Há vários equívocos no manual de Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, sem embargo de o livro ter méritos.
SÓ O CONHECIMENTO PROPOSICIONAL PODE SER TRANSMITIDO?
Bertrand Russel teorizou haver três tipos de conhecimento: o saber fazer (exemplo: andar de bicicleta, nadar), o conhecimento por contacto (exemplo: olhar o rio Tejo a partir do cais das colunas, saborear gaspacho) e o conhecimento proposicional (exemplo: imaginar que o Big Bang se deu há 15 000 milhões de anos, supor que a matéria é composta de átomos, quarks e leptons).
O manual afirma.
«Apenas o conhecimento proposicional pode ser directamente transmitido de pessoa para pessoa».
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 130).
Isto não é verdade. O treinador de guarda-redes transmite o seu saber ao guarda redes rematando para este defender a bola e indicando-lhe se deve sair ou não ao encontro do avançado. Isto é saber fazer e conhecimento por contacto.
DAVID HUME OPUNHA-SE AO CEPTICISMO?
Sobre Hume escrevem os autores do manual:
«Tal como Descartes, David Hume recorre a uma abordagem fundacionalista para responder ao desafio cético.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 162).
Hume responde ao desafio céptico? Confusão dos autores. Hume sempre foi céptico, sempre duvidou da existência de objectos físicos exteriores à mente humana:
«A razão não nos dá e é impossível que alguma vez nos dê, em qualquer hipótese, qualquer convicção da existência contínua e distinta dos corpos. Esta opinião tem de se atribuir inteiramente à imaginação, que passa a ser o objecto da nossa investigação ».(Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 238; o destaque a negrito é posto por mim).
O FUNDACIONALISMO OPÕE-SE AO CEPTICISMO?
O manual opõe erroneamente fundacionalismo a cepticismo sem compreender que este é, basicamente, uma modalidade de fundacionalismo. Lê-se o seguinte no manual:
«O fundacionalismo é uma das mais antigas respostas ao problema do cepticismo. Os fundacionalistas rejeitam a primeira premissa do argumento cético da regressão infinita. Para estes autores, nem todas as nossas crenças se justificam com base em outras crenças, pois existem crenças que são de tal modo evidentes que podemos considerar que se justificam a si mesmas».
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 139).
Ora, nem todo o cepticismo sustenta a regressão infinita. E há fundacionalistas que sustentam a regressão infinita: por exemplo, os primeiros filósofos gregos como Tales de Mileto, que defendia a água como fundamento do mundo e uma regressão infinita do ciclo caos-cosmos, e Heráclito de Éfeso, que sustentava ser o fogo o fundamento do mundo e postulava a regressão infinita do ciclo caos (fogo em estado puro)- cosmos (fogo convertido em montanhas, rios, animais, homens, etc.). Quando o cepticismo afirma que «nada se pode conhecer, tudo é duvidoso» está a ser um fundacionalismo, estabelece uma verdade primeira que funda todo o seu sistema de pensamento.
A INCAPACIDADE DE DISTINGUIR COM CLAREZA "DISJUNÇÃO INCLUSIVA" DE "DISJUNÇÃO EXCLUSIVA", CONCEITOS FALACIOSOS
Os autores caem na falácia da lógica proposicional de colocar o mesmo tipo de disjunção sob duas formas diferentes baptizando uma de inclusiva e outra de exclusiva. E nem conseguem defini-las teoricamente limitando-se a exemplificar. Escrevem:
«Disjunção inclusiva
«A disjunção inclusiva "O José ganhou o euromilhões ou a Vera ganhou o Euromilhões" só é falsa se ambas as disjuntas forem falsas; será verdadeira se, nas restantes combinações possíveis de valores de verdade, pelo menos uma das proposições for verdadeira.» (...)
«Disjunção exclusiva»
«A disjunção exclusiva "Ou Sócrates nasceu em Atenas ou nasceu em Roma" diz-nos que uma das disjuntas é verdadeira , mas não as duas, pois é falso que Sócrates possa nascer em Atenas e em Roma: ou nasceu numj lugar ou nasceu no outro, não sucede que nasça nesses dois lugares ao mesmo tempo.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 58).
