tempo: o tempo é a existência, em particular a actualitas (o que cada coisa «é» no presente), e não é possível determinar o ser (as noções de coisa, essência, substância, acidente, etc) sem a inerente noção do tempo. O ser-essência está sempre no tempo e quando se diz que o ser está na eternidade, «fora do tempo», está-se a dizer que está no tempo infinito do passado ou do futuro.
A meu ver, aquilo que se parece mais com o tempo é a luz. O tempo é o foco de luz que vai iluminando gradualmente as paredes do imenso convento do ser, mergulhado na escuridão do não ser.
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