Heidegger intitulou o seu livro mais famoso de «Ser e tempo.» Implicitamente, estreitou o conceito de «Ser». Porque «Ser» significa duas coisas distintas o que Heidegger não explicita, em regra:
A) Existir.
B) Essência geral, isto é, forma ou estrutura geral.
São duas coisas diferentes embora interligadas. O tempo não é uma essência geral mas é a contínua alteração (alloíosís, em grego) dessa essência: é o puro movimento interno das formas, a mudança destas. É o movimento dentro da imobilidade. O tempo é pois uma modalidade do ser. Ou é o ser entendido como existir, não como forma ou essência geral. O movimento é a transição entre duas essências - uma forma e a forma que lhe sucede no mesmo lugar ou entre dois lugares diferentes.
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No seu livro «Enigmas da Existência - uma visita guiada à Metafísica» escreve Earl Connee:
«Os conjuntos são objectos matemáticos já conhecidos úteis para várias finalidades teóricas. Um facto crucial sobre conjuntos é serem idênticos quando têm os mesmos membros. O que pertence a um conjunto é tudo o que há para dizer acerca de que conjunto se trata» (Earl Connee e Theodore Sider, «Enigmas da Existência - uma visita guiada à Metafísica» , pag 220, Bizâncio; o destaque a negrito é posto por mim).
Ora, os conjuntos não são meramente objectos matemáticos, são objectos eidético-matemáticos, o que é diferente. São, antes de mais, uma forma comum, um eidos, na terminologia aristotélica, em segundo lugar uma quantidade, uma matéria. Os dois aspectos são indissociáveis, tal como forma e conteúdo.
É um erro grave dizer que os conjuntos são idênticos quando têm os mesmos membros. Senão vejamos: numa sala estão dez operários da construção civil de nacionalidade portuguesa. Há aí dois conjuntos que têm os mesmos membros mas são diferentes entre si : o conjunto dos portugueses presentes na sala e o conjunto dos operários da construção civil presentes na sala.
E prossegue Earl Connee:
«A perspectiva de que um universal é um conjunto de instâncias diverge do universalismo abundante em alguns casos. A teoria abundante aceita que há diferentes universais onde quer que haja qualquer diferença visível no modo como as coisas são. Por exemplo, "ar flogisticado" era ar supostamente impregnado da substância flogisto, e pensava-se que isto ajudava a explicar a combustão. Acontece que não há tal substância. Pelo que nada tem realmente a propriedade de ser flogisto. Em Salem, em Massachussets, pensava-se que havia bruxas que faziam pactos com o Diabo. Nada tinha realmente a propriedade ser uma bruxa de Salem que fez um pacto com o Diabo. As propriedades ser flogisto e ser uma bruxa de Salem que fez um pacto com o Diabo parecem muito diferentes entre si. A primeira seria exemplificada pelo ar e ajudaria a explicar o fogo; a cultura seria exemplificada e envolveria a participação em transações sobrenaturais. A perspectiva dos conjuntos, todavia, não admite aqui universais diferentes. Um facto básico sobre conjuntos é que não há dois conjuntos diferentes quando os seus membros são diferentes. Os membros do conjunto de coisas que são flogisto são exactamente os mesmos que o conjunto das coisas que são bruxas de Salem que fazem um pactos com o Diabo. Num e noutro caso, não há tais coisas. Assim, num e noutro caso, o conjunto de instâncias é o conjunto que não tem quaiquer membros, o conjunto vazio. Contudo, à luz das diferenças óbvias, como poderia haver apenas um universal aqui? (Earl Connee e Theodore Sider, «Enigmas da Existência - uma visita guiada à Metafísica» , pag 221, Bizâncio; o destaque a negrito é posto por mim).
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Comecemos por reparar na imperfeição da definição «teoria abundante», uma definição que exprime apenas a dimensão quantitativa, contraposta à «teoria dos universais como instâncias», noção confusa. Connee quer, certamente, referir-se a elementos de um conjunto quando fala de «instâncias».
Há na teoria dos conjuntos, acima enunciada por Connee, uma confusão entre essência (forma) e existência (matéria informada). Passa-se do «não é» , nível da essência, ao «não há», nível da existência, e infere-se que este segundo nível apaga as distinções no seio do primeiro. Puro erro de raciocínio. Ausência de pensamento dialético.
