O manual «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, da Porto Editora apresenta diversas incorrecções teóricas. É inferior, em qualidade teórica, ao manual «Novos Contextos» de José Ferreira Borges, Marta Paiva e Orlando Tavares, da mesma editora, ainda que ambos estejam bem concebidos no plano gráfico.
A INCAPACIDADE DE DEFINIR CLARAMENTE DETERMINISMO E DE CRITICAR, NO ESSENCIAL, O «DILEMA DO DETERMINISMO»
Escrevem António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus:
«Hoje, como o determinismo se revelou duvidoso, poucos filósofos se descreveriam como deterministas radicais. Ainda assim, muitos negam o livre-arbítrio porque pensam que a verdade do determinismo é irrelevante para a questão: quer o mundo seja determinista quer seja indeterminista, não somos agentes livres. O seu argumento, conhecido por dilema do determinismo, é o seguinte:
(1) - Ou o mundo é determinista ou é indeterminista.
(2) - Se o mundo é determinista, não temos livre-arbítrio.
(3) - Mas se o mundo é indeterminista, também não temos livre-arbítrio.
(4)- Logo, não temos livre-arbítrio.
É na premissa (3) que temos de nos concentrar. Por que razão havemos de crer que o indeterminismo, como nos diz esta premissa, é incompatível com a liberdade humana?
Vimos já como se pode argumentar que o determinismo exclui o livre-arbítrio. Se o determinismo é verdadeiro, as nossas acções não são livres porque resultam de factores que estão fora do nosso controlo: as leis da natureza e as circunstâncias anteriores à nossa existência.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 62, Porto Editora).
Os autores passam por cima da premissa (2) sem detectar que ela se baseia na falsa dicotomia «ou há determinismo ou há livre-arbítrio». O que é o determinismo? Não definem com clareza. Aceitam acriticamente o «argumento da consequência» de Peter van Ingwagen, que reproduzem na página 59 do manual:
«Se o determinismo é verdadeiro, então os nossos actos são consequência das leis da natureza e de acontecimentos situados no passado remoto. Mas o que aconteceu antes de termos nascido não depende de nós; tão-pouco as leis da natureza dependem de nós. Logo as consequências destas coisas (incluindo as nossas ações) também não dependem de nós.» ( Um ensaio sobre o livre-arbítrio, pag 16).
O erro de Peter van Inwagen, filósofo norte-americano, - e de António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, que o seguem, de forma acrítica - é considerar livre-arbítrio e determinismo como contrários excludentes (princípio do terceiro excluído) quando, de facto, são contrários coexistentes num termo intermédio: o determinismo limita-se ao mundo biofísico mas não penetra na esfera humana psíquica onde reina o livre-arbítrio, a razão que faz frente aos impulsos da natureza e delibera. Ambos, o determinismo e o livre-arbítrio, coexistem no tecido do ser, o ser cósmico e o ser humano. Portanto, a premissa (2) do dilema do determinismo é uma falácia. Isto é ignorado pelos autores do manual. A filosofia analítica não conceptualiza a diferença entre contrários excludentes, incompatíveis, e contrários coexistentes, compatíveis.
O FALACIOSO SILOGISMO «MODUS TOLLENS» DO LIBERTISTA
Prossegue o manual:
«Vamos examinar agora as perspectivas que nos dizem que os agentes humanos têm uma vontade livre. Uma delas é o libertismo, que é também uma forma de incompatibilismo. Porém, em vez de afirmar o determinismo para negar o livre-arbítrio, que é a via escolhida pelo determinista radical, o libertista afirma o livre-arbítrio e nega o determinismo. Partindo do argumento da consequência, ele raciocina desta forma:
(1) Se o determinismo é verdadeiro, então não temos livre-arbítrio.
(2) Temos livre-arbítrio.
(3) Logo, o determinismo não é verdadeiro.»
«O grande desafio que se coloca ao libertista é defender a premissa (2), o que implica descobrir uma forma de escapar ao dilema do determinismo.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» páginas 62-63, Porto Editora)
A grande crítica que cabe fazer é à premissa (1). O erro deste silogismo condicional falácia de modus tollens está aí (para ser um modus tollens correcto a segunda premissa seria Não temos livre-arbítrio). O determinismo é verdadeiro em que região do ser? Na natureza biofísica. E o livre-arbítrio, onde vigora? No mundo psíquico e racional humano. Portanto, não podem excluir-se mutuamente, no quadro global. Há lugar para ambos. Os autores do manual não colocam assim a questão com esta clareza e arrastam uma nuvem de confusão raciocinante. Escapar ao dilema do determinismo? Mas é um falso dilema. É esta a mediocridade da filosofia analítica: pseudo dilemas, isto é, falácias de dicotomia, pseudo paradoxos como o de Russel, etc.
O ACASO NÃO CONTRIBUI PARA TORNAR AS ACÇÕES LIVRES?
Escrevem ainda os autores, a propósito de acções livres:
«Como devemos, então, conceber as acções livres? Estas têm de ser acontecimentos indeterminados, segundo o libertista. Mas os acontecimentos indeterminados parecem ser apenas aqueles que ocorrem em parte por acaso. E o acaso, como vimos, nada contribui para tornar uma acção realmente livre.»
(António Correia Lopes, Pedro Galvão, e Paula Mateus, «Razões de Ser, Filosofia 10º ano» página 63, Porto Editora; o destaque a negrito é posto por mim).
É uma visão errónea: a acção livre comporta sempre uma certa dose de acaso psicológico, espiritual, interno ao agente. De facto, na essência da liberdade está o acaso, o não predestinado, o não determinado por um encadeamento rígido de causas e efeitos. O livre-arbítrio é uma estrutura psíquica mista de acaso e necessidade. Se não houvesse acaso nas escolhas racionais, não haveria livre-arbítrio.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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