John Locke combateu a ideia de substância - coisa estável, que subsiste por si mesma, como por exemplo, um cavalo - e de acidente - qualidade algo "volátil" ou fortuita que se insere na substância, no caso anterior, a cor negra do cavalo, o tamanho das crinas, a altura exacta. David Hume adoptaria a mesma posição anti aristotélica.
«17. Se se pergunta (como é habitual) se este espaço destituído de corpo é uma substância ou um acidente, responderei prontamente que o ignoro, e não me envergonho da minha ignorãncia, até que os fizeram a pergunta não me proporcionarem uma ideia clara e distinta da substância.» (John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, volume I, pag 217, Fundação Calouste Gulbenkian).
Locke advoga a teoria do espaço insubstancial, extensão sem quaisquer corpos materiais.
«É certo que nem a solidez pode existir sem a extensão, nem a cor escarlate sem a extensão, mas isso não impede que sejam ideias distintas. Há muitas ideias que requerem outras como necessárias para a sua existência ou concepção, mas que, no entanto, são ideias muito distintas. O movimento não pode ser, nem pode conceber-se sem o espaço, e, no entanto, o movimento não é o espaço, nem o espaço é o movimento, pois o espaço pode existir sem ele: trata-se de ideias muito distintas. (...)» (Locke, ibid, pag 214).
«12. Primeiro: a extensão não inclui a solidez nem resistência ao movimento de um corpo, como acontece com o corpo.
« 13 . Segundo: as partes do espaço puro são inseparáveis umas das outras, de tal modo que a continuidade não pode ser interrompida, nem real nem mentalmente. (Locke, ibid, pag 215)»
«...podemos conceber tão facilmente o espaço sem solidez como podemos conceber o corpo ou o espaço sem o movimento, ainda que seja muito duvidoso que o corpo e o movimento possam existir sem espaço. Mas quer se considere o espaço somente como uma relação da existência de outros seres situados à distância, quer se pense que devem entender-se literalmente estas palavras do mui sábio rei Salomão. "Porque se o céu e o céu dos céus não te podem conter" (III Reis VIII, 27) ou aquelas mais enfáticas do inspirado filósofo S.Paulo: "nele vivemos e nos movemos, e existimos" (Actos XVII, 28) é assunto que deixo à consideração de cada um». (Locke, ibid, pag 225; o negrito é posto por mim).
Ao duvidar que o espaço seja substância, isto é, algo em si mesmo que serve de suporte para outras entidades, Locke abre uma porta para abandonar a concepção realista do mundo, segundo a qual o espaço e o tempo são realidades em si exteriores, em geral, às mentes humanas.
No entanto, questione-se Locke: como podem dois entes estar à distância um do outro sem haver espaço e este ser apenas uma relação? Não é a distância um pedaço de extensão?
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No seu «Tratado da Natureza Humana», David Hume revela a sua agudeza dialéctica ao escrever:
«As ideias de espaço e de tempo não são portanto ideias separadas ou distintas; são unicamente as ideias da maneira ou ordem na qual os objectos existem; ou, por outras palavras, é impossível conceber um vácuo ou uma extensão sem matéria, ou um tempo em que não haja sucessão ou mudança em qualquer existência real. »(David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 72, Fundação Calouste Gulbenkian; a letra negrito é colocada por mim).
Isto distingue-se da concepção abstracionista de Kant que concebe um espaço a priori sem nada de objectos empíricos e um tempo a priori sem existências reais e objectos. A lei do uno, pedra angular da dialéctica, postula que tudo se relaciona e não é possivel separar hermeticamente as dimensões da realidade, e os seus objectos, umas das outras. No espaço há sempre a componente tempo e no tempo há sempre a componente espacial.