Afinal o que distingue a "disjunção inclusiva" da "disjunção exclusiva", segundo os teóricos da lógica proposicional? É que a primeira exprime-se por "ou" e a segunda exprime-se por "ou ...ou". Isto é ridículo. É o micropensamento de filósofos analíticos como Wittgenstein ou Bertrand Russel, imitado acriticamente por estes autores do manual. Chegamos a este ponto inacreditável: dizer «Sócrates nasceu em Atenas ou nasceu em Roma» é uma disjunção «inclusiva» mas dizer «Ou Sócrates nasceu em Atenas ou nasceu em Roma» é uma disjunção ...«exclusiva». Não há paciência para tanta ingenuidade «filosófica» que vê diferenças de conteúdo onde elas não existem...
Ou..ou.. é o mesmo que ou.
A ERRÓNEA TABELA DE VERDADE «CONDICIONAL» NA LÓGICA PROPOSICIONAL
Este manual escreve o seguinte sobre a tabela de verdade simples condicional:
«Condicional»
«A condicional "Se o conhecimento é sensação, então os porcos têm conhecimento» apenas é falsa se a antecedente for verdadeira e a consequente falsa. Deste modo na fórmula proposicional (P ⇒Q) todas as possíveis combinações de valor de verdade serão verdadeiras, exceto quando a antecedente for verdadeira e a consequente falsa.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 59; o destaque a negrito é posto por nós).
Segundo esta "lei" se antecedente e consequente são falsas a implicação é verdadeira. Eis um exemplo que desmente esta tabela de verdade:
Se os mares são imaginários (P), então os unicórnios existem na Terra (Q).
Ambas as frases são falsas e a sua implicação é falsa, ao contrário do que sustenta a lógica proposicional exposta neste manual.
UMA DESVALORIZAÇÃO INJUSTA DA SOFÍSTICA
Sobre a sofística na antiga Grécia, os autores do manual adoptam a posição clássica das filosofias católica e cristãs: Sócrates era «o pesquisador da verdade, o honrado filósofo», e os sofistas eram «filósofos desonestos, mentirosos, mestres na retórica manipuladora», ainda que fossem professores de gramática, dialética, aritmética, geometria, astronomia, música. Lê-se no manual:
«No entanto, os sofistas não olhavam a meios para atingirem os seus fins, ou seja, serem bem-sucedidos e eficientes nas disputas públicas, não se preocupando com a verdade. O que lhes interessava não era chegar à verdade, mas sim ganhar a todo o custo a discussão, por mais incoerentes que fossem as suas teses. Desta forma, a arte de argumentar tornava-se uma arte que recorria apenas a manipulações, falácias, apelo às emoções e sentimentos, entre outras ferramentas, para derrotar os adversários.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 105; o destaque a negrito é posto por nós).
«Sócrates opôs-se aos sofistas e à retórica manipulativa, e foi fundamentalmente um filósofo que procurou estimular o pensamento crítico na ágora(...) Portanto, a retórica em Sócrates é fundamentalmente distinta da dos sofistas. Vejamos as três características principais da retórica de Sócrates: a ironia, a maiêutica e o diálogo.» (ibid, pág. 107).
Quem pode garantir que a retórica de Sócrates era superior à dos sofistas? Sócrates procurava, por exemplo, demonstrar a imortalidade da alma humana recorrendo à analogia entre o ser humano e a árvore e a semente: a semente perpetuará a vida finita da árvore, etc.. Este raciocínio maieutico está isento de manipulação? A sofística é percursora do idealismo ontológico, do fenomenismo de David Hume, da própria filosofia analítica do século XX. Górgias de Leontinos, um dos mais famosos sofistas, preocupava-se com a verdade quando expôs o seguinte:
«2. No livro intitulado «Do não ser ou da natureza», Górgias definiu três princípios, a saber: primeiro, que nada existe, segundo, se algo existe é incognoscível e, terceiro, se fosse cognoscível não poderia ser nem comunicado, nem divulgado». (Pinharanda Gomes, Filosofia Grega Pré-Socrática, Guimarães & C.ª Editores, pág. 273).
Isto é mentir? De modo nenhum. É buscar a verdade, de uma certa perspectiva. Uma coisa é a sofística como movimento filosófico respeitável, portador do subjectivismo, do cepticismo, do relativismo, do pragmatismo, outra coisa é a prática de sofistas, advogados, professores e políticos que lucraram e ganharam a vida apelando a conceitos filosóficos antiplatónicos ou não platónicos.
