Na divisão estabelecida por John Rawls das teorias éticas encontramos: perfeccionismo, intuicionismo, hedonismo, eudemonismo, idealismo (kantiano), utilitarismo
Escreveu Rawls:
«A minha concepção do intuicionismo é algo mais ampla do que a que é corrente: interpreto-o como a doutrina que afirma que há um grupo irredutível de princípios primordiais que temos de comparar entre si, determinando, reflectidamente, o mais justo equilíbrio entre eles. Uma vez atingido um certo nível de generalidade, o intuicionismo defende que não há um critério construtivo de parâmetro superior para determinar a relevância adequada dos diversos princípios da justiça concorrentes.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pags 48-49; o negrito é colocado por nós)
«Há uma outra semelhança com o idealismo: a teoria da justiça como equidade reserva um lugar central para o valor da comunidade e o modo de o fazer depende da interpretação kantiana.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 213; o negrito é colocado por nós)
«As doutrinas teleológicas diferem, claramente, de acordo com a forma como a concepção do bem é especificada. Se ela for vista como a realização daquilo que no homem há de excelente através das várias formas de cultura, teremos o que se pode chamar de perfeccionismo. Esta noção encontra-se em Aristóteles e em Nietzschze, entre outros. Se o bem for definido como prazer, temos o hedonismo; se o for como felicidade, temos o eudemonismo, e assim sucessivamente. Na minha interpretação, o princípio da utilidade na sua forma clássica define o bem como a satisfação do desejo, ou melhor, a satisfação do desejo racional.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 43; o negrito é colocado por nós)
«Se, por exemplo, for defendido que, em si mesmas, as realizações dos gregos nos campos da filosofia, da ciência e da arte justificavam a velha prática da escravatura (partindo do princípio de que esta era necessária para que fossem alcançadas tais realizações) esta concepção será decerto altamente perfeccionista. As exigências da perfeição afastam as altas exigências da liberdade.» John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 255; o negrito é colocado por nós)
A superficialidade de Rawls é aqui patente: perfeccionismo é uma noção demasiado estreita. Acaso o marxismo não é um perfeccionismo colectivista? E o fascismo não é um perfeccionismo? Porquê citar apenas Aristóteles e Nietzschze como paradigmas do perfeccionismo? Certamente há éticas perfeccionistas e éticas não perfeccionistas mas Rawls não tem precisão na definição das primeiras e, obviamente, das segundas.
Além disso, o perfeccionismo não pode opor-se ao intuicionismo como espécies diferentes do género ético. Há um intuicionismo perfeccionista, como por exemplo, a moral de Sócrates e de Platão: o Bem é a perfeição suprema e a alma humana, mediante a filosofia, atinge esse bem por intuição inteligível, noética. A própria teoria da justiça como equidade de Rawls é um perfeccionismo, na medida em que preconiza um ideal de perfeição, a mesmo grau de liberdade extensivo a todos os homens, o que é manifestamente impossível, por utópico, na sociedade real, capitalista democrática, socialista burocrática/ «comunista» ou outra qualquer. Contudo, Rawls não parece designar a sua doutrina da justiça como equidade de perfeccionismo
HÁ PERFECCIONISMO INTUICIONISTA E PERFECCIONISMO ESTRITO?
A vagueza da definição de intuicionismo é uma característica do estudo de Rawls:
«Uma forma de distinguir as posições intuicionistas consiste na análise do nível de generalidade dos seus princípios. O intuicionismo do senso comum toma a forma de grupos de preceitos assaz específicos, cada um dos quais se aplica a um particular problema da justiça. Há um grupo de preceitos aplicável ao problema do salário justo, outro ao da tributação, outro ainda ao da sanção, e assim por diante. Por exemplo, para obter a noção de salário justo temos de avaliar diversos critérios concretos, como, por exemplo, os da capacidade, preparação, esforço, responsabilidade, bem como os simples acasos ligados ao trabalho; e temos ainda que ter em conta as necessidades objectivas de cada um». (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 49-50; o negrito é colocado por nós)
Porque se há-de chamar intuicionismo e não racionalismo a esta definição? E a ética de Aristóteles, que sonda a natureza psico-social dos homens e estabelece «grupos de preceitos assaz específicos», não deveria ser classificada como intuicionismo, segundo esta linha de pensamento de Rawls, em vez de ser designada de perfeccionismo?
