Domingo, 26 de Abril de 2009
Karl Popper e o ataque incoerente à Dialéctica

 Karl Popper ataca a dialéctica sem a compreender integralmente. Tal como Kant, Popper toma a dialéctica como uma erística, capaz de sair fora da lógica, uma arte sofística de argumentar, uma visão eclética paradoxal e não uma ciência holística e hierarquizadora de géneros, espécies e dos diversos aspectos de cada fenómeno.

 

Escreveu Popper:

 

 «A dialéctica (no sentido moderno, isto é, especialmente no sentido em que Hegel usou o termo) é uma teoria que afirma que algo – mais particularmente o pensamento humano – se desenvolve de uma forma caracterizada por aquilo a que se chama a tríade dialéctica: tese, antítese e síntese. (…)»

 

 «E é quanto basta relativamente ao que se chama tríade dialéctica. Não pode haver grandes dúvidas de que a tríade dialéctica descreve razoavelmente bem determinadas fases da história do pensamento, em especial certos desenvolvimentos de ideias e teorias, bem como dos movimentos sociais que neles se inspiram. Esse desenvolvimento dialéctico pode ser “explicado” demonstrando que se processa em conformidade com o método de ensaio e erro que atrás analisámos. Mas temos de admitir que não é exactamente o mesmo que o desenvolvimento (atrás descrito) de uma teoria por ensaio e erro. A nossa anterior descrição do método de ensaio e erro envolvia apenas uma ideia e a sua crítica, ou, usando a terminologia dos dialécticos, a luta entre uma tese e a sua antítese. Originalmente, não fizemos quaisquer sugestões acerca de um desenvolvimento ulterior, não indicámos que a luta entre uma tese e uma antítese desembocaria numa síntese. Sugerimos antes que a luta entre uma ideia e a sua crítica, ou entre uma tese e uma antítese, conduziria à eliminação da tese (ou talvez da antítese), se esta não se revelasse satisfatória; e que a competição entre teorias só conduziria à adopção de novas teorias se estas existissem em número suficiente e pudessem ser postas à prova .(…)»

 

 «Temos de ter cuidado, por exemplo, relativamente a uma série de metáforas usadas pelos dialécticos e muitas vezes levadas, infelizmente, demasiado a sério. Um exemplo é a afirmação do dialéctico de que a tese “produz” a sua antítese. Na verdade, é apenas a nossa atitude crítica que produz a antítese, e onde uma tal atitude não esteja presente – o que é muitas vezes o caso – nenhuma antítese se produzirá. Do mesmo modo, temos que ter cuidado para não pensar que é a “luta” entre uma tese e a sua antítese que “produz” uma síntese. »

 

 «Tendo deste modo observado que as contradições – especialmente, como é óbvio, a contradição entre uma tese e uma antítese, que «produz» um progresso sob a forma de síntese – são extremamente fecundas e constituem, na verdade, as forças motrizes de qualquer progresso do pensamento, os dialécticos concluem – erradamente como veremos – que não há necessidade de evitar essas fecundas contradições. E afirmam mesmo que as contradições não podem ser evitadas, dado que surgem em toda a parte no mundo.»

 

 «Uma tal afirmação equivale a um ataque contra a chamada “lei da não-contradição” (ou, mais concretamente, contra a “lei da exclusão das contradições”) da lógica tradicional: uma lei que determina que dois enunciados contraditórios nunca podem ser ambos verdadeiros, ou que um enunciado que consista na conjunção de dois enunciados contraditórios deve ser sempre rejeitado como falso por razões puramente lógicas. Fazendo apelo à fecundidade das contradições, os dialécticos afirmam que esta lei da lógica tradicional deve ser rejeitada. E declaram que a dialéctica conduz deste modo a uma nova lógica – uma lógica dialéctica. Assim sendo, a dialéctica, que eu até aqui apresentei como uma doutrina meramente histórica – uma teoria do desenvolvimento histórico do pensamento – revelar-se-ia uma doutrina muito diferente: seria em simultâneo uma teoria lógica e (como veremos) uma teoria geral do mundo.»