Como pode considerar-se Sócrates como o detentor e pesquisador da verdade, quando ele, tal como o seu discípulo Platão, escondia ou ignorava o determinismo planetário, isto é, que a vida humana e a vida em geral na Terra está e sempre esteve completamente submetida aos movimentos dos planetas e do Sol na esfera celeste?
Os filósofos (Descartes, Hume, Kant, Hegel, Heideger, Ludwig Wittgenstein, Bertrand Russel, Edmund Gettier, Richard Swinburne, Simon Blackburn, Jerry Fodor, Thomas Nagel, Collin McGinn, Anthony Kenny, etc.) e os professores de filosofia actuais, ao ignorarem e negarem a predestinação da vida humana pelas posições astronómicas dos corpos celestes, não fizeram ou não fazem mais do que sofismar a verdade, mentir, tal como Sócrates o fez.
E, se têm dúvidas, expliquem por que razão teria de ser «coincidência» e não lei astrofísica o facto de Júpiter, cujo ciclo é de 12 anos no Zodíaco, ter estado praticamente na mesma posição astronómica em duas vitórias do PS em eleições legislativas nacionais em Portugal: 25 de Abril de 1983, Júpiter em 9º do signo de Sagitário, vitória do PS de Mário Soares sobre o PSD de Mota Pinto; 1 de Outubro de 1995, Júpiter em 10º do signo de Sagitário, vitória do PS de António Guterres.
As cátedras universitárias de filosofia e a grande mídia continuam a esconder a verdade, a censurar os que foram mais longe que elas na aventura do conhecimento, na alethéia (desocultação da verdade).
AUSÊNCIA DE REFERÊNCIA AO EU INEXISTENTE, UMA TESE CAPITAL DE HUME
Nas 17 páginas em que expõe a teoria de David Hume, da 162 à 179, o manual «Como pensar tudo isto?» omite um ponto capital, que não é empirista mas racionalista, da doutrina de Hume: a tese contraintuitiva de que o eu não existe.
Escreveu Hume (o negrito não é dele):
« Há certos filósofos que imaginam que temos permanentemente a consciência íntima do que chamamos o nosso eu; que sentimos a sua existência e a sua permanência; e que estamos seguros, mais do que através da evidência de uma demonstração, da sua identidade e simplicidade perfeita. »(....)
«Mas o eu, ou pessoa, não é uma impressão; é aquilo a que supostamente se referem as nossas diversas impressões e ideias. Se uma impressão gera a ideia do eu, essa impressão deve permanecer invariavelmente idêntica ao longo de toda a nossa existência, uma vez que se considera que o eu existe desse modo. Ora, não há nenhuma impressão constante e invariável. A dor e o prazer, as paixões e as sensações sucedem-se umas às outras, nunca existindo todas em simultâneo. A ideia do eu não pode, portanto, ter derivado de nenhuma dessas impressões ou de qualquer outra; consequentemente, uma tal ideia não existe.» (...)
«Pela minha parte, quanto penetro mais intimamente no que designo por eu, defronto-me sempre com uma ou outra percepção particular, de calor ou de frio, de luz ou de sombra, de amor ou de ódio, de dor ou de prazer. Nunca posso apreender-me a mim em momento algum, sem uma percepção, e apenas posso observar a percepção. Quando as minhas percepções deixam de operar por algum tempo, como durante um sono tranquilo, durante esse tempo deixo de ter consciência de mim, podendo realmente dizer-se que não existo».
(David Hume, A treatise of Human Nature, Oxford, Claredon Press, 1978, Livro I, 4ª Parte, Secção VI).
Hume não é um mero empirista porque usa a razão para negar o eu, centro do conhecimento humano. Há uma consciência empírica ou intuitiva do «eu» presente em Descartes e na apercepção pura transcendental em Kant mas que Hume, racionalmente, suprime.
PERSUASÃO OPÕE-SE A MANIPULAÇÃO?