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O "paradoxo do mentiroso" é um argumento aceite como válido pela filosofia analítica anglo-saxónica. Blackburn o enuncia-o assim:
«Paradoxo do mentiroso - Paradoxo alegadamente devido a Epiménides. Há um certo número de paradoxos que pertencem à família do mentiroso. O exemplo mais simples é a frase «Esta frase é falsa», que tem de ser falsa se for verdadeira, e verdadeira se for falsa. Uma sugestão de solução é afirmar que a frase nada diz; mas as frases que nada dizem não são, no mínimo, verdadeiras. Nesse caso, consideramos a frase " Esta frase não é verdadeira" que, se nada diz, não é verdadeira e, logo, é verdadeira (a este tipo de raciocínio chama-se por vezes "o paradoxo fortalecido do mentiroso"). Outras versões do mentiroso, introduzem pares de frases, como uma inscrição na parte da frente de uma camisola que afirma " A frase na parte de trás desta camisola é falsa" e outra na parte de trás que afirma "A frase na parte da frente desta camisola é verdade". É claro que, tomadas isoladamente, ambas as frases são bem formadas, e, se não fosse pelo que a outra afirma, poderiam ter dito algo verdadeiro. Por isso qualquer tentativa para afastar o paradoxo afirmando que as frases envolvidas não têm significado enfrenta problemas.»
(Simon Blackburn, Dicionário de Filosofia, pag 320, Gradiva, 2007; o destaque a negrito é posto por mim).
Há aqui uma pura manipulação sofística, um pseudo raciocínio: a frase, dita por um mentiroso, é falsa se for verdadeira, é verdadeira se for falsa. É óbvio que isto é uma impossibilidade lógica: verdadeira, em que sentido? Falsa, em que sentido? Obrigatoriamente, terá de ser em sentidos diferentes e isso Blackburn e os seus partidários não discernem e não explicam. A dialética é, para eles, estranha. A sua analítica analisa, isto é, decompõe em elementos diversos, menos do que a dialética. Blackburn não pensa dialeticamente: mistura no mesmo plano, verdade e falsidade, o que viola o princípio da não contradição. Como é que uma frase é falsa sendo verdadeira? Está-se a confundir o fundo com a forma, o conteúdo com o continente, a locução com o locutor.
Trata-se de um pseudoparadoxo, o que se descobre pela aplicação do método dialético e do seu princípio «um divide-se em dois». Não existe um só enunciador da frase «Esta frase é falsa» mas dois: o mentiroso em acto e o mentiroso em potência. Se é o mentiroso em acto que diz «esta frase é falsa», a frase seria, logicamente, verdadeira, se tivesse algum conteúdo: o mentiroso em acto está obrigado a mentir. Se é o mentiroso em potência, ou seja, alguèm que no momento presente fala verdade mas que virá ou poderá vir a mentir no futuro, a frase «Esta frase é falsa», se porventura tivesse algum conteúdo, seria igualmente verdadeira, embora com conteúdo concreto diferente da frase dita pelo mentiroso em acto.
Quando se diz «esta frase é falsa» não se distingue entre o triplo sentido da palavra verdade: como essência ideal, ligada a referentes ideais, teoréticos, como essência confirmada no plano da existência material e como existência linguística.
Blackburn afirma confusamente acima: «Nesse caso, consideramos a frase " Esta frase não é verdadeira" que, se nada diz, não é verdadeira e, logo, é verdadeira (a este tipo de raciocínio chama-se por vezes "o paradoxo fortalecido do mentiroso").»
Então a frase que nada diz, não verdadeira, é verdadeira? É pura sofística. É confundir, numa amálgama, planos distintos. Se a frase nada diz, é falsa enquanto essência mas é verdadeira enquanto existência linguística, construção formal de palavras. A dialética, como ciência do uno, dos géneros e das espécies, impõe distinguir os vários sentidos de um mesmo conceito-termo, as várias ramificações deste, mas não é praticada por estes senhores da filosofia "analítica" que sofrem o fetichismo das palavras, os «efeitos especiais» destas, sem penetrar o sentido mais profundo de cada uma.
