Terça-feira, 3 de Novembro de 2015
Teste de filosofia do 10º B ( Outubro de 2015)

 

Eis um teste de filosofia produzido no Alentejo, palavra que evoca aletheia ou desocultação da verdade, filosofia.

 

Agrupamento de Escolas nº1 de Beja
Escola Secundária Diogo de Gouveia, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA B
29 de Outubro de 2015.
Professor: Francisco Queiroz
I

 

"A filosofia combina, de um modo particular, metafísica com empiricidade e racionalidade. A doutrina dos arquês de Anaxágoras, de Tales e de Empédocles são subjetivas ou intersubjetivas. Aristóteles defendeu que há dois princípios fundamentais anteriores ao composto (synolon) que produzem este, sendo isto o hilemorfismo.”

1) Explique, concretamente este texto.

 

2) Relacione, justificando:

A) As três partes da alma e as três partes da pólis na doutrina de Platão.
B)  Mundo do Mesmo e reminiscência, em Platão.
C) Unidade e multiplicidade na teoria da participação, em Platão.
D) Essência (eidos), acidente e tó tí em Aristóteles..

 

CORREÇÃO DO TESTE COTADO PARA 20 VALORES

 

 

1) A filosofia, interpretação livre e especulativa da vida, do universo e do homem, implica metafísica, isto é, mergulhar no reino do que transcende a natureza física ( deus ou deuses, suposta vida após a morte, reencarnação, partículas subatómicas, origem do universo e da vida, etc) e também empiricidade ( ver, tocar, saborear com os orgãos sensoriais que captam o mundo empírico ou da experiêmcia) e ainda racionalidade, ou ordem lógica no pensamento (VALE TRÊS VALORES). O arquê é a substância ou matéria primordial que originou o universo: para Tales era a água, que estava no caos, e foi modelada por Deus convertendo-se em cosmos, para Anaxágoras o arquê eram os princípios homeoméricos, o infimitamente pequeno que se amplia à escala macrocóspica ( exemplo: uma cenoura é composta por milhares de cenouras invisíveis muito pequenas e por milhares de olhos humanos muito pequenos porque fortalece a vista) e para Empédocles os arquês eram quatro, fogo, ar, terra e água, sendo isto doutrinas subjectivas, isto é, convições íntimas de uma só consciência humana ou intersubjectivas, isto é, crenças não universais mas partilhadas por um grupo de pessoas (VALE TRÊS VALORES). Aristóteles sustentou que o composto, a proté ousía ( por exemplo: esta árvore) resulta da união de dois princípios universais, a hylé ou matéria-prima universal, indeterminada ( não é água, nem ar, nem fogo, nem terra, etc.) que não existe, com as formas das espécies (eidos), neste caso, com a forma comum de árvore. O hilemorfismo é o nome desta teoria que sustenta que as coisas nascem da união da matéria (hylé, matéria indeterminada e abstracta; hylé eskaté, matéria última, determinada, como ferro, madeira, terra, etc) e da forma (morfos).(VALE TRÊS VALORES).

 

2) A) A alma humana divide-se em três partes: o Nous, o Tumus e a Epithymia. A cidade estado ou pólis divide-se em três estratos. A parte mais alta da alma humana é o Nous ou razão intuitiva que apreende os arquétipos de Bem, Belo, Justo, etc. Equivale na pólis aos filósofos-reis que fazem as leis, vivem em uma casa do Estado, não podem ter ouro nem prata, e trocam de companheiras sexuais de modo a não saber de quem são os filhos e não se corromperem com favoritismos. A parte média da alma é o Tumus ou Tymus ou coragem e honra e brio militar. Equivale aos guerreiros ou arcontes auxiliares que policiam a cidade, cobram os impostos, punem os malfeitores vivem em uma casa do Estado, não podem ter ouro nem prata, e trocam de companheiras sexuais de modo a não saber de quem são os filhos. A parte inferior da alma é a Epithymia ou Concupiscência, isto é, o desejo imoderado de comer, beber, possuir ouro e prata e propriedades fundiárias, entregar-se a orgias, etc. Equivale aos diferentes estratos da população desde os proprietários agrários de escravos até aos escravos, passando pelos comerciantes e artesãos. De um modo geral, podem enriquecer mas não podem eleger os filósofos-reis e os guerreiros para que estes governem de forma exemplar, incorruptível. ( VALE QUATRO VALORES).

 

2) B) Em Platão, o Mundo do Mesmo é o Inteligível composto pelos arquétipos de Bem, Belo, Justo, Número Um, Número Dois, Triângulo, Homem, etc. Os arquétipos estão acima do céu visível, por isso são transcendentes, estão além (trans) do universo físico e foram observados pela alma humana, Nous, quando esta esteve no Inteligível. A alma desceu em direção ao Mundo Sensível, banhou-se no rio Letes e aí esqueceu tudo o que vira, à excepção de vagas lembranças chamadas reminiscências. A alma entra no corpo de um bebé e quando o menino vai à escola e aprende que seis mais seis é igual a doze não está a aprender nada de novo mas sim a recordar, pela reminiscência, os arquétipos de Seis e Doze que contemplou no Mundo Inteligível (VALE TRÊS VALORES).

 

2) C) A teoria da participação, em Platão, refere que os entes de uma mesma espécie do mundo físico da matéria ou mundo do Outro são cópias imperfeitas do respectivo arquétipo ou essência que se encontra no Mundo Inteligível acima do céu visível. Assim, por exemplo, os milhões de cavalos existentes no mundo terrestre (multiplicidade) imitam a forma única de cavalo eterno (unidade) que está no Mundo do Mesmo. (VALE DOIS VALORES)

 

2) D) A essência (eidos), segundo Aristóteles, é a forma comum de uma dada espécie de entes. Todos os homens possuem a mesma essência, homem. A essência árvore tem um tó tí: os ramos, as folhas, o tronco, etc. O tó tí é o quê-é ou seja a forma, essencial ou acidental, de algo. Exemplo: o tó tí da espiga de trigo é a forma desta e distingue-se do tó tí da espiga de milho e do tó tí do rosto humano. Se Joana se distingue de Mariana e de Francisca isso deve-se aos acidentes, isto é, as particularidades singulares que as distinguem entre si e que são tó tís: o naiz arrebitado de uma e o nariz aquilino de outras, os olhos azuis de uma e os olhos verdes de outra, etc. O tó ón é o ente, o que é, o existente, qualidade que é comum às coisas ou seres com diferentes tó tís. O Mundo do Mesmo ou mundo dos arquétipos ou Ideias ou Modelos perfeitos, acima do céu visível, possui tó on e tó tí no que respeita a cada arquétipo: o tó tí do Triângulo é diferente do tó tí do Círculo e do tó tí do Belo. (VALE DOIS VALORES)

  

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Domingo, 4 de Novembro de 2012
Sonetos - I

  

O MEU AMOR VERMELHO

 

O meu amor vermelho, de cristal,
é feito de energia, adoração.
É, em ti, Galaaz e Santo Graal
a pomba, a palma da tua
o.

