O Exame Final Nacional de Filosofia, do 11º ano de escolaridade em Portugal, Prova 714, 2ª fase, de 4 de Setembro de 2020, enferma de diversos erros. É lamentável que o ministério da Educação mantenha, de ano a ano, na autoria desta prova o mesmo professor ou grupo de professores da linha da filosofia analítica, isto é, de um pensamento fragmentário e desconexo que ignora hierarquizar, dialeticamente, os conceitos. Estamos na mão de incompetentes que deviam ter a humildade de dar o lugar a quem pensa melhor que eles e sabe elaborar provas de exame nacional isentas de erros teóricos. Vejamos algumas das questões de escolha múltipla («só uma resposta correcta de entre quatro» ) mal construídas desta prova de exame na versão 1.
6) De acordo com Hume as nossas expectativas acerca das realidades futuras devem-se:
(A) Ao intelecto, ou razão.
(B) ao hábito ou costume.
(C) à uniformidade da natureza.
(D) à ideia inata de causalidade.
Crítica: Há três respostas correctas e não apenas uma, a B, como pretendem os critérios de correção oficial. Na verdade, não é apenas o hábito que nos leva a formular a crença na sucessão de causas e efeitos - o hábito apenas fornece o dado empírico - mas também a ideia inata de causa-efeito, uma das sete relações filosóficas que Hume admite serem a priori, inatas, na mente humana. David Hume escreveu: «Há sete espécies de diferentes de relação filosófica: semelhança, identidade, relações de tempo e lugar, proporção de quantidade ou número, graus de qualidade, contrariedade e causação. Podem dividir-se estas relações em duas classes:as que dependem inteiramente das ideias que comparamos entre si e as que podem variar sem qualquer mudança de ideias. (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 103, Fundação Calouste Gulbenkian). Por conseguinte, as expectativas sobre o futuro não poderiam surgir se não houvesse em nós a causação ou ideia inata de causalidade (hipótese D) gerada no intelecto (hipótese A).
7. Selecione a opção que diz respeito ao problema da definição da arte.
(A) Uma instalação feita de lixo é uma obra de arte apenas por ser exposta numa galeria ou num museu?
(B) Será que a arte deve ter compromissos morais e educativos?
(C) Será que sem a arte a vida se tornaria desinteressante?
(D) A intenção do criador ou do artista é relevante para compreender o significado de uma dada obra de arte?
Crítica: Ainda que pareça óbvio que a hipótese A remete directamente para a definição de obra de arte, não é possível ignorar que as hipóteses D - a intenção do artista ser levada em conta para definir obra de arte - e B - a arte deve ou não educar e veicular ética - dizem respeito ao problema da definição de arte. Há pois três respostas correctas, A, B e D e não apenas uma.
8) Se um dado objecto não for considerado uma obra de arte com o argumento de ser impessoal e não comover, a teoria da arte implicitamente admitida como correcta é a teoria
(A) formalista.
(B) expressivista.
(C) institucional.
(D) histórica.
Crítica: a questão está claramente mal construída. Não há uma única mas pelo menos duas definições diferentes de teoria formalista na arte. Se por teoria formalista se entende a teoria de Clive Bell da forma significante (1881-1964) então esta é uma teoria expressivista - «O ponto de partida de todos os sistemas de estética tem de ser a experiência pessoal de uma emoção peculiar. Aos objectos que provocam esta emoção chamamos "obras de arte". (Clive Bell, "A Hipótese Estética" , in Carmo d´Orey, O que é a arte? A perspectiva analítica, Dinalivro, 2007, p.29). Por conseguinte, não se pode pôr em alternativa expressivismo (B) e formalismo de Clive Bell (A) uma vez que esta última é uma teoria expressivista, identifica a obra de arte como objecto que expressa emoções. Formalismo em arte pictórica tem ainda outro significado: teoria que dá a preponderância às linhas rectas e às figuras geométricas sobre a cor nas pinturas, ou seja, a preponderância do esqueleto-forma sobre a «carne»/cor e a textura-conteúdo.
É ridículo colocar ainda as hipóteses teoria institucional e teoria histórica porque intersectam-se com formalismo e com expressivismo: haverá momentos da história em que a teoria formalista (qual: a de Clive Bel? Ou a da geometria sagrada hermetista?) se torna teoria institucional. É uma questão elaborada por quem não percebe nada de filosofia.