Ao considerar a frase "esta frase não é verdadeira" não se distingue, em regra, que há duas proposições dentro da mesma frase, uma que funciona como enunciado a outra como enunciador : cada proposição possui o seu domínio próprio mas o pensamento caótico, sofístico, confunde-as . Se a frase interior é falsa como essência, isto é na sua relação com o referente, a frase exterior, englobante e judicativa sobre a primeira, é verdadeira. Não há paradoxo nenhum nisto.
Se disser «A frase "o número atómico do oxigénio é 78" é falsa», esta frase é verdadeira enquanto reportando-se a objetos reais, os átomos e os seus constituintes eletrónicos: sabe-se, de acordo com a tabela periódica dos elementos químicos, que o número atómico do oxigénio é 8. O que é falso é a frase dentro da frase ( a que está balizada por aspas: "o número atómico do oxigénio é 78", a que chamo a frase interior ) não a frase como enunciado global. Esta última só pode ser dita por alguém que fala verdade neste momento - o mentiroso em potência - e não pelo mentiroso em acto. Este dirá apenas: "o número atómico do oxigénio é 78".
Dizer «esta frase é falsa» pode significar: é falsa no seu conteúdo concreto mas é verdadeira enquanto invólucro externo desse conteúdo. Portanto não há aqui nenhum paradoxo, mas apenas sofisma, confusão do terreno do verdadeiro com o terreno do falso. A palavra frase é tomada, sem que as pessoas se apercebam, em dois sentidos distintos, um anterior-interior e o outro posterior-exterior, este último um juízo de verdade sobre o primeiro. Há duas frases: a primeira é "esta frase" - uma frase oculta, com aspecto de sujeito, frase de sentido indeterminado, hermeticamente fechada como uma boneca russa dentro da outra - e a segunda é "esta frase é falsa". Ora como pode a boneca russa mais pequena fechada no interior da maior avaliar o aspecto desta? Não pode. E como pode a boneca russa maior avaliar o aspeto, o valor de verdade, da que está fechada no seu interior? Não pode.
Quando se diz na parte da frente da camisola " A frase na parte de trás desta camisola é falsa" e na parte de trás se lê "A frase na parte da frente desta camisola é verdadeira" não há aqui nenhum paradoxo real. Afinal, qual é a frase em questão? É vazia. Ora o paradoxo não actua sobre o nada, só existe quando há conteúdos determinados, como por exemplo, o paradoxo «Deus ama infinitamente todas as pessoas e condena ao sofrimento eterno as que forem malvadas e impenitentes apesar de as amar». Amar e castigar eterna e inflexivelmente são contrários que se excluem no mesmo ente em relação ao mesmo objeto.
Diz-se que é um paradoxo o facto de o cretense Epiménides ter dito o seguinte: «Todos os cretenses são mentirosos". Não há paradoxo nenhum, porque Epiménides podia ser mentiroso ocasional - não se mente sempre, em regra - e proferir esta afirmação sendo ela verdadeira.
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Kant definiu doze categorias ou conceitos puros do entendimento que permitem moldar e pensar os fenómenos. Como categorias da qualidade colocou:
Realidade.
Negação.
Limitação.
(Kant, Crítica da Razão Pura, página 111, Fundação Calouste Gulbenkian).
Parece-me que realidade pertence ao género ontológico e negação ao género lógico. Kant evidencia uma certa confusão, uma certa falta de ordenação dialética, ao misturar espécies de géneros diferentes sob o teto do género «qualidade». Tanto negação como limitação são, numa certa ótica, atributos da realidade, que é o suporte: esta afirma algo e nega outra coisa - por exemplo, o barulho de motores ou de uma discoteca é uma realidade que afirma o ruído e nega o silêncio. Por outro lado a realidade do universo é limitada ou ilimitada, no tempo e no espaço. Limitação pertence ao género perológico ( de peras, limite, em grego) e interseta tanto realidade como irrealidade. Se Kant pretendia constituir as categorias da qualidade no plano da lógica deveria, talvez, fazê-lo assim:
Afirmação.
Negação.
Abstenção ou privação de juízo.
Se pretendia constituir as categorias do ser talvez pudesse fazê-lo assim:
Realidade
Irrealidade.
Realidade deveria, no esquema lógico montado por Kant, figurar nas categorias da modalidade que são as seguintes, segundo o filósofo:
Possibilidade-Impossibilidade
Existência - Não-existência
Necessidade-Contingência.