 

 «Estas são afirmações portentosas, mas sem o mínimo fundamento. Não se baseiam, na verdade, em nada melhor do que uma maneira de falar vaga e confusa.»

 

 «Os dialécticos dizem que as contradições são fecundas, férteis ou produtivas em termos de progresso, e nós admitimos que isso não deixa de ser, em certo sentido, verdadeiro. Será verdadeiro, porém, unicamente na medida em que estejamos dispostos a não tolerar contradições e a modificar qualquer teoria que as envolva. Por outras palavras, determinados a não aceitar nunca uma contradição. É somente em virtude dessa nossa determinação que a crítica, isto é, a indicação de contradições nos induz a modificar as nossas teorias e, nessa medida, a progredir.»

 

  (Karl Popper, Conjecturas e Refutações, Almedina, Coimbra 2006, pag 419-422; o bold é colocado por nós)

 

 Popper tem alguma razão neste texto. Mas carece de razão numa parte substancial dele. A interpretação da síntese como um terceiro momento do círculo ou espiral que se desenvolve é uma limitação hegeliana, ao menos de carácter terminológico,  na definição da dialéctica. Nesse ponto, Popper parece certo.

 

Kierkegaard, por exemplo, negou a existência da síntese circunscrevendo a dialéctica ao Aut/Aut (Ou..Ou) da tese-antítese. Também não parece que a antiga filosofia chinesa, em particular o taoísmo, que divide a Vida e o Cosmos em dois princípios opostos, relativos, o Yang (Luz, Calor, Expansão, Fogo, Masculino) e o Yin (Escuridão, Frio, Contração, Água, Feminino) consagre a síntese (de Hegel) como instância independente no processo dialéctico. E na teoria psicanalítica de Freud, nitidamente dialéctica, discernimos o Ego – o mediador, a síntese, de certo modo - como uma instância não posterior mas simultânea com o Id ou Infra-Ego (tese) e o Super-Ego (antítese)- sem embargo de o Ego preceder geneticamente o Super-Ego. De facto, a síntese – ou chamar-lhe-emos síncrese, neste caso? - pode existir e existe em simultâneo com a tese e a antítese e constitui:

 

 1)      A mediação ou mistura parcial destas.

 

 2)      O conjunto das duas. Neste caso, não existiria separada delas ou de uma parte delas, mas englobá-las-ia, seria a soma exacta das duas. Hegel chama a isto o tôdo como unidade dos contrários, não o designa por síntese.

 

 Parece que Platão admitiu a mediação, o intermédio entre os contrários  – que Hegel chama síntese –mas não o situou isoladamente num momento posterior. A crítica de Popper à tríade é, pois, parcialmente justa no que se refere à tríade diacrónica estabelecida por Hegel mas injusta, errada, no que se refere à tríade sincrónica estabelecida por dialécticos como Lao Tse, Platão, Kierkegaard e muitos outros, também chamada lei da unidade e luta de contrários formulada por Heráclito e Hegel, entre outros.

 

Popper reconhece aliás, acima, que a luta entre uma ideia e a sua crítica é uma luta entre tese e antítese e que conduz, muitas vezes, à eliminação da tese. Estamos de acordo. É, pois, um movimento dialéctico. O método de ensaio e erro, é ao contrário do que sugere Popper, perfeitamente dialéctico: o ensaio é a antítese da formulação teórica, como o acto é a antítese da potência (na terminologia aristotélica); o erro constatado pelo ensaio é a antítese da formulação teórica original, destrói parcial ou totalmente esta, impõe a sua rectificação ou eliminação. Ao dizer que a dialéctica não impregna o método de ensaio e erro, como seu carácter intrínseco, mas que é algo de «extrínseco» à falsificabilidade, à eliminação indefinida do erro pelo «racionalismo crítico», Popper mostra não compreender a universalidade da dialéctica como lógica multilateral.

 

 Ademais, Popper deturpa a dialéctica ao dizer que esta nega o princípio da não-contradição ( ou «lei de exclusão das contradições»). É uma absoluta falsidade. Isso é interpretar dialéctica como sofística – como o fazia Kant com as suas antinomias da razão pura que dão lugar ao paradoxo (incoerência do raciocínio como por exemplo: «Deus existe e não existe no mesmo instante e sob o mesmo aspecto»; «2+2 é igual 4 e 2+2 é igual a -4»).

 

 Popper ignora que «toda a diferença é uma contradição» - – a diferença insere-se no princípio do terceiro excluído; exemplo, verde e azul contradizem-se porque azul pertence ao conjunto não verde – - e interpreta o termo contradição como erro lógico, paradoxo, não como realidade multilateral de contrários e contraditórios. Há contradição dentro da lógica (a dialéctica) e contradição fora da lógica, (paralogismo, sofisma, a sofística, o ecletismo paradoxal). Esse é o equívoco de Popper: não distingue estas duas formas de contradição, ao menos no plano teórico.

 

 A dialéctica autêntica engloba os três princípios da lógica clássica: identidade, não contradição e terceiro excluído. Não se desfaz deles. Não os atropela. Aliás o princípio da não contradição é eminentemente dialéctico: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto duas qualidades ou estados contrários entre si; mas pode ser qualidades ou estados contrários ao mesmo tempo em aspectos diferenciados.

 

Por exemplo, a dialéctica marxista –- note-se que a teoria marxista não é dialéctica em toda a sua extensão, o comunismo mundial final é uma ideia metafísica que foge à lei dialéctica de «um divide-se em dois» (o proletariado divide-se em dois: governantes e governados e isso gera uma nova sociedade de classes desfazendo o comunismo ideal) –-  diz o seguinte: a burguesia é uma classe progressista no aspecto de combater a classe feudal e, simultaneamente, é uma classe reaccionária no aspecto de combater as reivindicações socialistas revolucionárias do proletariado. Isto respeita perfeitamente o princípio da não contradição: a burguesia é, ao mesmo tempo, uma classe revolucionária, num aspecto, e uma classe reaccionária, noutro aspecto. Não há aqui confusão nenhuma.

 

 Não restrinjamos a dialéctica ao marxismo. Há muito mais dialéctica para além da visão marxista do mundo.

 

 Existe, por exemplo, uma contradição – que neste caso assume a forma de contrariedade (termo aristotélico) isto é oposição directamente bipolar como branco/negro e grande/pequeno -  a cada fracção de segundo, entre a força centrífuga do electrão do átomo do hidrogénio e a força centrípeta do núcleo. É essa contradição ou luta de forças contrárias que mantém o átomo uno. Popper seria imbecil se negasse que se trata de uma contradição e, mais ainda, se tivesse a pretensão de suprimi-la.

 

 A dialéctica impregna a fisiologia humana e a naturopatia (teoria médico-higienista e metodologias práticas) que visa preservá-la: a doença, aguda ou crónica, é uma luta entre a força vital, centrífuga (que actua de dentro para fora) e as toxinas (sais de ácido úrico, sulfúrico; colóides, etc) centrípetas (que se deslocam de fora para dentro e entopem o organismo). Assim a febre é simultaneamente um mal e um bem: um mal, na medida em que gera mal-estar e impede, em regra, as pessoas de se comportarem de forma prazenteira e normal; um bem, na medida em que a crise de suores e urinas carregadas existente na febre, faz sair do corpo, pela pele e pelo aparelho urinário, as substâncias tóxicas, restabelecendo a saúde.

 

 Bem e mal são contrários entre si mas, neste caso, não há qualquer violação do princípio da não contradição, pois bem e mal na febre aplicam-se a diferentes aspectos da fisiologia humana. Segundo parece, Popper, nem sequer conhecia a visão dialéctica da naturopatia científica neo-hipocrática sobre a saúde e a doença. É natural que não reconhecesse que a luta de contrários – e a lógica multilateral que lhe corresponde – atravessa por completo a natureza física e biocósmica nos seus infinitos aspectos, é a essência desta.

 

www.filosofar.blogs.sapo.pt

 

f.limpo.queiroz@sapo.pt

 

© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 

 

 

 

 

 

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 18:14
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