NOTA: COMPRA O NOSSO «DICIONÁRIO DE FILOSOFIA E ONTOLOGIA», inovador em relação a todos os outros dicionários, repleto de transcrições literais de textos dos filósofos. Aproveita, a edição está a esgotar-se. Contém 520 páginas, custa só 20 euros (portes de correio para Portugal incluídos), Só custa 5 euros em e-book. Basta depositares na conta PT50 abaixo indicada e informar-nos. CONTACTA-NOS.
This blog requires thousands of hours of research and reflection and produces knowledge that you won't find anywhere else on the internet. In order for us to continue producing it please make a donation to our bank account with the IBAN PT50 0269 0178 0020 4264 5789 0
© (Copyright to Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O exame Nacional de Filosofia em Portugal, Prova 714, 2ª Fase, realizado em 22 de Julho de 2019, está mal elaborado em boa parte das suas questões. É caso para dizer: quanto mais lógica proposicional, menos reflexão profunda, menos inteligência filosófica. Vejamos exemplos da versão 1 desta prova de exame que obriga a escolher apenas uma resposta entre quatro possíveis no grupo I:
1. As frases «António Costa era primeiro-ministro de Portugal em 2018» e «Em 2018, Portugal tinha como primeiro-ministro António Costa»
(A) representam duas proposições verdadeiras.
(B) representam a mesma proposição.
(C) não representam qualquer proposição.
(D) representam duas proposições válidas.
Segundo os critérios oficiais de correção a resposta certa seria B.
Crítica nossa: as frases são duas proposições diferentes - a primeira tem A.Costa como sujeito, a segunda tem Portugal como sujeito - que representam o mesmo juízo. A proposição é a forma discursiva do juízo. Por isso a resposta certa seria A.
2. Se houver juízos morais objetivos, então
(A) as sociedades que tiverem valores diferentes dos nossos devem corrigir tais valores.
(B) a correção, ou a incorreção, desses juízos não pode ser discutida.
(C) esses juízos estão certos ou errados independentemente dos costumes.
(D) as pessoas que tiverem valores diferentes dos nossos pensam e agem erradamente.
A correção oficial indica como certa a hipótese C.
Crítica: O conceito de juízo moral objectivo tem vários sentidos. Ora a pergunta é subjectiva, não indica qual desses sentidos se refere. Sentido sociológico: é um juízo consensual dentro de uma dada sociedade ou época mas não universal. Exemplo: no Islão, o juízo «a mulher que exibe certas partes do corpo nuas ofende a Alah e deve ser punida». Sentido epistémico: é um juízo universal, aceite por quase todas as pessoas, invariável de época a época. Exemplo: «É um crime matar crianças inocentes e indefesas». O autor da questão interpreta juízo objectivo como juízo universal, Neste último sentido, se a hipótese C, algo confusa, estivesse certa as hipóteses A e D estariam igualmente certas. A hipótese C é confusa pois pode aplicar-se a juízo moral subjectivo. Exemplo: um pseudo místico oriental como Said Baba formula o seguinte juízo moral subjectivo independentemente dos costumes: «Eu sou a bondade absoluta, eu sou Deus». Este juízo enquadra-se na hipótese C e não é um juízo moral objectivo. O juízo moral objectivo não é obrigatoriamente independente dos costumes como supõe, erradamente, o autor da questão. Exemplo: o juízo moral «a democracia liberal, com multipartidarismo, é o melhor sistema político do mundo» é um juízo moral objectivo fundado nos costumes de dezenas ou centenas de anos de vida democrática na Europa, é uma opinião largamente maioritária. Objectividade compagina-se com relativismo, isto é, variação dos valores de país a país, época a época, religião a religião, classe social a classe social.
6. Considere as frases seguintes.
1. A relva é verde.
2. Se a relva é verde, é colorida.
É correto afirmar que
(A) ambas exprimem conhecimento a priori.
(B) ambas exprimem conhecimento a posteriori.
(C) 1 exprime conhecimento a priori; 2 exprime conhecimento a posteriori.
(D) 1 exprime conhecimento a posteriori; 2 exprime conhecimento a priori.