Em sentido lato, a existência é a realidade. O que existe é real, o que não existe é irreal. Em sentido estrito, a existência, entendida como vida e presença material, não coincide com a realidade visto que esta é concebida como sendo de caráter ideal ou teológico. Hegel dizia que há existentes que não são reais (exemplo: um homem vestido de guerreiro medieval a passear nas ruas da Berlim do século XIX não era real, estava fora do seu tempo). Kierkegaard dizia que Deus é real mas não existe - existência em sentido material: «Deus é, não existe, o homem existe, não é».
Kant não possui um pensamento verdadeiramente dialético em matéria de categorias do entendimento.
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Heidegger cometeu logo no capítulo I da Primeira Secção de «O ser e o tempo» uma falácia de anfibologia (ambiguidade de sentidos para a mesma palavra) em tornos dos termos «essência» e «existência». Caracterizou o ser aí como «o ser que somos nós mesmos em cada caso» e afirmou que «o próprio ser é o que vai dentro de este ente em cada caso». Escreveu:
«Desta caracterização do "ser aí" (Dasein) resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a" . O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem de conceber-se partindo do seu ser (existentia). O problema ontológico é justamente o de mostrar que se escolhemos o termo existência para designar o ser de este ente, este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo tradicional existentia; existentia quer dizer ontologicamente "ser diante dos olhos", uma forma de ser que por essência não convèm ao carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em lugar do termo existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo existência, como determinação do ser, para o "ser aí".» (Martin Heidegger, El Ser y el tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica; a letra negrita é posta por mim).
Este texto de Heidegger é algo confuso e é espantoso que, lido por tantos milhares de filósofos e académicos, ninguém tenha gritado: «O rei vai nú!» - o rei é evidentemente Heidegger paramentado com uma retórica ambígua. Afirma, na primeira e segunda linhas, que a essência (quid) do ser-aí brota da existência, do ser, sem reparar que um quid brota de outro quid e não do puro existir vazio que seria o ser.
Heidegger joga equivocamente com os termos essência/ quê é (tó ti), e existência/ o que é, existe (tó on, em grego), como se o ser não possuísse um quid mas fosse apenas quod.
O desdobramento de sentido de «existência» em existir clássico (existentia) e existir eu mesmo (existência) é pertinente mas não esclarece a questão fundamental do ser: a essência deste. É o ritmo do universo traduzido em movimento ondulatório? É uma substância universal geradora do espírito, da matéria e da vida? É o eu ou ser-aí no meu caso?
Heidegger passa ao lado da determinação da essência do ser - aliás sempre o fará - e sugere o ser ora como estrutura geral ora como existir. Não é verdadeiramente claro. Ele caracterizou sempre o ser quanto às regiões ou "espaços" que preenche - o ser-aí, o ser no mundo, o ser à mão, o ser diante dos olhos, o ser para a morte, etc - mas nunca definiu o ser em si mesmo, não desenhou a sua forma.
Por isso a acusação que faz à ontologia tradicional de esta «ter esquecido o sentido do ser» recai sobre ele mesmo na medida em que oculta, em parte, o sentido do termo ser. Lança o nevoeiro da confusão com a frase: «O quê é (essentia) de este ente... tem de conceber-se partindo do seu ser (existência)». Isto é muito escolástico e parece copiar São Tomás de Aquino em «O ente e a essência» quando o «doutor angélico» afirma que a essência de Deus é o puro existir e dela brotam as diversas essências (homem, árvore, planeta, etc).
Heidegger prossegue:
«A essência do "ser aí" está na sua existência. » (Heidegger, ibid, pag 54).
Quando identifica a essência do "ser aí" com a existência, Heidegger solta as águas da confusão. A existência segundo ele é o ser. Mas trata-se de uma definição amputada, unilateral: o ser possui ou não um quid, um quê-é, uma estrutura geral determinada que é mais que um mero existir? A palavra "ser" tem dois sentidos: enquanto verbo, em sentido abstracto, designa o existir, a existência; enquanto substantivo, enquanto algo concreto ou concretizável, designa a essência, uma essência geral, universal, em que todos os entes se banham, em particular o "ser-aí" (cada homem).
Heidegger não faz explicitamente esta distinção.