É nicho, catedral, ontologia
o Ser-ai da pura devoção,
a abertura do Ser, a heresia,
a coluna que une o céu ao chão.

Sou-te em azul, em pura percepção,
o sutiã, o seio, a Intuição,
que eleva a sensação ao transcendente.

Essência e existência, abstração,
dois corpos no uno do coração
e o rubi da paixão no imanente

 

Francisco Limpo

 

 

 

IMAGEM NO ESPELHO

 

Sou a janela branca do teu quarto

de onde olhas a planície alentejana.

Sou o teu guarda-roupa, já estou farto

de não ser uma coisa mais profana.

 

Quero ser a tua liga, o sutiã,

o top vermelho que te molda o peito,

a cuequinha, essa meia de lã,

que te faz, alternativa, desse jeito.

 

E ser as tuas botas sobre a laje,

o teu vestido de estilo vintage,

e o teu cabelo solto, sedutor.

 

E ser a tua imagem no espelho,

voltar atrás no tempo, não ser velho,

e nascer no baton do teu amor. 

 

Francisco Limpo

 

 

NA GÔNDOLA AZUL DESTA VENEZA

 

Ah, meu amor, que lindos os teus passos

na gôndola azul desta Veneza

de ter-te no claustro dos meus braços,

junto à água, nas pontes da beleza.

 

E ser, em ti, a praça de São Marcos,

o oceano azul, livre e profundo,

os teus seios vogando como barcos,

no sal da minha boca como o mundo.

 

E os teus braços abertos, canapés

de oiro e brocado, e o pôr dos teus pés

no sido, ontologia do passado.

 

E a tua boca, rosas e marfim,

devir, ser outro, já longe de mim,

e descobrir-me em ti, reificado. 

 

Francisco Limpo

 

 

 

ISQUEIRO DO AGORA

 

 

Saio agora para o campo dos teus olhos
onde há feiras medievas, arlequins,
túnicas brancas, vestidos de folhos
e um leve vermelho botequins.

 

Saio e encontro a tua alma  a flutuar
no isqueiro aceso do Agora,
e pergunto se é o vento  a ondular
ou se és a prontidão que há na aurora.

E vejo-te na noite, sorridente,
no bar dos meus sentidos, no tridente
do meu ser deus dos mares, certo, seguro.

E o teu lábio é caravela ardente,
nao sei se sempre igual ou se diferente
de eu ser amor por ti enquanto duro.

 

Francisco Limpo

 

 

CANTAR COM OS BUBEDANAS

 

Um dia fui cantar com «Os Bubedanas»,
na Praça da República de Beja,
e o Henribar transformou-se em igreja
e Deus desceu a estas terras planas.

Era o Bernardo, o Rui, o Luis Aleixo
vozes do sagrado ao profano,
abóbada de sons que, no seu fecho,
nao são, senão, o céu alentejano.

O céu do sobro, de espigas doiradas,
das moças lindas, searas lavradas,
do queijo, do gaspacho e cataplanas .

Menina Florentina, sob a  lua,
queria que a minha boca fosse a tua,
ao som do cante de «Os Bubedanas».

 

Francisco Limpo

 

 

TEMPO AZUL DOS TEUS SENTIDOS

 

Sei do tempo azul dos teus sentidos
e Beja Inteira poisa em mim, em oiro.
castelos no vermelho e negro toiro
na harpa dos teus seios escondidos .

És linda. Toco-te o sutiã
algures no continente do teu peito
e beijo-te, em rosáceas, mas com jeito,
que a catedral de ti nasce amanhã.

E sou a arquitectura do teu ser,
gótico radiante de mulher,
Beja, convento da Conceição!

E quanto mais te beijo, mais te adoro
és o Arquetipo, a deusa a que oro,
a mistura do real e da ilusão.

 

Francisco Limpo

 

 

METAMORFOSE

 

Tão bela, tão formosa, tão bonita,
e eu ao desejá-la já sou ela,
sou o seu corpo de linho, quallipa
sua mulher, seu homem, sua estrela.

E ao desejá-la sou apenas um verso
a estátua branca da Virgem Maria,
da mão suspenso , em pérolas, um terço
e é madrugada azul ou já é dia.

 

E rezo-me em mim ou ela me reza agora,

eu homem, feito deusa da aurora,

nesta igreja de vermelho travestismo.

 

Altares de mim são ela em movimento

os seus beijos de açúcar e o momento

de sermos um só ente, em erotismo.

 

 

 

 

Francisco Limpo

 

 

AMOR POLÍCROMO

 

Ó meu amor vermelho, quanto és verde,

e de oiro, silêncio, é o teu seio azul,

e a anca de platina, mais ao sul,

na calcinha de renda em que se perde

 

o mastro do barco do meu desejo,

a mão da minha loucura, qual cavalo,

no prado do teu ventre, no teu halo,

na água esplendorosa deste beijo.

 

Dá-me a harpa, a alça do sutiã,

no teu ombro toco, até ser manhã,

e o sol já vem chegando, no terraço.

 

É Alentejo. Amo-te, avelã,

poejo, cardo, queijo, pura lã,

e tudo o mais que nasce deste abraço.

 

 

 

 

 Francisco Limpo

 

 

POLPA SEM GRAINHA

Ela é o meu amor. É tão novinha!

É sorriso de prata, folha de ouro,

amor de Escorpião, e não de Touro,

uva, parra, polpa sem grainha.

 

´Não lhe toco. Amo-a assim, aurora,

de um rosto puro, branco, divinal,

e o seu braço é um castiçal

e eu, a chama que arde no agora.

 

Sorrimos. E o amor a sério existe,

forte, metálico e persiste,

e sempre assim será, até morrer. 

 

Espero-a no castelo imaginário,

de um beijo, de um abraço extraordinário,

que pode nunca vir a acontecer.

 

Francisco Limpo

 

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Quinta-feira, 19 de Janeiro de 2012
Heidegger acusa, sem razão, a ontologia tradicional de confundir ser e tempo

Heidegger acusa, sem razão, a ontologia tradicional de confundir o ser com o tempo:.

 

«O tempo funciona há muito tempo como critério ontológico, ou mais precisamente ôntico, de distinção ingénua das diversas regiões de entes. Deslindam-se os entes “temporais” (os processos da natureza e as gestas da história) dos entes “intemporais” (as relações espaciais e numéricas).(...) Encontra-se, ademais, um abismo entre o ente "temporal" e o eterno "supratemporal" e intenta-se franqueá-lo. "Temporal" aqui quer sempre dizer tanto como sendo "no tempo", uma determinação que, por sua vez, é, sem dúvida, obscura. Mas o facto é este: o tempo, no sentido de "ser no tempo", funciona como critério de distinção das regiões do ser» (Heidegger, El Ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, pag 28).

 

Pergunta-se: é possível estudar o ser desligando-o do tempo? Não. O ser, na teoria de Tales de Mileto, é a água e a determinação desta como ser deve-se à sua forma omnipresente (espacialidade, materialidade) e à permanência eterna (na sucessão infinita de caos e cosmos, composta de tempos, de ciclos temporais, em que tudo é água).

 

O ser, na teoria de Platão, é o mundo inteligível, imóvel, supraceleste, o uno, múltiplo na variedade dos seus arquétipos: o Bem, o Belo, o Justo, o Triângulo, o Número Um, etc. Os arquétipos (ser) não se confundem com o tempo, porque estão na eternidade, fora do devir próprio do tempo.

 

O tempo não é o único critério ontológico mas é um indispensável critério ontológico.


 

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Terça-feira, 5 de Julho de 2011
Sobre "O Ente e a Essência": ambiguidades em São Tomás e em Santiago de Carvalho

 

Com prefácio do catedrático medievalista Mário Santiago de Carvalho, a Contraponto editou em 1995 "O ente e a essência"  de São Tomás de Aquino. Servi-me dessa edição para leccionar a estudantes alentejanos uma parte do já "desaparecido", na minha escola, programa de Filosofia do 12º ano do ensino secundário em Portugal, que incluía a escolha de três entre vinte obras conceituadas de filosofia. Tanto o texto original de São Tomás como o prefácio de Mário Santiago de Carvalho padecem de imprecisões teóricas, algumas das quais passo a explanar.

 

O ARISTOTELISMO NÃO É ESSENCIALISMO?

 

Em prefácio de uma edição portuguesa de "O Ente e a Essência" de São Tomás de Aquino escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

« Como se insistiu, este é um mérito de Tomás de Aquino, e ele terá consistido em servir-se com rigor da lógica, elucidando-a e pondo-a ao serviço das tarefas da ontologia Este é portanto um aspecto que não quereríamos desvalorizar , pois é, de facto, a linguagem da lógica, o aristotelismo, com o avicenismo e o essencialismo, que galvanizam este texto. » (Mário Santiago de Carvalho in prefácio de "O Ente e a essência" , pag 61, Contraponto, Porto).

 

Que significa para Mário Santiago o termo essencialismo? Tudo leva a crer que significa platonismo, pois separa aristotelismo de essencialismo. Trata-se de um equívoco: o aristotelismo é um essencialismo, uma vez que nele as essências antecedem a existência das coisas materiais, tal como em Platão.

 

A AMBÍGUA DISTINÇÃO ENTRE ESPÉCIE E "NATUREZA HUMANA"

 

São Tomás, enquanto fiel a Aristóteles, distinguiu entre a essência em si mesma (segundo a sua absoluta consideração) e a essência individuada (segundo o ser que possui em cada indivíduo):

 

«Mas a natureza ou essência assim compreendida pode ser considerada de dois modos. Do primeiro modo, segundo a sua noção própria, que é a sua absoluta consideração. (...) Por exemplo, ao homem enquanto homem, corresponde-lhe "racional" e "animal" e outros predicados que entram na definição; mas ser branco ou negro, ou qualquer outra coisa semelhante que não pertença à noção de "humanidade" não corresponde ao homem enquanto homem». (...)

 

«Do segundo modo considera-se (a essência)  segundo o ser que possui neste ou naquele indivíduo. Neste caso, pode atribuir-se-lhe algo por acidente, em razão daquilo em que se encontra. Por exemplo, diz-se que o homem é branco, porque Sócrates é branco, embora isso não pertença ao homem enquanto homem.» (São Tomás de Aquino, "O Ente e a Essência", pag 82-83)

 

«Compete pois à "natureza humana", segundo a sua consideração absoluta, ser atribuída a Sócrates. A noção  de espécie, por sua vez, não lhe compete segundo a sua absoluta consideração, mas deriva de acidentes que a acompanham segundo o ser que possui no intelecto. Por esse motivo, o termo de espécie não é atribuído a Sócrates, como se se dissesse "Sócrates é espécie". Mas isso teria necessariamente de suceder, se a noção de espécie conviesse ao homem segundo o ser que tem em Sócrates, ou segundo a sua absoluta consideração, quer dizer enquanto é homem.» (Tomás de Aquino, ibid, pag 85).

 

Se a "natureza humana", que é o mesmo que a essência homem, como .São Tomás diz no início do livro, convém ao indivíduo Sócrates, porque razão "espécie ´não poderia ser atribuída a homem? É óbvio que, no sentido da extensão, da quantidade dos indivíduos que a integram, Sócrates não é a (toda a) espécie humana, e neste sentido, espécie não lhe convém. Mas do ponto de vista da essência, da forma comum à espécie, esta convém a Sócrates a ponto de se poder dizer: "Sócrates é uma incarnação ou exemplificação da espécie humana" . Aristóteles identificou bem a essência com a espécie (eidos) .O texto de Aquino acima tem falta de clareza.

 

O ABSOLUTO É EXTERIOR AO SINGULAR E AO UNIVERSAL? A ESSÊNCIA É MÚLTIPLA NA ALMA?

 

Referindo-se aos dois modos de considerar a essência teorizados por São Tomás, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«A consideração absoluta é evidentemente o ideal da ciência, o índice de que é genuinamente científica a linguagem que fazemos. (...) Sempre que possível, o ontólogo deve privilegiar este plano que não é singular nem universal, mas é absoluto

«No segundo modo, a natureza ou essência já não se considera na sua significação, mas na sua realização. Encontramo-nos a um nível menos abstracto. Neste segundo plano acontece aquilo que se recusava ao primeiro. Se, neste, a essência não podia ser una nem múltipla, já no segundo caso é isso que acontece, ela é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e é una na realidade (os unissingulares)». (Mário Santiago de Carvalho, in introdução de "O Ente e a Essência", pag 36; o negrito é de minha autoria).

 

 

Por que razão o plano da essência na sua consideração absoluta (exemplo: "o homem enquanto homem") «não é singular, nem universal, mas absoluto», segundo Santiagpo de Carvalho?

Há uma confusão antidialéctica de níveis neste pensamento de Mário Santiago. O absoluto engloba o singular, o particular (no sentido de parte, regional, grupo de entes da mesma espécie) e o universal. Absoluto não se opõe a singular e universal mas  sim a relativo: há um singular absoluto e um universal absoluto, um singular relativo e um universal relativo.

 

Mário Santiago de Carvalho afirma que no caso do seu modo da consideração absoluta «a essência não poderia ser una nem múltipla». Mas sustentar isto é violar o princípio do terceiro excluído: ou as coisas são unas ou não unas, isto é, são múltiplas. Há coisas que são unas e múltiplas em simultâneo, segundo a perspectiva. A essência é sempre una. A essência "cavalo" no seu modo de consideração absoluta - o cavalo enquanto cavalo - é única em todas as mentes humanas: um quadrúpede, mamífero hipomorfo, da ordem dos ungulados, com crinas, veloz, uma das três sub-espécies da espécie Equus Ferus.

Como pode Mário Santiago asseverar que a essência não é una? É um paralogismo.

 

E afirma ainda que a essência no modo que tem em cada singular "é múltipla na alma (qualquer conceito é universal) e una na realidade (os unissingulares).» Grande nuvem de confusão aqui paira!  A essência de Sócrates, que é a essência homem individuada em Sócrates, é una na alma (na percepção, no pensamento) e não múltipla. Podemos admitir que diferentes pessoas conceptualizem Sócrates de modo diferente - e aqui entra a multiplicidade - mas cada uma delas o conceptualiza de forma una.