Segundo os critérios de correção oficiais, a resposta correcta é a B.
Crítica nossa: a resposta correcta é a hipótese B. Na verdade, o conceito de colorida não é a priori - nem em Platão, nem em Descartes nem em Kant - pois toda a cor, incluindo o verde, é apreendida sensorialmente a posteriori, na experiência.
7. Suponha que uma pessoa rica tem de participar na escolha de princípios de justiça que regulem a estrutura
básica da sociedade em que vive. De acordo com Rawls, para que a escolha seja razoável, essa pessoa
terá de atender às restrições da posição original. Por conseguinte, ela deve escolher princípios de justiça
(A) tendo em conta o rendimento dos mais desfavorecidos.
(B) sem ter em conta que todos são livres e iguais.
(C) sem ter em conta a sua posição social.
(D) tendo em conta os recursos disponíveis.
Segundo os critérios oficiais a resposta certa é a C).
Crítica: a hipótese A está certa, e a D também. É indispensável para haver justiça com equidade levar em conta os rendimentos dos mais desfavorecidos e os recursos existentes.
NOTA: COMPRA O NOSSO «DICIONÁRIO DE FILOSOFIA E ONTOLOGIA, DIALÉTICA E EQUÍVOCOS DOS FILÓSOFOS», 520 páginas, 20 euros (portes de correio para Portugal incluídos), CONTACTA-NOS.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
O exame Nacional de Filosofia em Portugal, Prova 714, 1ª Fase, realizado em 17 de Junho de 2019, é uma das provas de exame mais confusas e mal elaboradas de que há memória. Isso parece comprovar a tese de que o ensino universitário de filosofia tem perdido qualidade a partir do momento em que se generalizou o comércio dos mestrados e doutoramentos que possibilita a indivíduos medianamente inteligentes ascender aos graus de mestre ou doutor em filosofia. Vejamos exemplos da versão 2 desta prova de exame que obriga a escolher apenas uma resposta entre quatro possíveis no grupo I:
GRUPO I
(3) «Imagine que o Luís precisa urgentemente de medicamentos e que a única maneira de os conseguir é pedir dinheiro emprestado a um amigo rico, sem ter a intenção de lho pagar. Neste caso, o Luís decidiu adotar a máxima «faz promessas enganadoras quando não há outra forma de resolver os teus problemas pessoais».
«Esta máxima pode ser usada para fazer uma crítica à ética kantiana, dado ser razoável argumentar que a máxima
(A) é imoral, ainda que venha a ter aprovação dos agentes envolvidos.
(B) não é imoral, ainda que não seja racional querer universalizá-la.
(C) não é imoral, embora seja um imperativo categórico condicional.
(D) é imoral, embora dê prioridade às consequências da ação.»
A resposta oficial da correção é: a alínea B, não é imoral, ainda que não seja racional querer universalizá-la.
Crítica nossa: A resposta correcta é A, é imoral, ainda que venha a ter aprovação dos agentes envolvidos, porque se trata de uma máxima egoísta que visa apenas o lucro pessoal do agente que a formula.
5. «Popper defende que, quanto mais falsificável for uma dada informação, mais interessante ela é para a ciência. Qual das afirmações seguintes é, de acordo com Popper, mais interessante?
(A). Alguns corvos são negros
(B) Não existem corvos brancos.
(C) Todos os corvos são negros.
(D) Existem corvos brancos.»
Segundo a correção oficial há só uma resposta certa: a C, Todos os corvos são negros.
Crítica nossa: não há apenas uma, mas duas respostas correctas: a B e a C, porque ambas enunciam uma tese de carácter universal, ora em modo negativo ora em modo afirmativo, e Popper declarou ser impossível verificar ou estabelecer leis universais a partir da indução de alguns ou de muitos exemplos empíricos.
(6.) «Popper afirma que a ciência começou com a invenção do método crítico e considera que os cientistas agem de modo conscientemente crítico sobretudo quando
(A) procuram eliminar erros.
(B) inventam teorias.
(C) formulam conjecturas.
(D) tentam confirmar hipóteses.»
A correção oficial diz que só a resposta (A) está certa.
Crítica nossa: as quatro hipóteses estão correctas. Ao inventar uma teoria, ao formular conjecturas, ao tentar confirmar hipóteses os cientistas agem de modo conscientemente crítico, tanto quanto lhes permite a inteligência e a experiência de cada um.