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Teodorico de Freiberg, um pensador dominicano alemão (1250? - 1320) que se opôs à doutrina de Tomás de Aquino, escreveu sobre o ente:
«1. Ora o ente é o que há de mais geral. Compreende em si, na sua extensão, tudo, quer segundo a coisa quer segundo a significação. Significa a essência de tudo aquilo de que é predicado, seja predicado de uma substância seja de um acidente, conforme diz o Filósofo no princípio do Livro IV da Metafísica. Não há inconveniente em ser predicado da substância e do acidente, indicando a essência daquilo de que é predicado. Isto porque o ser é predicado da substância e do acidente segundo uma noção diferente, dado que a substância e o acidente derivam de noções diferentes, enquanto são entes.»
«2. De facto ambos são ditos "ente" enquanto têm uma certa essência. Mas a substância tem a essência segundo uma noção diferente da que o acidente tem. Isto é claro com base naquilo que Agostinho diz no capítulo 16 de A Imortalidade da Alma: «O que faz com que qualquer essência seja uma essência é o facto de ser.» Contudo o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pags. 27-28; o negrito é colocado por mim).
Teodorico não é de uma clareza absoluta porque não distingue as propriedades do ser das propriedades da essência. Joga na ambiguidade do termo "ser" que, ora é interpretado como existir ora como configuração, quid. E invoca Santo Agostinho mas, de facto, este equivocou-se: não é o ser que faz com que uma essência seja essência; o ser faz com que uma essência exista enquanto essência, ou seja, esteja impressa, plasmada, numa matéria indeterminada (o ser) gerando um ente concreto. Ser é ontologia e essência é eidologia. Em certo sentido, esta é anterior à ontologia. Se eu pensar em um cavalo com tromba de elefante e barbatanas de peixe em vez de patas traseiras penso numa essência que não existe no mundo biocósmico, mas que existe apenas na minha imaginação. Logo, não é o ser que faz com que a essência seja: é a forma, como princípio, que desenha ou estrutura a essência, não o ser. Há essências que são e outras que não são. Homem de sangue verde é uma essência imaginária, que não é (não existe no real), mas homem de sangue vermelho é uma essência real. Logo não é o ser que faz a essência: o ser é um correlato da essência, não o autor ou causa eficiente, fabricante, daquela. Parece que Platão, sem embargo de deslizar anfibologicamente em dois sentidos da palavra ser - existência e conjunto das formas imóveis inteligíveis - terá teorizado a Díade do Grande e do Pequeno como fonte das formas ou essências e o Uno como fonte do ser.
Também não parece que «o ser que convém à substância tem uma dada noção e enquanto pertence ao acidente tem uma noção diferente». Se entendermos por ser o existir, a mesma noção de existir se aplica à substância - a forma permanente do ente - e ao acidente - a forma transitória e parcelar do ente.
O ente (tó on) é para Aristóteles um sujeito indeterminado, universal, apto a contrair-se em qualquer substância: as suas características primordiais são existir e ser uno. « E o ente constitui o comum a todas as coisas» (Aristóteles, Metafísica, 1004 b, 20-25) .A filosofia - séculos mais tarde designada ontologia - é a ciência do ente, do que é. Género, espécie, substância primeira e acidente são modos do ente.
Teodorico distingue a quididade - uma qualidade determinada e estrutural; a essência ou forma da espécie, em Aristóteles - do quid ( que o tradutor Mário Santiago de Carvalho traduz por "o que" e nós por "o quê é») - a qualidade determinada particularizada ou individuada em tal ou qual ente. Mas mistura o quid com o quod e nesse sentido afasta-se de Aristóteles:
«4. Mas "quididade", que deriva de "o que" por abstracção, significa apenas o princípio formal que faz com que uma coisa seja essencialmente qualquer coisa. E é isto que comunmente se diz, e bem, ou seja, que nos simples a quididade e aquilo que é "o que" se identificam. Ora isto não acontece nos compostos de matéria e de forma. Nestes só a forma é quididade.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 32; o negrito é colocado por mim).
«8. Neste segundo modo de significação, tomado em sentido comum, é evidente que "brancura" e "branco" diferem quanto à significação. "Brancura" significa somente a qualidade, e "branco" significa o agregado do sujeito e da qualidade. E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.» (ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
A minha discordância relativamente a esta posição, inteligentemente explanada, é a seguinte: o quid ou quê-é, na perspectiva aristotélica, não engloba a totalidade do ente, mas constitui, de certo modo, o invólucro, a configuração, a estrutura deste. Uma estátua de mármore é um quid, não pelo mármore em bruto, mas pela forma que neste o escultor imprimiu. O quod é o ente abstractamente considerado, como algo existente, sem forma determinada.