Seguindo a distinção equívoca, estabelecida pelo programa de filosofia, entre persuasão e manipulação, que não são conceitos contrários mas colaterais, o manual expõe o seguinte:
« De acordo com o que foi dito podemos concluir que:
A manipulação consiste em levar alguém a aceitar uma tese sem avaliar criticamente (isto é, sem examinar de ,modo rigoroso e imparcial) as razões que existem a seu favor e contra ela.
A persuasão consiste em oferecer boas razões para que alguém seja conduzido a aceitar uma determinada tese.»
(Domingos Faria, Luís Veríssimo e Rolando Almeida «Como pensar tudo isto? Filosofia 11º ano» da Editora Sebenta, pág. 104; o destaque a negrito é posto por nós).
Ora existe manipulação sem persuasão quando se trata de um auditório que escuta um discurso? Não. Hitler e o partido nazi persuadiram, isto é, manipularam uma parte do eleitorado alemão a darem-lhes uma maioria relativa de deputados no parlamento em Março de 1933.
Há duas formas de persuasão: manipulatória e aleteiológica, isto é, desocultadora da verdade. O programa de filosofia equivoca-se ao opor manipulação a persuasão.
NOTA: COMPRA O NOSSO «DICIONÁRIO DE FILOSOFIA E ONTOLOGIA», 520 páginas, 20 euros (portes de correio para Portugal incluídos), CONTACTA-NOS.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Em «Janelas para a filosofia», Aires Almeida e Desidério Murcho, autores de manuais escolares do 10º e 11º ano de escolaridade em Portugal, membros influentes do «lobby» da filosofia analítica que inclui Ricardo Santos, João Branquinho, Pedro Galvão, Sara Bizarro e outros académicos, ensaiam uma exposição sobre os problemas centrais da filosofia. Acontece que as janelas que aqueles dois autores abriram dão para o pátio da sofística e, acidentalmente, para a planície vasta da filosofia, olhada de viés, neste livro.
UMA EQUÍVOCA DEFINIÇÃO DE RELATIVISMO
Um dos erros teóricos de Almeida e Murcho patentes neste livro, seguindo aliás o célebre Peter Singer, é o seu conceito de relativismo. Escrevem:
«1. Relativismo
«O relativismo defende que os juízos de valor são relativos às sociedades. Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada. Isto contrasta com os juízos de facto...» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 40; o destaque a negrito é colocado por mim).
Esta definição é parcialmente incorrecta: diz que os juízos de valor variam de sociedade para sociedade, o que é verdade, em princípio, mas oculta ou escamoteia o facto de relativismo ser a variação de valores no interior de uma mesma sociedade, segundo as classes sociais, os grupos políticos, religiosos e artísticos. É relativismo haver em Portugal uma lei que consagra o casamento de gays e lésbicas e uma maioria social que condena este tipo de casamento, é relativismo haver dentro da mesma sociedade portuguesa defensores dos valores de esquerda e defensores dos valores de direita, religiosos católicos, islâmicos, budistas, agnósticos e ateus,etc.
A frase «Quando uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor não pode estar enganada», incluída na definição de relativismo, é um verdadeiro absurdo. É apresentar relativismo como um dogmatismo absolutista e prova a debilidade do pensamento de Aires Almeida e Desidério Murcho, pseudo-filósofos que fazem «copy paste» de Simon Blackburn, de Peter Singer e outros. Eles não pensam: dizem coisas sem nexo como, por exemplo, que "segundo o relativismo, uma sociedade não pode estar enganada ao condenar ou aceitar algo"...
A PSEUDO-REFUTAÇÃO DA DEFINIÇÃO DE CONHECIMENTO COMO «CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA»
Edmund Gettier refutou, aparentemente, a definição clássica de conhecimento como «crença verdadeira justificada». Almeida e Murcho dão razão a Gettier e escrevem:
« Vejamos um exemplo diferente do de Gettier mas que estabelece o mesmo resultado filosófico. A Rita é apreciadora de carros antigos e tem reparado no Citroen boca-de-sapo estacionado num dos lugares reservado à administração, na garagem do edifício da empresa onde trabalha. Ela forma a crença de que um dos administradores da empresa tem um boca-de-sapo. Algum tempo depois, a Rita veio a descobrir, com grande surpresa, que o boca-de-sapo que viu era afinal de um morador daquela zona que se aproveitava para estacionar discretamente ali o seu estimado carro. O morador oportunista só tinha conseguido estacionar ali o seu cargo simplesmente porque o segurança julgava ser o boca-de-sapo de colecção que, por coincidência, a administradora Paula possuía. Até ter sido apanhado».