7. «Há grandes diferenças entre a teoria newtoniana da gravitação e a teoria einsteiniana da gravitação. No entanto, a teoria newtoniana da gravitação pode ser traduzida em linguagem einsteiniana. Tal tradução foi feita, por exemplo, pelo professor de Física Peter Havas.
Este facto contraria a ideia, defendida por Kuhn, de que
A) há ciência extraordinária.
(B) os cientistas resistem à crítica.
(C) a escolha entre teorias rivais é subjetiva.
(D) os paradigmas são incomensuráveis.»
Segundo a correção oficial a resposta correcta é a D: os paradigmas são incomensuráveis.
Crítica nossa: nenhuma das 4 hipóteses está correcta. O facto de Peter Havas ter traduzido a teoria newtoniana da gravitação em linguagem einsteiniana não elimina o facto de que são mutuamente incomensuráveis segundo Kuhn. A tradução não compara o valor de cada uma das teorias.
GRUPO II
2. «No discurso seguinte, é apresentado um argumento cuja conclusão é obtida de modo falacioso.
Ao longo dos tempos, muitos filósofos se têm interrogado sobre o que de mais valioso existe. Será a beleza? Será o amor? Será a justiça? Será o prazer? Ora, após muita reflexão, convenci-me de que a beleza é a coisa mais importante que há, pois tudo o resto é indubitavelmente inferior a ela.»
Identifique a conclusão do argumento e a falácia cometida.
A correção oficial indica que a conclusão do argumento é «a beleza é a coisa mais importante que há» e que a falácia é a da petição de princípio.
Crítica nossa: não há falácia nenhuma em argumentar que se considera a beleza um valor superior ao amor e à justiça. É um juízo de gosto, uma opinião pessoal, não um erro ou vício de raciocínio em que a conclusão repete a premissa. Portanto não existe a petição de princípio neste discurso cujo conteúdo pode ser formulado do seguinte modo:
«Reflecti muito comparando os valores beleza, justiça, amor e prazer.
Concluí que a beleza é o mais importante que há, é o valor superior a todos os outros.»
GRUPO IV
Há uma questão que, na evolução do pensamento filosófico ao longo dos séculos, sempre desempenhou um papel importante: Que conhecimento pode ser alcançado pelo pensamento puro, independente da perceção sensorial? Existirá um tal conhecimento? […] A estas perguntas[…] os filósofos tentaram dar uma resposta, suscitando um quase interminável confronto de opiniões filosóficas. É patente, no entanto, neste processo […], uma tendência […] que podemos definir como uma crescente desconfiança a respeito da possibilidade de, através do pensamento puro, descobrirmos algo acerca do mundo objetivo.»
A.Einstein, Como Vejo a Ciência, a Religião e o Mundo, Lisboa,Relógio D’Água Editores, 2005, p. 163. (Texto adaptado)
Será que tanto Descartes como Hume contribuíram para a «crescente desconfiança» referida no texto?
Justifique a sua resposta.»
A correção oficial manda dar a cotação máxima ao aluno que «indica corretamente que é falso que tanto Descartes como Hume tenham contribuído para a desconfiança referida no texto.»
Crítica nossa: David Hume semeou desconfiança sobre a possibilidade de através do pensamento puro conhecer o mundo objectivo. Hume reduziu o conhecimento a impressões de sensação (ex: ver uma árvore, sentir o vento) e impressões de reflexão (ex: lembrar-se do calor da lareira acesa ou do canto dos pássaros) e a ideias, cópias menos vivas das impressões, e negou que o pensamento puro conseguisse demonstrar a existência de objectos materiais fora de nós. Portanto, os critérios de correção estão errados, quem gizou esta prova não conhece a filosofia idealista de David Hume. Eis a prova de que Hume sempre foi céptico, sempre duvidou da existência de objectos físicos exteriores à mente humana:
«A razão não nos dá e é impossível que alguma vez nos dê, em qualquer hipótese, qualquer convicção da existência contínua e distinta dos corpos. Esta opinião tem de se atribuir inteiramente à imaginação, que passa a ser o objecto da nossa investigação ».(Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 238; o destaque a negrito é posto por mim).
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica