O exame nacional de filosofia, prova 714 /1ª fase, de 15 de Junho de 2016, apresenta inconsistências na formulação das questões de escolha múltipla, que pedem selecionar uma só «resposta correta» de entre quatro hipóteses, a exemplo de outros anos. Vejamos alguns exemplos extraídos da versão 1 da prova.
GRUPO I
5. Considere as frases seguintes.
1. O italiano é a língua oficial da Itália.
2. Todos os sólidos ocupam espaço.
É correcto afirmar que:
(A) ambas exprimem conhecimento a priori.
(B) ambas exprimem conhecimento a posteriori.
(C) 1 exprime conhecimento a priori, 2 exprime conhecimento a posteriori.
(D) 1 exprime conhecimento a posteriori, 2 exprime conhecimento a priori.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta D a única correta.
Crítica: Não há resposta absolutamente objectiva e única a esta questão. É erróneo dizer que só uma destas hipóteses é correta e as outras erradas. Um empirista puro, como David Hume, dirá que todo o conhecimento é a posteriori e subscreveria como certa a hipótese B: na verdade, saber o que é a Itália implica um conhecimento proveniente da experiência, isto é a posteriori, exige ver o mapa do país com a forma de bota e ver imagens de Roma, Florença, Veneza, etc. E o facto de o italiano ser a língua da Itália é extraído da experiência porque, por hipótese, poderia ser a língua latim ou a língua inglesa o idioma oficial da Itália. De igual modo, um tal empirista puro diria que só pela observação a posteriori de cubos, esferas e outros sólidos se conclui que estes ocupam espaço.
Um empiro inatista - ou empiro-racionalista - como Kant diria que a hipótese D é a correcta: um juízo que fala da Itália, país que é um fenómeno, um objecto empírico, é a posteriori mas um juízo de geometria pura como «todos os sólidos ocupam espaço» é a priori, formado pelo entendimento puro sem recurso às sensações, ao ver ou tocar esferas ou cubos físicos, palpáveis, recorrendo apenas à intuição pura de espaço e de figuras geométricas. Os autores do exame considera, correta esta última resposta D
Vejamos outra questão.
6. Suponha que um vendedor incentiva um cliente a comprar um telemóvel nos seguintes termos.
«Eu, no seu caso, comprava este telemóvel. Pode parecer um pouco caro, mas os seus colegas vão de certeza ficar cheio de inveja, pois este modelo não está ao alcance de qualquer um e é o escolhido por pessoas que já têm um certo estatuto. Assim, até vai atender as chamadas dos seus amigos com mais gosto».
Este discurso é uma tentativa de
(A) persuasão racional, pois são apresentadas razões que permitem uma avaliação objetiva do produto.
(B) persuasão por meio de manipulação, pois pretende-se convencer apelando unicamente às emoções.
(C) persuasão racional, pois os factos apresentados nas premissas são evidentes e todos os reconhecem.
(D) persuasão por meio de manipulação, pois incentiva as pessoas a consumirem bens dispensáveis.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta
Crítica: Há duas respostas corretas e não apenas uma como pretendem os autores do exame: a B e a D. Há, decerto, manipulação por via das emoções (vaidade, inveja) no texto do vendedor acima mas há igualmente um incentivo a consumir um bem dispensável, um telemóvel caro.
Passemos a outra questão.
7. Os relativistas acerca dos valores defendem que:
(A) a correção dos juízos de valor depende da cultura e, assim, o que é correto numa cultura pode não o ser noutra.
(B) todos os valores são relativos e, por isso, nenhum juízo de valor é correto ou incorreto.
(C) nenhuma cultura tem valores coincidentes com os valores de outra cultura.
(D) a correção dos juízos de valor depende inteiramente do que é aprovado nas sociedades mais evoluídas
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta.
Crítica: há duas respostas corretas, A e B, ainda que a A seja mais perfeita que a B. Esta última exprime a posição de uma parte dos relativistas, aquela que desemboca no ceticismo, no nivelamento igualitário de todas as culturas.
O que é o relativismo? É a doutrina que diz que a verdade, os valores variam de época a época, povo a povo, cultura a cultura, classe a classe social, etc. E é só isto. A alínea A da versão 1 (a correção dos juízos de valor depende da cultura e assim o que é correto numa cultura pode não o ser noutra) é a definição correcta de relativismo.