«O que mostra esta história? Em primeiro lugar, mostra-nos que a Rita formou uma crença verdadeira: que um dos administradores tem um boca-de-sapo. Em segundo lugar, que a Rita tem uma justificação razoável para esta crença: ela própria viu um boca-de-sapo vários dias estacionado num lugar onde apenas podem ser estacionados veículos dos administradores.(...) Parece, pois, que a Rita tem uma crença verdadeira justificada mas não tem conhecimento. Isto parece mostrar que não basta que uma crença verdadeira esteja justificada para haver conhecimento.»(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 180-181; o destaque a negrito é colocado por mim).
Qual é o erro de raciocínio de Gettier, de Almeida e Murcho relativo a este exemplo da Rita?
É o facto de considerarem que a Rita tinha uma crença verdadeira justificada ao saber que uma administradora tinha um Citroen boca-de-sapo e que um destes automóveis estava estacionado no lugar reservado junto ao edifício da administração da empresa. Pobres Gettier, Almeida e Murcho! A Rita não tinha uma crença verdadeira justificada porque não conhecia a matrícula do boca-de-sapo da administradora Paula e, portanto, não podia garantir, com segurança que o boca-de-sapo, afinal pertença de um vizinho, pertencesse à administradora. Portanto, o argumento de Gettier/ Aires/ Desidério é uma pseudo-refutação da tese de que o conhecimento é crença verdadeira justificada: o conhecimento da Rita é insuficiente, não está justificado.
FALTA DE CLAREZA SOBRE O QUE SÃO OBJECTIVISMO E VALORES OBJECTIVOS
Escrevem Almeida e Murcho:
«Valores objectivos
«O objectivismo defende que alguns valores são objectivos (e não que todos o são). Isto significa que quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada, tal como acontece com os juízos de facto.» (Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
O facto de ser falível a condenação por uma pessoa de um juízo de valor, isto é, o facto de uma pessoa se poder enganar nesse juízo, não acarreta que este juízo seja objectivo. A definição de objectivismo dada por estes autores é obscura. Afirmar que objectivismo é o facto de que« quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada» é um absurdo. Desidério Murcho e Aires Almeida são incapazes de fornecer uma definição clara de objectivismo dos valores: metem-se por vielas escuras e obscuras do pensamento, onde não há a luz da clareza racional. Não sabem distinguir objectivismo intra-anima ( por exemplo: o número 7 só existe nas mentes humanas mas é objectivo por ser comum a quase todas as mentes) de objectivismo extra-anima (por exemplo: o Mosteiro dos Jerónimos existe em Belém, como edifício de pedra, e é fisicamente objectivo).
Escrevem ainda no mesmo estilo retorcido de contornar as definições claras:
«Para compreender melhor o objectivista, temos de compreender melhor o próprio conceito de objectividade. Há várias concepções de objectividade, mas a mais relevante no que respeita à natureza dos valores considera que a imparcialidade é uma condição necessária da objectividade. O que isto significa é que os juízos de valor que são objectivos são imparciais. Por exemplo, imaginemos que a Daniela defende o juízo de valor de que quem tem olhos azuis deve ter mais direitos do que os outros. Quando lhe perguntamos porquê, responde, com toda a honestidade, que tem olhos azuis, e por isso essa medida iria beneficiá-la. É óbvio que a justificação do seu juízo de valor não é imparcial»
(Aires Almeida, Desidério Murcho, Janelas para a Filosofia, Gradiva, Novembro de 2014, pág. 44; o destaque a negrito é posto por mim).
Há aqui incoerências: Desidério e Aires falam em haver vários conceitos de objectividade, mas não explicitam mais que um, a imparcialidade, e isto é vaguismo; os juízos de valor objectivos não são imparciais, porque são juízos de valor, mas estes dois autores proclamam a sua imparcialidade; o exemplo da Daniela e do seu juízo parcial de favorecer quem tem olhos azuis está envolto numa nuvem de ambiguidade, não se percebe, com clareza, se ilustra o objectivismo ou o subjectivismo dos valores.