 

Quando Santiago de Carvalho diz que «qualquer conceito é universal» equivoca-se no que toca à filosofia de Aristóteles: segundo este, as espécies não são conceitos universais mas sim comuns, isto é, «regionais», abrangendo comunidades sectoriais. Só o género e os universais supra-genéricos, como o ser, o uno, o semelhante, etc, são universais.

 

ARISTÓTELES NÃO CONCEBIA COMO UMA ESSÊNCIA CHEGA À EXISTÊNCIA?

 

Escreve ainda Mário Santiago de Carvalho, referindo-se à pretensa superioridade  do pensamento de Tomás de Aquino sobre o de Aristóteles:

 

«Podemos dizer, em resumo deste capítulo, o seguinte: ao substituir a teoria do hilomorfismo universal São Tomás pôs em relevo um tipo de composição muito particular, o da essência com a existência. (...) Considerada deste ponto de vista, à substância ou ao concreto como primeiro objecto da ontologia acresce uma consideração que Aristóteles não podia conceber (como é que uma essência chegou à existência? - como é que esta essência se mantém em existência?)» (Mário Santiago de Carvalho in Introdução de "O Ente e a Essência", pag 49: o negrito é posto por mim).

 

Ao contrário da tese que sustenta Mário Santiago de Carvalho de que o Estagirita grego não  concebia como é que as essências se mantinham em existência, Aristóteles concebia as essências como autosubsistentes, eternas, incriadas, acto, e, portanto, não se punha o problema de as essências chegarem à existência como o põe o cristianismo de São Tomás que identifica Deus com a existência pura, suporte das essências:

 

«As coisas eternas são, quanto à substância, anteriores às coisas corruptíveis e nada que esteja em potência é eterno. (...) O corruptível em sentido absoluto é o corruptível quanto à substância. Portanto, nenhuma das coisas que são incorruptíveis em sentido absoluto está em potência em sentido absoluto. (Nada impede que o esteja em algum aspecto, por exemplo, quanto à qualidade ou ao lugar.) Logo todas elas estão em acto. Tão pouco está em potência qualquer das coisas que são necessariamente. (Certamente, estas são as realidades primeiras; e, desde logo, se elas não existissem, não existiria nada.)» (Aristóteles, Metafísica, Livro IX, 1050 b, 15-20)

 

Este texto é muito claro: as essência, por exemplo a essência cavalo ou a essência árvore são incorruptíveis, anteriores aos cavalos e às nuvens físicas, e estão em acto. Isto é platonismo. Essas essências, actos em si mesmas, estão em potência para os cavalos e nuvens que se gerarem, materialmente, no futuro próximo ou longínquo. 

 

 

O mundo em Aristóteles, é eterno e incriado. Tanto quanto me é dado perceber, o cosmos apenas passou do repouso ao movimento dos astros e esferas celestes quando os planetas e estrelas contemplaram Deus, o pensamento puro e imóvel, e desejaram alcançá-lo pondo-se a rodar. As essências eternas - Sol, Lua, Vénus, Júpiter, esferas celestes, árvore, montanha, homem, cavalo, etc - não foram criadas por Deus, como sustentavam São Tomás e os teólogos cristãos, coexistem desde a eternidade com o próprio Deus, não recebem deste a existência.

O problema da essência (to ti en einai) e da existência (einai, to ón) já está colocado por Aristóteles, não é um tema que principiasse com São Tomás de Aquino. A essência eterna, forma pura, já possui existência, uma existência imaterial.

 

A INTENÇÃO (INTENTIO) É UM CONHECIMENTO DE MÉDIA DIMENSÃO?

 

Sobre a intenção (intentio), noção existente na filosofia do Aquinate e em outras da escolástica, escreveu Mário Santiago de Carvalho:

 

«Examinando mais atentamente o que isto quer dizer,  verifica-se que entre a singularidade individual (cada um dos homens) e a universalidade (o conceito, que enuncia o que há de comum aos homens) há um modo de ser próprio, intermediário, que é o modo de ser de uma determinada natureza na inteligência. O modo de ser na inteligência (i.e. o modo como se concebe uma dada realidade) partilha de ambas as notas. Ele é universal (porque se aplica uniformente aos vários indivíduos da mesma espécie) e particular (porque é apenas e sempre a representação mental do indivíduo que num certo momento pensa,»

«É este modo de ser intermediário (a que se dá o nome de "intencional") com as suas notas, que mais nos deve ocupar...» (Mário Santiago de Carvalho, Introdução a "O ente e a essência", pag 37, Contraponto; o negrito é colocado por mim). 

 

 

A intentio é a percepção empírica, o dado fenoménico, ou o conceito, isto é a ligação entre o cérebro/ inteligência ou orgão sensorial e os objectos físicos exteriores,que pode ou não exprimir integralmente o ser dos objectos exteriores. Guilherme de Ockham escreveu:

 

«É pois, a saber, que se chama intenção da alma algo que há nela apto para significar outra coisa (...)assim as palavras são signos secundários daquelas coisas das quais são signos primários as intenções da alma. Isso que há na alma, e que é signo da coisa, e do qual se compõe a proposição mental ao modo como a proposição oral se compõe de palavras, se chama algumas vezes intenção da alma; outras, conceito da alma; outras, paixão da alma; outras, semelhança da coisa..» (Ockham, Suma de la lógica in Los filósofos medievales, selección de textos, de Clemente Fernandez, pag 1074, Biblioteca de Autores Cristianos; o negrito é por mim colocado)

 

Daqui se conclui apenas que a intentio é posicionalmente um intermédio entre o mundo físico exterior e a consciência vazia ou parcialmente vazia do indivíduo. Mas não se pode dizer que a intentio é, por natureza, um intermédio no plano gnosiológico, um conhecimento misto de singular e universal, como sustenta Santiago de Carvalho no texto acima. Os números um, dois, três e quatro são intenções e constituem conceitos universais que se aplicam a biliões de singulares. Em si o conceito de dois não é singular: é um universal, aplicável universalmente a casos singulares.

 

A ESSÊNCIA DE HOMEM E A DE SÓCRATES DIFEREM SÓ NA QUESTÃO DO LIMITADO/ILIMITADO? OU TAMBÉM NO QUID DA FORMA?

 

 

Por matéria delimitada, São Tomás de Aquino entende a matéria concreta, tridimensional, com dimensões corporais definidas. Por exemplo: este homem de 189 centímetros de altura, aquela casa de 120 metros quadrados de área coberta. Escreveu o Aquinate:

 

 

«Por esta razão, deve saber-se que o princípio de individuação não é a matéria considerada de qualquer modo mas unicamente a matéria delimitada. Chamo "matéria delimitada" à que se considera submetida a dimensões determinadas. Ora esta matéria não entra na definição de homem, mas entraria na definição de Sócrates, se Sócrates tivesse definição. Na definição de homem, ao contrário, entra a matéria não-delimitada. Na definição de homem, não se põem estes ossos e esta carne, mas os ossos e a carne tomados em abstracto, que constituem a matéria não-delimitada do homem. É evidente, por conseguinte, que a essência de homem e a essência de Sócrates não diferem senão quanto ao "delimitado" e ao "não-delimitado" ». (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, pag 75, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

O equívoco de São Tomás é considerar o delimitado como a diferença entre a essência Sócrates com a essência homem que não tem limites mas apenas a proporção entre as diferentes partes. Mas falta uma diferença essencial que reside no "quid" de cada uma das essências, a individual e a específica: a forma de Sócrates, calvo, nariz achatado, lábios grossos difere da forma homem como espécie - homem não calvo, nariz correcto, etc. É, pois, a disparidade entre duas formas, a que envolve a matéria de cada corpo e a que paira como espécie. 