Note-se aliás a névoa de confusão entre intuicionismo e perfeccionismo na seguinte passagem:
«Mas a maior felicidade dos menos afortunados não justifica, em geral, a redução das despesas exigidas para a preservação dos valores culturais. Estas manifestações de vida têm maior valor intrínseco do que os prazeres inferiores, por mais generalizados que estes sejam. Em condições normais um certo mínimo de recursos sociais deve ser posto de parte, a fim de ser consagrado aos objectivos do perfeccionismo. A única excepção ocorre quando estas exigências colidem com as relativas às necessidades básicas. Deste modo, dada a melhoria das circunstâncias, o princípio da perfeição adquire um peso relativo crescente face ao aumento da satisfação dos desejos. Nesta forma intuicionista, o perfeccionismo seria sem dúvida aceite por muitos. Ela permite uma certa gama de interpretações e parece expressar uma visão muito mais razoável do que a teoria perfeccionista estrita.»
«Antes de examinar as razões da rejeição do princípio da perfeição, vou analisar as relações entre os princípios da justiça e os dois tipos de teorias teleológicas, perfeccionismo e utilitarismo.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pag 43; o negrito é colocado por nós)
A distinção entre intuicionismo e perfeccionismo é nebulosa: Rawls admite no texto acima um perfeccionismo intuicionista, dando a este último termo um sentido de «social» ou «centrado nas necessidades básicas do povo». Mas intuicionismo é uma definição formal e nada tem de substancial como por exemplo «socialismo» ou «liberalismo». Designa apenas uma forma gnosiológica: a intuição, que pode ser empírica ou intelectual. Em que é que o intuicionismo, se o concebermos como mera forma ou «tinta» aplicada ao «vaso» substancial do perfeccionismo, desvirtua este? Nestes problemas de terminologia, que são, afinal, problemas conceptuais, naufraga a clareza de John Rawls, que não possui um pensamento autenticamente dialético
Por que razão o kantismo, que Rawls designa por idealismo, não é classificado como doutrina teleológica ( télos=fim, finalidade , em grego) se o imperativo categórico ou verdadeira lei moral se dirige às pessoas, universalmente consideradas como fins em si mesmas? E por que razão o kantismo não é classificado como um perfeccionismo?
A SUPOSTA INDEPENDÊNCIA DE RAWLS FACE ÀS MORAIS NATURALISTAS E NÃO NATURALISTAS
Rawls esforça-se por demonstrar que a sua moral não é naturalista nem supra-naturalista (concebida na metafísica divina ou na pura racionalidade anti naturalista, à maneira de Kant por exemplo).
«Os filósofos tentam normalmente justificar as teorias éticas por uma de duas formas. Por vezes, tentam encontrar princípios evidentes por si mesmos, a partir dos quais derivam um conjunto suficiente de critérios e de preceitos para explicar os nossos juízos ponderados. Podemos pensar numa justificação desta natureza como sendo cartesiana. Ela presume que os primeiros princípios podem ser vistos como sendo verdadeiros, ou mesmo como necessariamente verdadeiros; o raciocínio dedutivo transfere depois esta convicção das premissas para a conclusão. Uma segunda abordagem (designada naturalista por abuso da linguagem) consiste em introduzir definições de conceitos morais em termos de conceitos presumivelmente não morais, para depois demonstrar através de processos aceites, relevando do senso comum e das ciências, que os enunciados associados aos juízos morais defendidos são verdadeiros. Embora nesta concepção os primeiros princípios da ética não sejam evidentes em si mesmos, a justificação das convicções morais não coloca dificuldades especiais. Estes princípios podem ser estabelecidos, sendo dadas as definições, da mesma forma que outros enunciados sobre o mundo.
«Não adoptei qualquer destas concepções da justificação. Embora certos princípios morais pareçam naturais, verdadeiros, e até óbvios, há grandes obstáculos à afirmação de que eles são necessariamente verdadeiros, e até na explicação do significado desta afirmação. Na verdade, defendi que estes princípios são contingentes, no sentido em que são escolhidos na posição original à luz de factos gerais.» (John Rawls, Uma Teoria da Justiça, pags 434-435)
Aquilo que Rawls teoriza, isto é o liberalismo social, um híbrido de liberalismo (predomínio das empresas privadas na economia de mercado) e social-democracia (redistribuição a favor dos mais pobres, na economia de mercado, mediante impostos sobre os ricos, em especial o imposto de consumo) é naturalismo sociológico: as leis e normas sociais são estabelecidas por cidadãos livres, cada um coberto pelo «véu da ignorância» acerca das diferenças de riqueza, de talento laboral, empresarial, artístico, político, etc, mas são estabelecidas num contexto histórico ideal e geram uma dada formação histórico-social a partir de princípios, ao menos em parte, empiricamente definidos, isto é, extraídos da natureza humana social.
A moral de Rawls é um híbrido de naturalismo e não naturalismo, com predominância do primeiro.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
É possível distinguir claramente eudemonismo (do grego eudaimonismós, felicidade) de hedonismo (hedoné, em grego, prazer)?
Pedro Madeira, no seu prefácio ao Utilitarismo de John Stuart Mill, uma edição da Gradiva, supõe possível essa distinção nos seguintes moldes(o negrito é nosso):
«O hedonismo afirma que certas experiências mentais são boas e certas experiências mentais são más; mas por que razão pensar que são as experiências mentais que são boas ou más? Os exemplos precedentes parecem mostrar o contrário. A melhor coisa a fazer, para um utilitarista, é simplesmente abandonar o hedonismo e adoptar uma versão de eudemonismo. O eudemonismo é a posição, de inspiração aristotélica, de que o bom é a felicidade. De acordo com o eudemonismo ser feliz não é ter experiências mentais prazenteiras, mas sim ter uma vida boa. Se todos os nossos amigos falassem mal de nós, mas agissem como nossos amigos na nossa presença, então, de acordo com o eudemonismo, talvez pudéssemos ter experiências mentais prazenteiras decorrentes de os tomarmos como amigos, mas não seríamos verdadeiramente felizes.» (Pedro Madeira in prefácio de Utilitarismo, de John Stuart Mill, Gradiva, Lisboa, 2005, pag. 22; o destaque ).
Considero confuso este texto. O que é a felicidade? Um estado de prazer ou uma sucessão de estados de prazer (mental, emocional, físico). A felicidade é o prazer espiritualizado, sentido e depois rememorado.
Separar a felicidade do prazer é impossível, tal como é impossível separar a luz da cor.
O prazer - intelectual da contemplação, sentimental da família e amigos, vital da saúde plena e sensorial do momento- é a determinação essencial da felicidade. O exemplo dado por Pedro Madeira, para tentar distinguir hedonismo (doutrina que assimila o prazer ao bem, e tem, o que Madeira não diz, duas modalidades: epicurista e cirenaísta) de eudemonismo (doutrina que considera a felicidade a contemplação e a filosofia desprendida de interesses materiais; à letra: a prevalência do bom génio interior ou daimon), consistindo na atitude dúplice dos amigos que falam mal de nós nas costas e nos agradam ou nos favorecem diante de nós, é nebuloso: por que razão não poderíamos ser felizes enquanto acreditássemos na bondade aparente de amigos que, por detrás, diziam mal de nós?
Não parece possível, pois, extrair o eudemonismo do ovo do hedonismo a que pertence, como gema. De facto, hedonismo é género e eudemonismo uma sua espécie: o eudemonismo de Aristóteles, expresso no "Ética a Nicómano", coincide praticamente com o hedonismo dos prazeres superiores ( intelecto, amizade intelectual, desprezo das paixões corporais intensas) teorizado por Epicuro e ambos se opõem ao hedonismo dos prazeres inferiores (sensualidade gastronómica, sexual, etc) postulado por Aristipo de Cirene. Hedonismo e eudemonismo não são, globalmente falando, conceitos absolutamente extrínsecos, correntes independentes entre si, como supõem Pedro Madeira e outros estudiosos da ética. Aliás, ao contrário do que propõe o texto acima, um utilitarista nunca pode abandonar o hedonismo porque utilitarismo é, em si mesmo, um hedonismo não egocêntrico.
Pedro Madeira sustenta ainda que só se transitarmos do hedonismo ao eudemonismo podemos hierarquizar consistentemente os prazeres em superiores e inferiores (no texto o negrito é posto por nós):
«Como vimos, Mill defende que certos tipos de prazeres são superiores a outros. Há quem objecte que isso é inconsistente com o hedonismo. Se uma pessoa sente tanto prazer a jogar xadrez como outra a ver televisão, então por que razão pensar que o prazer de jogar xadrez é superior ao prazer de ver televisão?»
«Essa é uma boa objecção, e não é claro como poderia Mill responder-lhe. No entanto, a objecção desaparece se abandonarmos o hedonismo e adoptarmos o eudemonismo. Uma das ideias implícitas no eudemonismo é que podemos estar enganados acerca daquilo que seria uma vida boa para nós. Uma pessoa poderia pensar que o objectivo supremo da sua vida era construir réplicas da Torre Eifel em palitos, e tal actividade poderia até dar-lhe muito prazer; mas um eudemonista típico defenderia que essa pessoa não teria uma vida boa. Por isso, a distinção entre prazeres superiores e inferiores não é, certamente, inconsistente com o eudemonismo.» (Pedro Madeira, in prefácio a Utilitarismo, pags 22 -23).
Neste texto, Pedro Madeira esforça-se por distinguir - quanto a nós de forma confusa e não conseguida - o hedonista do eudemonista. Este levantaria dúvidas ao prazer como fonte de uma vida boa. Mas quem não levanta essas dúvidas? É o hedonista superior menos reflexivo do que o eudemonista? Que se saiba, o hedonismo hierarquiza os prazeres em superiores e inferiores. Por exemplo, o epicurismo, um hedonismo superior, considerava os prazeres da amizade e da filosofia superior aos prazeres da comida e da bebida e da luxúria.
Por que razão um eudemonista típico acharia que construir réplicas da Torre Eifel em palitos não faria feliz um artesão? Pedro Madeira, cujo raciocínio é um modelo do labiríntico "pensar analítico" em voga, sem arquitectónica holística, não no-lo explica racionalmente. Mistério... Sustentamos que, pelo contrário, um artesão que soubesse que as múltiplas torres Eifel que construía para venda ao público, além de o recompensarem monetariamente, ajudavam, com uma fracção do lucro cedida á UNICEF, a matar a fome de milhares de crianças desnutridas em África, teria uma vida boa, sentir-se-ia feliz. E um filósofo eudemonista pode ocupar-se a construir uma torre Eifel de palitos e sentir-se feliz com a sua obra do mesmo modo que Heidegger se sentiu feliz ao construir a sua cabana de madeira numa floresta alemã...Um eudemonista típico subscreveria, decerto, a nossa posição.
Podem distinguir-se entre si eudemonismo e hedonismo? Podem, na medida em que se distingue eudemonismo, que é o hedonismo filosófico e ascético-religioso, da modalidade cirenaísta ou sensualista do hedonismo.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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