A CONFUSÃO DA EXISTÊNCIA COM A ESSÊNCIA
A incoerência fende,subtilmente, o texto de Teodorico:
«5. O ser e "o que é" diferem no seguinte. O ser designa toda a essência da coisa. "O que é" significa uma parte da coisa, nas coisas compostas.» (Teodorico de Freiberg, O ente e a essência, Minerva Coimbra, 2003, pag 45; o negrito é colocado por mim).
Ora isto contradiz a seguinte passagem acima citada:
«E assim se pode dizer, acerca de "quididade" e daquilo que "o que" é, que "quididade" significa apenas a forma, mas "o que", mesmo nas coisas compostas, significa toda a essência da coisa, quer dizer, o agregado de matéria e de forma.»(ibid, pags 36-37; o negrito é colocado por mim).
Comparando estas dois pensamentos, deduzimos que, na interpretação de Teodorico, o ser e o quê-é (na sua terminologia: "o que") são uma e a mesma coisa já que «significam toda a essência da coisa». Isto é um equívoco, uma confusão entre existência (ser) e essência ("quê-é, "o que").
O prefaciador Mário Santiago de Carvalho, sem embargo dos seus altos méritos na difusão da filosofia medieval, não parece ter detectado o equívoco do dominicano alemão do século XIV, equívoco que se desmonta assim: se "o que" ou quid constitui toda a essência da coisa, isto é, o composto forma-matéria, como sustentou Teodorico, então a substância primeira ou ente individualizado - exemplo: este vaso azul de barro - em nada se distingue da sua espécie ou substância segunda - o conjunto dos vasos azuis de barro. Aristóteles apontou a matéria como princípio de individuação mas essa teoria está aqui ausente. Em Teodorico, a matéria, originariamente destituída de forma, está incluída no quid, o que constitui um desvio do pensamento aristotélico e uma confusão entre a forma, acidental ou essencial (quid) e a não forma (matéria-prima, hylé).
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Em uma passagem fundamental de "O Ser e o Tempo" Heidegger caracteriza assim a essência e a existentia do "ser aí" (Dasein), isto é, cada homem na sua singularidade:
«Desta caracterização do "ser aí" resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a". O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem que conceber-se partindo do seu ser (existentia). (...) este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo existentia: existentia quer dizer ontológicamente "ser diante dos olhos" , uma forma de ser que, por essência não convèm ao ente do carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em vez do termo "existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo de existencia como determinação do ser, para o "ser aí".
«A essência do "ser aí" está na sua existência. As características que se pode pôr em evidência neste ente não são, portanto, "peculiaridades" "diante dos olhos" de um ente "diante dos olhos" de tal ou qual "aspecto", mas sim modos de ser possíveis para ele em cada caso e só isto. Todo o "ser tal" de este ente é primariamente "ser". Daí que o termo "ser aí", com que designamos este ente não expresse o seu «quê é», como mesa, casa, árvore, mas o ser.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica).
Por conseguinte, existência, em Heidegger, significa não a realidade ôntica, visível e palpável, de cada ente mas antes o "ser", na sua dupla faceta de existir universal e essência/estrutura geral que atravessa os entes (o homem, o céu, o cavalo, a casa, etc).
Que significa o "ser relativamente a"? É o "ser" universal que podemos imaginar como o centro do círculo e a totalidade deste, isto é, os raios que emana até à circunferência cujos pontos (desta) seriam os entes (o "ser aí" ou homem, as árvores, os rios, as casas, etc).
A essência de cada ente foi extraída da existentia - ou existir universal e estrutura geral do "ser" - do mesmo modo que a figura da estátua (essência, quê é) foi extraída do bloco de mármore ("ser", existência transcendente e imanente à estátua). O mármore, que uso como imagem do "ser", transcende a estátua, é mais vasto que ela e, ao mesmo tempo, é imanente a ela. As leis da estrutura do mármore, a coesão entre as moléculas dos seus componentes ´físico-químicos, é o modo do "ser" relativamente à estátua.