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No importante diálogo «Timeu» Platão expõe a sua tese sobre o espaço vazio («Chora») da seguinte maneira:
« Há primeiro a forma imutável que não nasceu e que não perecerá, que não recebe nela, nada de estranho (...) Há uma segunda espécie, que tem o mesmo nome que a primeira e é semelhante à primeira mas sensível; que é gerada, sempre em movimento, que nasce num lugar determinado para depois o abandonar e perecer, e que é acessível à opinião acompanhada de sensação. Enfim, há sempre uma terceira espécie, a do lugar (chora), que não admite destruição e que fornece um lugar a todos os objectos que nascem. Só é perceptível através de um raciocínio bastardo, onde a percepção não entra; dificilmente podemos acreditar nela. Entrevemo-la como num sonho, dizendo que é necessário que tudo aquilo que é esteja num lugar determinado, ocupe um certo sítio, e que aquilo que não está nem sobre a terra nem em algum lugar debaixo do céu não é nada.» (Platão, Timeu, Publicações Europa-América, pag 277).
Platão fala, pois, de três níveis: o da forma imutável ou arquétipo, situada acima do céu visível, no hiperurânio; o das formas mutáveis e corruptíveis, porque imersas na matéria em devir, no mundo terrestre; o do espaço, como imenso lugar vazio, receptáculo das formas e da matéria caótica. Omite aqui um nível que refere noutros textos: o dos astros incorruptíveis em movimento eterno tecendo o tempo, que constitui o Mundo do Semelhante.
Aristóteles acusa, injustamente, em certa medida, Platão de confundir o espaço com a matéria:
«Daí que Platão diga no Timeu que a matéria e o espaço são o mesmo, pois que o participável (metaléptikon) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de maneira diferente nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer o que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209 a; a letra negrita é posta por mim).
Há algo de aparentemente incompreensível neste texto: a afirmação de que Platão identificou o lugar com o espaço. Mas então o lugar não é uma porção de espaço? Parece que não, na concepção aristotélica.
Platão identificou de facto o espaço puro com uma espécie invisível, extensa e passiva, que traduz a hylé ou matéria-prima de Aristóteles. Não identificou, no entanto, este espaço puro ou mãe de todas as coisas ou receptáculo vazio universal com água, terra, fogo ou ar ou alguma matéria qualitativamente determinada. Escreveu:
«O mesmo se passa com aquilo que deve receber, frequentemente, em boas condições e em toda a sua extensão, as imagens de todos os seres eternos: convém que seja, por natureza, alheia a todas as formas. É por isso que não se deve dizer que a mãe e o receptáculo de tudo o que nasceu visível ou sensível de uma maneira ou doutra é a terra,ou o ar, ou o fogo, ou a água, ou alguma das coisas que delas se formaram ou que lhes deram orgem. Mas se dissermos que é uma espécie invisível e sem forma que recebe tudo, e que participa do inteligível de uma maneira bastante obscura e muito difícil de compreender, não mentiremos. (...) A parte dela que está em ignição parece ser fogo, a parte liquefeita água, e terra e ar na medida em que recebe imagens destes elementos.» ( Platão, Timeu, Diálogos, PEA, Pag. 276)
Eis como Aristóteles dissocia lugar de espaço abstracto ou vazio:
«Ora bem, se o lugar não é nenhuma de estas três coisas, quer dizer, nem a forma, nem a matéria, nem uma extensão que esteja sempre presente e seja diferente da extensão da coisa deslocada, o lugar terá que ser então a última das quatro, a saber: o limite do corpo continente que está em contacto com o corpo contido. (...)»
«O lugar, ao contrário, quer ser imóvel, por isso o lugar é mais precisamente o rio total, porque como totalidade é imóvel. Por conseguinte, o lugar de uma coisa é o primeiro limite imóvel de o que a contém.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 212 a; a letra negrita é posta por mim).
Lugar, é, pois, para Aristóteles um corpo estar contido noutro (exemplo: a planície é um lugar que contêm os sobreiros). Não é o mesmo que espaço (chora) ou extensão que está sempre presente e que transcende a extensão do movimento dos corpos e da presença deste.
Platão não usa o termo hylé, segundo Ivan Gobry, termo que é usado frequentemente por Aristóteles e designa a matéria-prima, indiferenciada, fonte monoelementar de todos os objectos. Na verdade, uma árvore, uma rocha, a água de um rio ou o fogo são feitos da mesma matéria-prima universal que é moldada pelas formas madeira, pedra, água e fogo.