 

A FORMA É RECIBIDA NA MATÉRIA DELIMITADA?

 

 

Depois de se referir a duas modalidades de essências - a de Deus, que é apenas existir puro, e a das inteligências separadas, que são forma e existência - São Tomás escreve:

 

 

«Na terceira modalidade, a essência encontra-se nas substâncias compostas de matéria e de forma, nas quais o existir é igualmente recebido e finito, já que recebem o existir a partir de outro. Além disso a sua natureza ou quididade é recebida na matéria delimitada. Por esse motivo são finitas, quer pela parte superior quer pela inferior.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 96, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

Neste texto há um erro de São Tomás: originalmente, e na natureza, a forma não é, em regra, recebida na matéria delimitada mas sim na matéria não delimitada, delimitando ou confinando uma porção desta. Pois a matéria só se torna delimitada, isto é, condensada, sujeita a dimensões singulares e concretas, ao receber a forma específica. As árvores nasceram quando a forma árvore se uniu à matéria-prima indeterminada, infinita, não delimitada (hylé). É óbvio que o oleiro faz o vaso imprimindo a forma numa matéria delimitada: uma certa porção de barro. Mas aqui trata-se da arte humana de produzir e não da génese originária na natureza.

 

 

 

A CONTRADIÇÃO DE ARISTÓTELES PATENTE EM SÃO TOMÁS: A ESSÊNCIA SÓ EXISTE NAS COISAS SINGULARES MAS TEM DE EXISTIR PREVIAMENTE  ÀPARTE COMO FORMA ETERNA

 

Toda a "Metafísica" de Aristóteles gira em torno de um eixo dinâmico: um essencialismo ( "as formas ou essências são eternas e preexistem aos objectos materiais" e nisto é igual a Platão) que se procura converter em existencialismo (" as formas essenciais não existem fora dos objectos materiais, fora da existência material" e aqui opõe-se a Platão) mas não tem como fazê-lo, senão mediante uma certa incoerência

 

Aristóteles é um platónico envergonhado. Critica a existência das formas platónicas mas ele mesmo é levado a admitir que as formas são eternas e têm de subsistir por si, fora da matéria. Mário Santiago de Carvalho não dá conta de se ter apercebido desta inconsistência do aristotelismo na introdução à edição que traduziu para português. Neste excerto da "Metafísica" Aristóteles admite que há formas eternas não geradas, ou seja, formas fora da matéria, tal como Platão postulava, e em seguida afirma que não existe a essência esfera fora das esferas materiais (de bronze, pedra, etc) nem a forma casa fora das casas plasmadas na matéria:

 

«Assim pois, é evidente por aquilo que foi dito que não se gera o que se denomina forma ou substância, enquanto que o composto que se denomina segundo esta gera-se, sim, e que em todo o gerado há matéria, e um é isto, e outro é aquilo.»

«Mas existe acaso uma esfera fora de estas ou uma casa fora dos tijolos? A ser assim, não ocorreria que não se geraria nenhum objecto determinado? (...) Assim, pois, é evidente que se existem realidades fora dos indivíduos, tal como alguns costumam falar das Formas, a causalidade das Formas não terá utilidade nenhuma para explicar as gerações e as substâncias.»  (Aristóteles, Metafísica, Livro VII, 1033 b, 15-30).

 

São Tomás cai na mesma incoerência inerente ao aristotelismo:

 

« De maneira semelhante, também não se pode dizer que as noções de género ou de espécie correspondam à essência, enquanto que esta é uma realidade fora das coisas singulares. como afirmavam os PLATÓNICOS» ( Tomás de Aquino, O ente e a essência, pag 82; o negrito é posto por mim).

 

Neste excerto acima, o Aquinate nega que a essência exista fora do objecto singular.

Compare-se agora com o excerto seguinte em que o filósofo dominicano afirma que a essência está fora do objecto singular e fora da alma, o que nega o nominalismo e o conceptualismo irrealista e afirma um realismo platonizante das essências:

 

«Com efeito, é falso dizer que a essência do homem, enquanto tal, tem o ser neste singular. Na verdade, se ser neste singular pertencesse ao homem enquanto é homem, nunca estaria fora deste singular. Paralelamente também, se pertencesse ao homem enquanto é homem não ser neste singular, nunca seria nele. A verdade porém está em dizer que o homem enquanto é homem, não tem que existir neste singular ou naquele, nem na alma.» (Tomás de Aquino, O ente e a essência, paginas 83-84, Contraponto; o negrito é posto por mim).

 

De duas uma: ou a essência «Homem» existe no colectivo de todos os homens e não em cada homem singular; ou existe, algures, aparte, para gerar cada homem ao unir-se à matéria-prima indeterminada (hylé).

 

A única diferença significativa entre Platão e Aristóteles, neste aspecto da cosmogénese, é que o primeiro introduz o demiurgo, um deus-operário, que imprime formas dos arquétipos na matéria e o segundo faz desaparecer, aparentemente, o demiurgo e confere às formas eternas mobilidade, autonomia, para se imprimirem na matéria, uma vez que o Deus aristotélico é imóvel e não intervém no mundo.

 

 

 

 

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Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2011
Heidegger: a consciência natural como diferença ôntico-ontológica

 

Heidegger escreveu:

 

«Ontológico significa levar a cabo a reunião do ente com a sua entidade. Ontológica é aquela essência que, segundo a sua natureza, se encontra em esta história desde o momento em que a suporta segundo o desocultamento do ente de cada momento. De acordo com isto, podemos dizer que a consciência é consciência ôntica na sua representação imediata do ente. Para ela, o ente é o objecto. Mas a representação do objecto representa, de maneira impensada,o objecto enquanto objecto. Já reuniu o objecto na sua objectividade e por isso é consciência ontológica. Mas como não pensa a objectividade como tal e sem embargo, já a representa, a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é. Dizemos que a consciência ôntica é pré-ontológica. Enquanto tal, a consciência natural ôntico-préontológica é, em estado latente, a diferença entre o onticamente verdadeiro e a verdade ontológica.» (Martin Heidegger, Caminos de Bosque, pag. 134, Alianza Editorial; o negrito é colocado por mim).