Em vez de usar o termo existência, que confunde muitos dos seus leitores, Heidegger deveria ter usado in-sistência e dizer que «a essência do "ser aí" está na sua in-sistência», na interioridade do "ser" . A frase «a essência do homem está na sua existência» é interpretada, na filosofia de Sartre, de forma inversa à de Heidegger: como acidentalismo, construtivismo da essência, sempre incompleta, esboçada, através da acção objectiva. Para Sartre, a essência do homem não existe a priori, nasce da acção. Mas para Heidegger a essência do homem existe a priori, nasce, não da acção mas do "ser" transcendental e, obviamente, tempera-se e consolida-se na acção.
Por isso existencialismo, em Heidegger, é essencialismo. E em Sartre, é acidentalismo, libertismo.
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No "Ente e a Essência" Tomás de Aquino confundiu, em Deus, a essência com a existência, o theo ou Inteligência suprema, criadora ou não, com o tó on ou seja o ente, o ser :
«Há com efeito uma realidade, Deus, cuja essência é o seu próprio existir. Por esta razão, Por esta razão, há alguns filósofos dizem que Deus não tem quididade ou essência, uma vez que a sua essência se não diferencia do seu existir. Daqui se segue que ele não entra em nenhum género, porque tudo o que entra num género tem de ter quididade, além do seu existir, pois a quididade ou a natureza de um género ou de uma espécie compreende, enquanto que o existir se diversifica pelos vários indivíduos. Se dizermos que Deus é somente existir, não temos de cair no erro dos que afirmaram que Ele é esse universal pelo qual todas as coisas existem formalmente. De facto este existir que é Deus é de uma consideração tal que nenhuma adição lhe pode ser feita.»(Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag 92)
Segundo São Tomás, Deus é pura existência mas não é o ser mais comum, o universal de Aristóteles, um dos transcendentais. Se fosse o ser mais comum que penetra em todas as coisas, Deus perderia, em certa medida, o estatuto supremo que só o distanciamento, lá no Alto, Lhe dá. Dizer que a essência de Deus é a sua existência é confundir o quid ou tó ti (o quê é, a talidade, o definido) com o tó on (o que é, o ente, o existente indefinido). São Tomás cai neste paradoxo e tenta superar a ambiguidade de Deus não ter essência dizendo o seguinte:
«De modo semelhante, ainda que seja apenas existir, não devem faltar-lhe as restantes perfeições . » (Tomás de Aquino, Ibid, pag 93).
O raciocínio é paradoxal: Deus é apenas existir, mas ao mesmo tempo é omnipotência, bondade absoluta, sabedoria absoluta, justiça absoluta, beleza absoluta, misericórdia absoluta, etc. Portanto, Deus não é somente existir, possui uma essência que emerge da existência. Tomás de Aquino patina na neve da incoerência teórica.
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Xavier Zubiri colocou Hegel e Aristóteles em pólos opostos, atribuindo ao primeiro um «extremo idealismo» e ao segundo um realismo exprimível na definição lógica.
«El racionalismo y Hegel representan dos ideas de la esencia montadas sobre el concepto que tenemos de la cosa: la esencia sería la realidad del concepto de la cosa. Esta frase equivoca puede entenderse o bien del concepto formal (Hegel) o bien del concepto objetivo (racionalismo). En Aristóteles, en cambio, la esencia es un momento de la realidad, pero de la realidad en cuanto correlato físico de su definición. Desde el extremo idealismo hegeliano, pasando por el racionalismo, recaemos con Aristóteles en la realidad misma.» (Xavier Zubiri, Sobre la Esencia, Alianza Editorial, Fundación Xavier Zubiri, pag 94; o bold é nosso).
Neste texto, começa por não se perceber bem a diferença entre Hegel e o racionalismo, uma vez que Hegel era racionalista - a razão transumana é o motor, a criadora, o englobante de toda a realidade - e ademais sustentava a multiplicidade dos conceitos objectivos ou conceitos mergulhados na realidade material (árvores, rios, casas, animais não são senão conceitos objectivos enquanto corpos materiais).
Zubiri não entendeu integralmente Hegel. Este não é, de facto, um idealista extremo: Hegel é um ideo-realista. De facto, Hegel é pelo menos tão realista quanto Aristóteles: ambos admitem que a matéria é um ente em si, exterior às mentes humanas e independente destas. Hegel é até mais realista que Aristóteles pois não considera a existência da matéria-prima universal em potência, isto é, um imenso «reservatório» que não existe mas que está pronto a passar à existência ao ser-lhe aplicada a forma. Não dissocia absolutamente a matéria-prima da forma, como faz Aristóteles.
Para Hegel, há existência fora da realidade (entendida esta como adequação entre o facto sensível e a racionalidade histórico-social): as existências inferiores e imperfeitas. Ora essas existências possuem essências, ainda que estas estejam fora de contexto, desligadas do todo, fora do conceito racional que, a cada momento, constitui a bússola de navegação da barca da história universal (exemplos das sucessivas formas desse conceito da razão absoluta directora da história: cristianismo feudal na Europa medieval, humanismo no Renascimento, iluminismo na Europa do século XVIII, industrialismo e liberalismo na Europa do século XIX). Assim, por exemplo, a escravatura de camponeses ou mulheres, em áreas muito restritas de alguns países, hoje, é um facto existencial, uma existência, e possui essência (homens e mulheres atemorizados, reclusos, sujeitos à vontade despótica de outros) na terminologia hegeliana, mas não é real porque não corresponde ao conceito da ideia absoluta (Deus) no século XXI em que todos os homens são livres e iguais em direitos e a escravatura é algo de obsoleto e ultrapassado. Esta essência da escravatura no século XXI não é, na teoria de Hegel, a «realidade do conceito da coisa» como diz Zubiri, mas sim a irrealidade de um conceito.
«La noción del todo consiste en contener partes. Pero cuando se opone el todo tal cual es según su noción, es decir, cuando se le divide en partes, deja de ser el todo. Hay sin duda cosas que corresponden a esta relación, solamente que son por esto mismo existencias inferiores y imperfectas. Hay que recordar a este propósito que cuando en una explicación filosófica se trata de lo falso, no hay que entender la cosa como si lo falso no existiese. Un mal estado o un cuerpo enfermo pueden muy bien existir, pero estos objetos son falsos en cuanto su noción y su realidad no corresponden una a otra.» (George W.F. Hegel, Lógica II y III, Edições Folio, Barcelona, pag 43; o bold é nosso)
Portanto, ao contrário do que sustenta Zubiri, no sistema hegeliano nem toda a essência existente corresponde ao conceito da ideia.
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A distinção entre existência, por um lado, e essência (forma específica) e forma individualizada, por outro lado, está bem patente na Metafísica de Aristóteles: «o que é» e «o uno», isto é, o ser (existência), é o mais universal e divide-se em múltiplos géneros, cada uma das quais é um quê-é (essência).
« O uno não é algo diverso do que é. Ademais a substância (ousía) de cada coisa é una não acidentalmente, do mesmo modo que é também algo que é. Por conseguinte, há tantas espécies do que é quantas há do uno, e estudar o quê destas quero dizer, por exemplo, do mesmo, do semelhante e outras coisas deste tipo corresponde a uma ciência que genericamente é a mesma. (Aristóteles, Metafísica, livro IV, 1003b)
Aristóteles criticou Parménides por este usar o termo «ser» em um único sentido:
«A Parménides, podem-se levantar as mesmas objecções As suas premissas são falsas porque supõe que ser só se diz em sentido absoluto, sendo que tem muitos sentidos. ( ) Porque o ser do branco é distinto daquilo que o recebe, ainda que branco não exista separadamente, fora do que é branco; pois o branco e aquilo a que pertence não se distinguem por estar separados mas pelo seu ser. Isto é o que Parménides não viu.» (Aristóteles, Física, Livro I, 186a).
Branco e objecto branco por exemplo, lençol distinguem-se pelo seu ser, diz Aristóteles. Mas segundo Parménides, o ser de branco e de lençol branco é o mesmo tanto branco como lençol branco se encontram, enquanto qualidades ou coisas determinadas, enquanto formas, fora do ser que lhes subjaz. Se Aristóteles diz que a distinção se faz pelo ser é porque hierarquiza este em vários níveis por exemplo: o branco é o nível acidental, o lençol é o nível substancial - ou considera que a essência branco e a essência lençol são seres distintos e neste caso recusa conferir realidade ao «ser em geral» de Parménides, limitando-se ao ser determinado, isto é, ao ser agarrado à essência, indissociável desta e, portanto, múltiplo, porque muitas são as essências.
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