A alínea B (todos os valores são relativos e por isso nenhum juízo de valor é correto ou incorreto) mistura duas definições: relativismo e ceticismo.
Se eu digo «No mundo há democracias liberais, fascismos, ditaduras comunistas, os regimes políticos são relativos, mas eu acho que o melhor é a democracia» estou a ser relativista sem ceticismo, com dogmatismo, estou a diferenciar. A igreja católica romana que há séculos era absolutista («ninguém se salva fora da igreja de Roma») evoluiu para um relativismo diferencial, não cético; «Pode haver salvação no budismo ou no hinduísmo, as crenças em Deus são relativas às áreas geográficas, povos, etc., mas a melhor religião é a de Nosso Senhor Jesus Cristo centrada no Vaticano, nem todas valem o mesmo».
Ora este relativismo diferencial só está implícito na alínea A da versão 1, mas é negado pela alínea B.
Consideremos outra questão.
10. Kuhn considera que há períodos de consenso e períodos de divergência na comunidade científica. O fim de um período de consenso e a consequente entrada num período de divergência devem-se
(A) ao aprofundamento do paradigma.
(B) à acumulação de anomalias.
(C) à resolução de enigmas.
(D) à atitude crítica própria da ciência normal.
Nota: A Grelha de correção oficial diz ser a resposta B a única correta
Crítica: há duas respostas corretas, A e B, e não apenas uma, a B. Não é só a acumulação de anomalias o motor da mudança de paradigmas. O aprofundamento do paradigma - surgimento de novas ideias que completam e desenvolvem o paradigma vigente - é outra fonte da revolução científica e abre, quase sempre, um período de divergências entre os cientistas. A teoria da relatividade de Einstein não comporta, originalmente, a noção de matéria escura (buracos negros como portas de um multiverso) mas discípulos de Einstein como Roger Penrose e Stephen Hawking aprofundaram o paradigma, acrescentando-lhe o conceito de matéria negra. Há aqui acumulação de anomalias? Mas este aprofundamento do paradigma instalou a divergência no seio dos astro físicos: por exemplo, Alan Grants e Ted Woods, materialistas dialéticos, não aceitam que a relatividade einsteiniana implique o multiverso.
O MÉTODO DA DÚVIDA NÃO É MÉTODO CRÍTICO? PORQUÊ DIFERENCIÁ~LOS?
Na questão 2 do grupo IV, diz o seguinte:
Tanto Descartes como Popper consideram que a submissão das nossas crenças ou opiniões a um severo exame crítico é um aspecto central do método de procura da verdade. Porém, Descartes e Popper divergem quanto aos resultados da aplicação desses métodos.
Justifique as afirmações anteriores.
Na sua resposta explicite os aspectos relevantes do método defendido por Descartes e do método defendido por Popper.
A correção oficial desta prova diz o seguinte:
«Descartes recomenda o método da dúvida para procurar a verdade....
«Popper recomenda o método crítico para procurar a verdade...
Crítica minha: Esta nomenclatura é confusa. Então o método crítico de Popper não é um método da dúvida? Claro que é...A crítica pressupõe a dúvida e o dogma que sobrevive às dúvidas. E o método de Descartes não é um método crítico já que pressupõe a dúvida metódica e afirma dogmas como «Eu penso, logo existo», «Se em vez de um Deus verdadeiro existisse um génio maligno que me enganasse em tudo, eu não conheceria que o mundo é verdadeiro e de que modo o é» ? É óbvio que é...
Os autores desta prova de exame carecem de um verdadeiro pensamento de síntese, padecem de racionalidade fragmentária, isto é, de «ver a árvore e não ver a floresta». Estranho é que se repitam sempre os mesmos erros na concepção da prova de exame nacional de filosofia, erros que temos denunciado aqui em anos sucessivos.
Doutoramentos e mestrados em filosofia não dão garantias de pensamento correcto e criador. A docência universitária em filosofia, pública ou privada, está dominada por pequenos pensadores inflacionados socialmente pela retórica e a burocracia que confere títulos. A universidade é uma instituição de massas, onde o erro e uma certa mediocridade se infiltram, não é a cúpula do pensamento mais elevado.
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