 

Este texto de Heidegger merece algumas reservas na sua claridade. Por que razão «a consciência natural é ontológica, e sem embargo, ainda não o é»? Heidegger sabe-o, sem dúvida, mas poderia precisar que a consciência natural é ontológica na sua constituição, mas ôntica no seu conteúdo, na sua função representativa. O ontológico é o verdadeiro profundo por desocultar, o objectivo, o fenómeno (no sentido heideggeriano) oculto sobre as aparências, o alicerce da casa.

 

O ôntico é o verdadeiro aparente. Exemplo: «Onticamente, a febre é um mal porque causa mal-estar térmico, suores, etc, e onticamente é verdadeiro que os medicamentos antipiréticos baixam e fazem desaparecer a febre; ontologicamente, a um nível mais profundo, a febre é bem, porque é um mecanismo de expulsão de toxinas, sais de ácido úrico, colesterol, através de suores, sebo, urinas carregadas, etc, e, portanto, um esforço libertador da doença, e os medicamentos antipiréticos são maus porque bloqueiam a febre, acção vital de defesa do organismo.»

 

Na acepção de Heidegger, entidade significa o ser: a entidade do ente é o ser. Mas haveria que distinguir o ser na sua dupla vertente de qualidade de existir e de estrutura ou essência geral unificada de todos os entes. São coisas distintas, ainda que indissociáveis.

 

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Sábado, 19 de Fevereiro de 2011
O ser, o "tò ón" (ente) e a essência, em Heidegger, e uma tradução duvidosa em espanhol

Em um dos seus mais belos textos filosóficos, datado de 1942, Heidegger escreveu:

 

«A expressão óntico, inspirada no grego tò ón, o ente, significa aquilo que se cinge ao ente. Mas o grego "ón", ente, encerra dentro de si uma essência própria de entidade (ousía) que no transcurso da sua história nunca permanece igual.(...) Como ón significa tanto "ente" como "o quê é" ( 1) on enquanto "ente" pode ser reunido (legéin) em direcção a "o quê é" ( 2) . Até se pode dizer que, de acordo com a sua ambiguidade, ón já está reunido como ente por mor da sua entidade. É ontológico. Mas com a essência do ón e a partir de ela, esse reunir que é, o lógos, transforma-se em cada caso e com ela, a ontologia. Desde que ón, o que se apresenta, se abriu como físis, a presença do que se apresenta reside, para os pensadores gregos, no fainestaí, na manifestação do não oculto que se mostra a si mesma. De acordo com isto, a multiplicidade do que se apresenta, tà onta, é pensada como aquilo que na sua manifestação é simplesmente aceite como o que se apresenta. A aceitação (dékestai) fica sem continuidade. Efectivamente, não continua a pensar mais além, na presença daquilo que se apresenta. Fica na dóxa. Pelo contrário, o noein é aquele perceber que percebe o presente na sua presença e a partir de aí abarca-a com ele.»( Martin Heidegger, Caminos de Bosque, El concepto de experiencia de Hegel, pag 133, Alianza Editorial, Madrid; o negrito é posto por mim).

 

1) Nota minha: A tradução espanhola desta passagem diz: "Como ón significa tanto "ente" como "lo que es". Atrevi-me a alterá-la, substituindo "o que é" por o "quê é" porque  me parece absurda a versão espanhola:  o ente é "o que é", "algo que é" , e não "o quê é" , tò tí, isto é o quid, a forma específica ou individual.

 

2) Nota minha: de novo corrijo aqui a tradução espanhola de "lo que es" substituindo-a por "lo qué-es" ( o quê é).

 

Ser possui na língua grega, o significado de presença, conforme sublinha Heidegger. Mas a essência não é, em rigor, presença, mas forma, estrutura. A essência delimita, especifica ou individualiza o ente, como a forma da estátua de mármore delimita ou individualiza o mármore em bruto. No texto acima, a presença designa o "ser" e o presente indica o "ente".

A acusação de Heidegger à tradição filosófica é a de esta esquecer o ser, que subjaz ao ente e o transcende, em favor do ente. Por exemplo: a metafísica cristã, confundiu o "ser", qualidade totalizante, com o ente "Deus", um espírito omnipotente, benéfico e autor do mundo.

A minha crítica a Heidegger, pensador brilhante da ontologia e, em certa medida, da filosofia analítica, reside na sua ambígua interpretação do termo "ser", nomeadamente expressa na seguinte passagem de Sein und Zeit:

 

«2. O conceito de "ser" é indefinível. É o que se concluiu da sua suprema universalidade. E com razão - si definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O "ser" não pode, com efeito, conceber-se como um ente; enti non additur aliqua natura; o "ser" não pode ser objecto de determinação predicando dele um ente.» (Martin Heidegger, El ser y el tiempo, pag 13, Fondo de cultura económica de España, Madrid; o negrito é colocado por mim).

 

Penso que o conceito de ser é definivel. A sua definição é dupla:

A) É o existir universal (presença).

B) É a essência geral de todos os entes, incluindo do ser-aí (cada homem, na sua singularidade).

 

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Sábado, 22 de Janeiro de 2011
Os quatro predicáveis em Aristóteles e os planos ontológico e eidológico

Aristóteles distinguiu quatro predicáveis: o próprio, o acidente (symbebêkós), a definição e o género. Predicável significa uma entidade da qual se predica (diz, qualifica) algo - por exemplo, a espécie homem é predicável porque de homem predica-se animal («O homem é um animal») e o género animal é predicável porque de animal predica-se ente vivo («Todo o animal é um ente vivo»). Parece haver alguma subtil confusão, nesta classificação, entre dois planos: o ontológico (do ser) e o eidológico (da essência). O grande filósofo grego escreveu:  

 

«Toda a proposição e todo o problema (problemata) indicam ora um género (génos), ora um próprio (ídios), ora um acidente (pois também a diferença, ao ser genérica, há-de ser colocada no mesmo lugar que o género); e, já que entre o próprio, há o que significa quê é o ser (Tò tí en eînai) e há o que não significa isso,  há-de dividir-se o próprio nas duas partes anteriormente ditas, e a uma se chamará definição (horismós, em grego), que significa quê é o ser, e a outra, de acordo com a designação dada em comum a ambas, se chamará próprio. Assim pois é evidente, a partir do que foi dito, por que razão, de acordo com a presente divisão, tudo vem a reduzir-se a quatro coisas: próprio, definição, género ou acidente. (Aristóteles, Tópicos, Livro I  in Tratados de Lógica (Órganon), pag 94-95, Editorial Gredos, Madrid). 

 

O texto alude à diferença genérica. A diferença é genérica ou específica? Dentro de um género, as diferenças entre as diferentes espécies - exemplo, no género animal - são específicas e não genéricas.  Não é clara, pois, a alusão à diferença genérica - existe, de facto uma diferença entre os géneros, mas existem também as diferenças específicas no seio de cada género.

Sobre a definição, essência traduzida no plano verbal, Aristóteles sustenta, acima, que faz parte do próprio tal como o próprio. Há aqui uma certa ambiguidade, uma duplicação de sentidos de próprio: há o próprio substância (exemplo: este vaso de barro), que inclui a forma comum, não própria, que lhe veio de cima, e o próprio acidente (exemplo: este barro), que é a porção de matéria ordenada e individuadora, aquilo que é mesmo singular e único. Não esqueçamos que para Aristóteles, a matéria é o princípio da individualização, a concreção no máximo grau.