Almeida e Murcho não pensam dialecticamente, escarnecem da autêntica filosofia: escrevem de forma elíptica, rodeando o cerne dos assuntos, à maneira dos filósofos analíticos actuais. São o exemplo da anti-filosofia entronizada nas universidades portuguesas e brasileiras e nas grandes editoras que as secundam. Que leva a Gradiva de Guilherme Valente a editar estes frágeis pensadores? Ah, pois: o professor Aires Almeida é o responsável da secção de filosofia da editora Gradiva...Pode ser um pensador medíocre, mas tem poder editorial.
Se querem mergulhar na confusão e citar definições erróneas, no todo ou em parte, assimilem e citem acriticamente o conteúdo deste pobre livro «Janelas para a Filosofia».
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Edmund Gettier, filósofo norte-americano nascido em 1927, é muito considerado pelos pequenos pensadores analíticos desde João Branquinho, Ricardo Santos, Desidério Murcho, Manuel Garcia-Carpinteiro, Aires Almeida, António Horta Branco, Bruno Jacinto, Sara Bizarro a Simon Blackburn e Nigel Warburton, que parecem dar-lhe o estatuto de um Descartes do século XX devido ao seu artigo «Is justified true belief knowledge?» de 1963. Eliott Sober, no artigo «O que é o conhecimento?», publicado em «Crítica na rede», explana as objecções de Edmund Gettier e Bertrand Russell à definição de conhecimento como «crença verdadeira justificada»:
«Em 1963, o filósofo Edmund Gettier publicou dois contra-exemplos para a teoria CVJ (Crença Verdadeira Justificada). O que é um contra-exemplo? É um exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um contra-exemplo contra uma generalização mostra que a generalização é falsa. A teoria CVJ diz que todos os casos de crença verdadeira justificada são casos de conhecimento. Gettier pensa que estes dois exemplos mostram que um indivíduo pode ter uma crença verdadeira justificada mas não ter conhecimento. Se Gettier tiver razão, então as três condições indicadas pela teoria CVJ não são suficientes.
Eis um dos exemplos de Gettier. Smith trabalha num escritório. Ele sabe que alguém será promovido em breve. O patrão, que é uma pessoa em quem se pode confiar, diz a Smith que Jones será promovido. Smith acabou de contar as moedas no bolso de Jones, encontrando aí 10 moedas. Smith tem então boas informações para acreditar na seguinte proposição:
a) Jones será promovido e Jones tem 10 moedas no bolso.
Smith deduz, então, deste enunciado o seguinte:
b) O homem que será promovido tem 10 moedas no bolso.
Suponha-se agora que Jones não receberá a promoção, embora Smith não o saiba. Em vez disso, será o próprio Smith a ser promovido. E suponha-se que Smith também tem dez moedas dentro do bolso. Smith acredita em b, e b é verdadeira. Gettier afirma também que Smith acredita justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de a ser falsa, Smith tem excelentes razões para pensar que é verdadeira. Gettier conclui que Smith tem uma crença verdadeira justificada em b, mas que Smith não sabe que b é verdadeira.»
«O outro exemplo de Gettier exibe o mesmo padrão. Um sujeito deduz validamente uma proposição verdadeira a partir de uma proposição que está muito bem apoiada por informações, embora esta seja falsa, apesar de o sujeito não o saber. Quero agora descrever um tipo de contra-exemplo à teoria CVJ na qual o sujeito raciocina não dedutivamente.»
«O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) refere um relógio muito fiável que está numa praça. Esta manhã olhas para ele para saber que horas são. Como resultado ficas a saber que são 9.55. Tens justificações para acreditar nisso, baseado na suposição correcta de que o relógio tem sido muito fiável no passado. Mas supõe que o relógio parou há exactamente 24 horas, apesar de tu não o saberes. Tens a crença verdadeira justificada de que são 9.55, mas não sabes que esta é a hora correcta.» (Eliott Sober, «O que é o conhecimento?», in «Crítica na rede», tradução de Paula Mateus)
O «grande» Gettier erra, "astronomicamente". O erro de Edmund Gettier é fácil de desmontar: Smith não tem conhecimento de algo que ainda não sucedeu e é contingente, apenas alimenta uma expectativa sobre a promoção de Jones. Portanto, não tem crença verdadeira justificada. Tudo o que Smith sabe é conjectural, não se verificou. As 10 moedas que, por coincidência, alberga no bolso, tal como Jones, não são justificação, ponto de apoio seguro, para prever o futuro profissional. A crença de Smith nas declarações do patrão não são crença em uma verdade, mas crença em palavras de outrém. Ora os seres humanos desdizem-se com frequência.