Ora qual é a diferença entre a chora de Platão e a hyle de Aristóteles? Aparentemente, a chora é um lugar, é tridimensional - possui comprimento, largura e altura indeterminados - ao passo que a hylé não é um lugar, não ocupa lugar e não é senão uma "massa" informe que não existe mas, de algum modo, é. Aristóteles retirou a extensão à chora de Platão mas conservou-lhe o carácter de matéria sem forma, moldável, receptáculo universal das formas. Ao desespacializar a matéria-prima, Aristóteles abriu caminho à metafísica cristã da criação do mundo a partir do Nada ("ex nihil"), ainda que no Estagirita as formas não estejam no seio de Deus mas sejam eternamente subsistentes ao lado da hylé, plástica e moldável.
A teologia cristã foi, por conseguinte, inspirar-se em Aristóteles e em Plotino - para este, as essências das coisas repousam, como modelos exemplares, no seio da mente divina, ao passo que Platão separava Deus das Ideias eternas e autosubsistentes - para construir o seu sistema.
Com a diferença de que o espaço segundo Kant é subjectivo ou intersubjectivo e em Platão não, Kant equipara-se a Platão na maneira de conceber o espaço: é uma estrutura formal, vazia, destituída de matéria, feita de figuras geométricas. É evidente que Platão não refere a essência do espaço como infinitas figuras geométricas mas como o receptáculo dessas formas porque os modelos destas estão no mundo inteligível, suprafísico. Mas o espaço, apesar do seu vazio formal, não é o nada: é o recipiente eterno que faz frente ao inteligível. www.filosofar.blogs.sapo.pt
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Na «Estética» Hegel desenvolve pensamentos de grande profundidade sobre a relação íntima do espaço com a pintura e a escultura, por um lado, e sobre a relação íntima do tempo com a música, por outro lado.
«As figuras da escultura e da pintura estão justapostas no espaço e formam por essa justaposição uma totalidade real ou aparente. Mas a música não pode produzir sons senão provocando um movimento vibratório em corpos dispostos no espaço. Essas vibrações só dizem respeito à música pela sua sucessão, de maneira que os corpos sensíveis participam da música, não pela sua forma espacial, mas pelos seus movimentos no tempo e pela duração desses movimentos. Ora todo o movimento de um corpo se efectua no espaço, de modo que as figuras da escultura e da pintura, mesmo estando aparentemente em estado de repouso, conservam o direito de representar o movimento; porém, a música não utiliza esta espacialidade para exprimir o movimento, mas serve-se para as suas produções unicamente do tempo durante o qual se efectuam as vibrações de um corpo.
Mas o tempo, como vimos já, não é como o espaço, um lado a lado positivo; é, pelo contrário, uma exterioridade negativa; como supressão do lado a lado, da esquerda e da direita, é punctiforme e, como actividade negativa, é a supressão de tal ponto no tempo e a sua substituição por um outro, que por sua vez é suprimido, para dar lugar a um outro ainda, e assim seguidamente. Na sucessão destes momentos do tempo, cada som particular deixa-se fixar em parte como uma unidade, mas pode também ser posto em relações quantitativas com outros momentos, o que torna o tempo numerável. Por outro lado, no entanto, como o tempo representa o aparecimento e a desaparição ininterrupta destes momentos que, tomados como simples momentos, são abstracções não particularizadas, não diferindo umas das outras, o tempo surge também como uma sequência regular e uma duração indiferenciada.» (Hegel, Estética, Pintura e Música, Guimarães Editores, pags 220-221; o bold é nosso)
Entre as muitas reflexões profundas do grande Hegel, note-se a do tempo punctiforme: o tempo pode representar-se por um único ponto, cujo conteúdo vai, presumivelmente, mudando a cada fracção de segundo, ao passo que o espaço se representa por linhas, figuras, volumes. Assim, o tempo parece ser a dimensão oculta da realidade que percebemos visualmente.
De salientar a noção do tempo como o suprimir do lado a lado, da relação direita-esquerda. E o facto de, ao contrário de São Tomás de Aquino que define o tempo como o número do movimento - concepção de certo modo irrealista, matemática do tempo, como se a essência deste fosse a numeração Hegel afirma a autonomia do tempo face à numeração, o que significa que a essência do tempo não é número, mas sucessão e duração.
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