 

A relação entre a substância e o acidente desenrola-se no plano ontológico, do que é e do que não é: a substância é, o acidente é e não é. O acidente é algo mas não é intrínseco à substância - referimo-nos ao acidente extrínseco, como por exemplo, a esferográfica (acidente) pousada sobre a substância mesa. Quando se trata do acidente intrínseco à essência (exemplo: o piscar de olhos ou o sorrir de cada ser humano) a descontinuidade mantém-se como característica do acidente: este é descontínuo, ora acontece ora desaparece, e só a sua forma, em conexão necessária com a substância, o classifica como acidente intrìnseco à substância, ao próprio.

A essência é, sempre, captada por abstracção, imprescindível no plano filosófico e científico; a essência existe misturada com a existência, com o existir ou ser puro.

 

Mas a relação entre o género, a essência-definição e o próprio - este entendido como substância, isto é, um composto de forma e matéria - desenvolve-se primariamente, não no plano ontológico, mas no plano eidológico, que é um plano formal concreto.

Assim, o termo próprio encontra-se na encruzilhada do seu duplo sentido: é o que é (tó on) - sentido ontológico em comparação com o acidente - e é o quê é (tó tí)- sentido eidológico, que lhe é dado pelo facto de ser constituido por uma forma individual participada pela forma-espécie-definição e pelo género.

O aparente paradoxo da concepção aristotélica é o de duas entidades não individuais mas colectivas - a forma comum (definição) ou espécie e a matéria-prima (Hylé) - forjarem entes individuais concretos ao unirem-se, sendo a matéria o princípio da individuação.

 

 

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Sexta-feira, 8 de Outubro de 2010
A matéria é princípio de individuação?

São Tomás de Aquino escreveu:

 

«Mas, como se disse, a determinação da espécie, em relação ao género, realiza-se por meio da forma,enquanto que a determinação do individual, em relação à espécie, por meio da matéria.» (Tomás de Aquino, O Ente e a Essência, Contraponto, pag. 80-81; o negrito é meu).

 

Esta tese aristotélica é ilógica. A individuação é aqui confundida com materialização. Sendo, por definição, a matéria prima destituída de forma, toda ela geraria a mesma coisa se unida com uma dada forma ou essência. Seria uma materialização sem verdadeira individuação. Esta seria meramente numérica mas não quiditativa. Por exemplo, a forma específica homem unida à matéria prima (hylé) geraria uma série de homens absolutamente iguais entre si. O que permite distinguir um homem do outro, isto é, revelar o quid de cada um? É a matéria prima, pura?  Não. É uma matéria impregnada de uma dada forma aqui e outra ali.

 

É, pois, pela forma imanente à matéria que os diversos indivíduos se distinguem entre si.

 

 

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Terça-feira, 16 de Fevereiro de 2010
Do uso ambíguo do termo Ente (Seiendem) na filosofia de Heidegger

Heidegger oscila muitas vezes, de forma quase imperceptível, ao denominar a mesma realidade primordial como Ser (Sein, em alemão) ou como Ente (Seiendem). Ora existe uma diferença: ainda que no discurso heideggeriano Ente e Ser tenham muitas vezes o mesmo significado, o Ente é um pouco mais «corpóreo», concentrado, do que o Ser no sentido mais lato, que é o de existência geral e de conexão de essências.. Não esqueçamos que Ente é o que é, uma coisa ou um estado presente expresso no gerúndio «sendo», e Ser é um verbo multitemporal, que engloba o passado «foi», «foram» e o futuro «será», «serão».

 

Assim Heidegger escreveu:

 

«O ser-aí (Dasein)  embora situado em pleno ente (Seiendem) e por ele [afectivamente] disposto – está lançado como livre para poder-ser no meio dos entes (Seiende). (…) Semelhante impotência (dejecção), porém, não é primordialmente o resultado da invasão do ser-aí (Dasein) pelo ente (Seiendem), mas determina o seu ser (Sein) (Martin Heidegger, «A essência do fundamento» (Vom Wesen des Grundes), Edições 70, Lisboa, Pág. 125; a letra negrita é colocada por mim).

 

 

 

Este discurso propicia uma pequena ambiguidade: o ente, citado em primeiro lugar, que dispõe o Dasein (cada homem) e no meio do qual este está, é o ser (Sein) referido em outros textos de Heidegger e difere profundamentes dos entes (Seiende), citados em segundo lugar, que são, por exemplo, cavalo, cama, automóvel, casa, cidade, rua, planície, rio, ar, céu; por outro lado, o ser (Sein) citado, em último lugar, é simultaneamente, a essência do homem ou ser-aí e a conexão dessa essência ao ente mais geral ou ser como transcendente.

 

 

 

O Ente (com E maiúsculo) é uma essência geral mas o Ser pode interpretar-se não só como essência geral mas como existência geral – a existência não é presença apenas num plano material, é admissível a existência, isto é, realidade, de arquétipos, deuses, anjos, almas «humanas», diabos, etc., fora do plano material – e ainda como essência particular (a essência do ente ser-aí, isto é cada homem; a essência da coisa ou ente diante dos olhos, isto é, da cadeira, do computador, do gato, da paisagem, etc).

 

 

 

Numa passagem de «Carta sobre o humanismo», como noutros textos, Heidegger coloca a palavra ser (Sein) onde, em outros textos, coloca «Ente» (Seindem):

 

«Mas o ser (Sein)– que é o ser? Ser é o que é mesmo. Experimentar isto e dizê-lo, é a aprendizagem pela qual deve passar o futuro – não é Deus, nem um fundamento do mundo.» (Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Pág.67).

 

 

 

Esta oscilação no vocabulário heideggeriano, entre o ser como essência e o ser como conexão de essências e existência geral, volta-se contra o próprio Heidegger que escreveu:

 

«Toda a ontologia, por rico que seja e bem cravado que esteja o sistema de categorias de que disponha, resulta no fundo cega e um desvio da sua mira mais peculiar, se antes não esclareceu suficientemente o sentido do ser, por não ter concebido o esclarecê-lo como seu problema fundamental» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pág. 21).

 

 

 

De facto, Heidegger nunca esclareceu explicitamente a acepção de ser no seus quatro sentidos: existência ou realidade geral (material, vital, energética ou espiritual), essência universal, conexão de essências, coisa (ente). Não faz estas distinções com clareza meridiana, não definiu cada uma delas, expondo-as num quadro sinóptico. E por isso mesmo, a sua ontologia falhou no esclarecimento do problema capital do tempo, ainda que ele tivesse a pretensão de ter ultrapassado a ontologia tradicional. Não ultrapassou.

 

 

 

Parménides desvinculou o ser, do tempo mutável – não do tempo eterno – e aí, nessa posição teórica, começou o erro de Heidegger ao cingir-se à concepção parmenídea da «irrealidade do fluxo do tempo», tempo que estaria petrificado num presente irremovível. É Heidegger quem não se afasta da tradição ontológica de interpretar o tempo como extrínseco ao ser, de conceber o tempo original como temporizador horizontal- extático ou criador do tempo comum que engloba passado, presente e futuro. O tempo é apenas a duração das formas que constituem o ser e, como tal, encontra-se, de modo intrínseco, tanto no ser imóvel e imutável como no ser em devir. O tempo é o compasso que desenha a circunferência do ser. É pois, como eternidade, a dimensão estática (a ponta fixa) e, como tempo irregular, a dimensão extática (a ponta móvel do compasso) do ser.

 

 

 

Aliás, a própria concepção de Parménides sobre o ser (Ente) inclui sub-repticiamente o conceito de tempo uma vez que é «sem fim» na duração:

 

«Um só discurso nos fica como via: é; neste há muitos sinais de que o ente é ingénito e imperecível, pois é completo, imóvel e sem fim. Não foi no passado, nem será, pois é agora a todo o momento, uno, contínuo.(..)

 

«Como poderia nascer? Pois se nasceu, não é, nem há-de ser alguma vez. Portanto, fica extinto o nascimento e ignorada a destruição. » (discurso de Parménides in Fragmento 8, Simplício, Física 145; a letra negrita é posta por mim).

 

 

 

A eternidade é o tempo ingénito e infinito ou o tempo infinito mas gerado. Inevitavelmente, a eternidade é um acidente essencial do ser.

 

 

 

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Terça-feira, 19 de Janeiro de 2010
O conceito de «mundo» em Heidegger e o intento de rectificar a linguagem tradicional

  Uma das linhas de força da filosofia de Heidegger é a tentativa de destruição ou de rectificação da linguagem que foi sedimentando, ao longo dos séculos, no leito do rio da ontologia e da filosofia. Muitos méritos cabem a Heidegger nesta tarefa hermenêutico-etimológica. Recuperou a tradição que Platão expusera no «Crátilo» - as letras e as palavras como «pinturas», imagens, com fundamento analógico, das ideias e objectos físicos – e que Aristóteles prosseguiu na «Metafísica» . Mas há esforços de Heidegger que, a meu ver, resultaram inúteis: é o caso, por exemplo, da tentativa de atribuir à palavra “mundo” um significado distinto do de «meio ou ambiente envolvente de numerosas entidades físicas ou espirituais».

 

«”Mundo”, todavia, na expressão «ser-no-mundo», não significa, de modo algum, o ente terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo o “mundano” em oposição ao "espiritual". "Mundo", naquela expressão, não significa de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ex-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura de ser, que é o modo como o próprio ser é; este projectou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Projectado desta maneira, o homem está postado "na abertura do ser". Mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-projectado de sua essência. O "ser-no-mundo" nomeia a essência da ek-sistência, com vista à dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu ser o “ex” da ex-sistência. Pensada a partir da ex-sistência, “mundo” é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ex-sistência.» ((Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Págs 99-100; a letra; a letra negrita é posta por mim ).

 

Em termos simples, o ser compara-se a uma floresta densa da qual é projectada a essência do homem numa clareira da floresta designada por mundo. Mas a clareira é, simultaneamente, interior e exterior ao eu humano. Interior, em parte: o mundo entra dentro do homem, na medida em que só este tem a percepção sensorial-intelectual da totalidade dos seres que o povoam; o mundo está fora do homem porque, como rede, se estende sobre e engloba os "entes diante dos olhos" (exemplo: nuvens, mares, florestas) , os «entes à mão» (exemplo: automóveis, talheres, computadores, utensílios à mão»)  e até o «ser aí» - cada homem - em certa medida.

 

 Para Heidegger, o mundo não é o universo físico (mundo terreno)  nem o espaço metafísico (mundo espiritual divino). Não é o âmbito do ente. O que é então? É a abertura do ser, a clareira do ser.

 

Mas isto é, de facto, algo incoerente. A abertura e a clareira são, apesar de Heidegger o negar, um âmbito, um espaço, físico ou meramente psíquico, onde são dispostos os entes (árvores, cães, planícies, casas, mares,etc) . Seja intra anima ou extra anima ou ambas a coisas – de facto, é ambas as coisas -   o mundo é sempre um âmbito, um vasto «círculo»  ou «esfera» no seio do qual se plantam os entes.

 

O mundo pertence ao ser e ao homem, que é o ser-aí. Em O ser e o tempo, Heidegger disse expressamente:

 

«El mundo no es ontologicamente una determinación de aquellos entes que el “ser ahí”, por esencia, no es, sino un carácter del "ser-ahí" mismo.» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77).

 

 

O mundo é, por conseguinte, um campo sensorial-conceptual que só o homem ( ser aí) possui e no qual se projectam os objectos "físicos" ou "entes diante dos olhos". Idealidade do mundo mas não necessariamente dos objectos que o povoam, pois Heidegger diz:

 

«Los entes intramundanos son proyectados sin excepción sobre el fondo del mundo, es decir, sobre un todo de significatividad a cuyas relaciones de referencia se ha fijado por anticipado el “curarse de” en cuanto “ser en el mundo”. Cuando los entes intramundanos son descubiertos a una con el ser del "ser ahí", es decir, han venido a ser comprendidos, decimos que tienen "sentido"). .» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77; a letra negrita é nossa). 

 

Isto significa que os entes intramundanos – rios, campos, animais  não fazem parte do ser do homem (“ser aí”) são-lhe exteriores ou, no mínimo, correlatos (exteriores-imanentes como gémeos siameses). Não sabemos, pois, se a matéria existe em si mesma. Sabemos, sim, que, na óptica de Heidegger, os objectos são exteriores ao ser-aí - mas serão ideias autobsistentes ou corpos físicos reais?  Ou algo indeterminado?  Na imagem heideggeriana do ser como floresta e do ser-aí (homem) como colocado na abertura ou clareira do ser (mundo) não se esclarece o lugar dos entes intramundanos: estão na clareira mas foram projectados. A partir de onde? Heidegger não o diz. Parece-me lógico que os entes intramundanos (exemplo: a nuvem, a pedra, a montanha) sejam projectados desde o interior da floresta densa onde subsistem, presumivelmente,  como «árvores», algo comparáveis aos arquétipos platónicos.

 

Na passagem abaixo, Heidegger rejeita o realismo e a própria fenomenologia como corrente intermédia dos correlativos para afirmar um ontologismo ´- a realidade, nem material nem espiritual, fora do sujeito, é o ser - que tem, sem dúvida, a influência do idealismo kantiano, fazendo corresponder o ser ao númeno kantiano exterior ( objecto incognoscível, exterior, como Deus e mundo metafísico) e o ser-aí (Dasein)  ao númeno kantiano interior (objecto interior, como alma imortal e liberdade).

 

«O homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um «sujeito», pense-se este como «eu» ou como «nós». Nunca é também primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre se refere, ao mesmo tempo, a objectos, de tal maneira que a sua essência consistiria na relação sujeito-objecto. Ao contrário, o homem primeiro é, em sua essência, ex-sistente na abertura do ser, cuja aberta ilumina o «entre» em cujo seio pode «ser» uma «relação» de sujeito e objecto. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo,Págs 99-100).

 

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