A argumentação de Gettier de que «Smith tem crença verdadeira justificada em que Jones será promovido» é estúpida: é do mesmo tipo que dizer que a crença de milhões de apostadores no euromilhões é uma crença verdadeira justificada mas não é conhecimento. Ora, a crença dos apostadores não é justificada cientificamente nem é verdadeira, em geral: é uma intuição subjectiva. Não há justificação racional para que uma pessoa jogue nos números 8,13, 22, 27, 37 no mesmo concurso em que outras apostam nos números 2,3, 30, 35, 48.
O erro de Bertrand Russell é muito simples: a sua crença de que são 9.55 horas é verdadeira mas não está justificada porque não leva em conta a possibilidade de o relógio estar avariado e parado, por mero acaso, a indicar aquela hora. O conhecimento de Russell é meramente acidental, resulta de uma coincidência cronológica, de um acaso...Para estar justificado, precisaria de assentar numa lei (funcionamento permanente do relógio marcando a mesma hora que o Big Ben de Londres, etc) e em uma verificação global naquele momento, o que não sucede.
Tanto Gettier como Russell argumentam falaciosamente ao considerar justificadas pensamentos e asserções que o não estão. Há uma gradação no termo justificação, há vários degraus de justificação, de que estes pensadores unilaterais não se dão conta.
Ao propagarem a "descoberta" de Gettier como um "avanço filosófico" os filósofos analíticos e a multidão de professores de filosofia acríticos que os seguem revelam-se razoavelmente estúpidos. Só alguém estúpido, desatento às sinuosidades da retórica, pode maravilhar-se ante a falácia de Gettier. Não raciocinam, deixam-se arrastar por uma retórica de aparência lógica. Ao usarem malabarismos de linguagem como os termos «justificado» «justificação», mal aplicados, os defensores da objecção de Gettier conseguem seduzir os incautos, mas perdem-se em pseudo-raciocinios.
Fechem-se as faculdades de filosofia! Estão dominadas por catedráticos que envergonham a grande filosofia, meros prestigiditadores de palavras, inteligências de um mediano cinzentismo, ovelhas do mesmo rebanho "analítico" que manobra a Sociedade Portuguesa de Filosofia e quase todas as editoras portuguesas de manuais ou ensaios filosóficos. Os grandes pensadores clássicos, aristocratas do pensamento (Platão, Aristóteles, Hegel, Max Scheler, Freud, etc) foram substituídos por uma plebe ou «canalha» filosófica com a cultura do «certificado de doutoramento» e das «acções de formação com créditos», herdeira da inquisição medieval dominicana.
Os dominicanos, tal como os "analíticos" de hoje, amavam imenso a lógica que os protegia de certas intuições metafísicas, de um pensar inquietante e livre. As mesmas mentes "asininas" que veneram a objecção de Gettier proíbem a investigação de astrologia histórica (astronomia aplicada a factos sociais e históricos), etc. Os medíocres estão no poder, com a armadura dos doutoramentos e o trono das cátedras! Fizeram das universidades - que deviam ser universitas, acolhedoras dos diversos saberes- igrejas sectárias onde o saber universal está ausente, onde se censuram as posições críticas e antagónicas... O criptofascismo "racionalista", que tudo converte em proposições lógicas com símbolos, reina. É a idade das trevas da filosofia...
O conhecimento falível - não todo o conhecimento - é, de facto, quase sempre, crença, verdadeira justificada e, nalguns casos, é crença subjectiva ao acaso (exemplo: os totalistas do euromilhões) . Mas há o conhecimento infalível, que é a pura apreensão epistémica ou noética da realidade e não é crença mas certeza pura como, por exemplo, "dois é metade de quatro", "o mundo exterior existe contíguo ao meu corpo".
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica