Em uma passagem fundamental de "O Ser e o Tempo" Heidegger caracteriza assim a essência e a existentia do "ser aí" (Dasein), isto é, cada homem na sua singularidade:
«Desta caracterização do "ser aí" resultam duas coisas:
«1. A essência de este ente está no seu "ser relativamente a". O "quê é" (essentia) de este ente, até onde se pode falar dele, tem que conceber-se partindo do seu ser (existentia). (...) este termo não tem nem pode ter a significação ontológica do termo existentia: existentia quer dizer ontológicamente "ser diante dos olhos" , uma forma de ser que, por essência não convèm ao ente do carácter do "ser aí". Evitamos a confusão usando sempre em vez do termo "existentia a expressão exegética "ser diante dos olhos" e reservando o termo de existencia como determinação do ser, para o "ser aí".
«A essência do "ser aí" está na sua existência. As características que se pode pôr em evidência neste ente não são, portanto, "peculiaridades" "diante dos olhos" de um ente "diante dos olhos" de tal ou qual "aspecto", mas sim modos de ser possíveis para ele em cada caso e só isto. Todo o "ser tal" de este ente é primariamente "ser". Daí que o termo "ser aí", com que designamos este ente não expresse o seu «quê é», como mesa, casa, árvore, mas o ser.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 54, Fondo de Cultura Económica).
Por conseguinte, existência, em Heidegger, significa não a realidade ôntica, visível e palpável, de cada ente mas antes o "ser", na sua dupla faceta de existir universal e essência/estrutura geral que atravessa os entes (o homem, o céu, o cavalo, a casa, etc).
Que significa o "ser relativamente a"? É o "ser" universal que podemos imaginar como o centro do círculo e a totalidade deste, isto é, os raios que emana até à circunferência cujos pontos (desta) seriam os entes (o "ser aí" ou homem, as árvores, os rios, as casas, etc).
A essência de cada ente foi extraída da existentia - ou existir universal e estrutura geral do "ser" - do mesmo modo que a figura da estátua (essência, quê é) foi extraída do bloco de mármore ("ser", existência transcendente e imanente à estátua). O mármore, que uso como imagem do "ser", transcende a estátua, é mais vasto que ela e, ao mesmo tempo, é imanente a ela. As leis da estrutura do mármore, a coesão entre as moléculas dos seus componentes ´físico-químicos, é o modo do "ser" relativamente à estátua.
Em vez de usar o termo existência, que confunde muitos dos seus leitores, Heidegger deveria ter usado in-sistência e dizer que «a essência do "ser aí" está na sua in-sistência», na interioridade do "ser" . A frase «a essência do homem está na sua existência» é interpretada, na filosofia de Sartre, de forma inversa à de Heidegger: como acidentalismo, construtivismo da essência, sempre incompleta, esboçada, através da acção objectiva. Para Sartre, a essência do homem não existe a priori, nasce da acção. Mas para Heidegger a essência do homem existe a priori, nasce, não da acção mas do "ser" transcendental e, obviamente, tempera-se e consolida-se na acção.
Por isso existencialismo, em Heidegger, é essencialismo. E em Sartre, é acidentalismo, libertismo.
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Uma das linhas de força da filosofia de Heidegger é a tentativa de destruição ou de rectificação da linguagem que foi sedimentando, ao longo dos séculos, no leito do rio da ontologia e da filosofia. Muitos méritos cabem a Heidegger nesta tarefa hermenêutico-etimológica. Recuperou a tradição que Platão expusera no «Crátilo» - as letras e as palavras como «pinturas», imagens, com fundamento analógico, das ideias e objectos físicos e que Aristóteles prosseguiu na «Metafísica» . Mas há esforços de Heidegger que, a meu ver, resultaram inúteis: é o caso, por exemplo, da tentativa de atribuir à palavra mundo um significado distinto do de «meio ou ambiente envolvente de numerosas entidades físicas ou espirituais».
«Mundo, todavia, na expressão «ser-no-mundo», não significa, de modo algum, o ente terreno, em oposição ao celeste, nem mesmo o mundano em oposição ao "espiritual". "Mundo", naquela expressão, não significa de modo algum, um ente e nenhum âmbito do ente, mas a abertura do ser. O homem é e é homem enquanto é o ex-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na abertura de ser, que é o modo como o próprio ser é; este projectou a essência do homem, como um lance, no cuidado de si. Projectado desta maneira, o homem está postado "na abertura do ser". Mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição de ser-projectado de sua essência. O "ser-no-mundo" nomeia a essência da ek-sistência, com vista à dimensão iluminada, desde a qual desdobra o seu ser o ex da ex-sistência. Pensada a partir da ex-sistência, mundo é, justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da e para a ex-sistência.» ((Heidegger, Carta sobre o Humanismo, Guimarães Editores, Págs 99-100; a letra; a letra negrita é posta por mim ).
Em termos simples, o ser compara-se a uma floresta densa da qual é projectada a essência do homem numa clareira da floresta designada por mundo. Mas a clareira é, simultaneamente, interior e exterior ao eu humano. Interior, em parte: o mundo entra dentro do homem, na medida em que só este tem a percepção sensorial-intelectual da totalidade dos seres que o povoam; o mundo está fora do homem porque, como rede, se estende sobre e engloba os "entes diante dos olhos" (exemplo: nuvens, mares, florestas) , os «entes à mão» (exemplo: automóveis, talheres, computadores, utensílios à mão») e até o «ser aí» - cada homem - em certa medida.
Para Heidegger, o mundo não é o universo físico (mundo terreno) nem o espaço metafísico (mundo espiritual divino). Não é o âmbito do ente. O que é então? É a abertura do ser, a clareira do ser.
Mas isto é, de facto, algo incoerente. A abertura e a clareira são, apesar de Heidegger o negar, um âmbito, um espaço, físico ou meramente psíquico, onde são dispostos os entes (árvores, cães, planícies, casas, mares,etc) . Seja intra anima ou extra anima ou ambas a coisas de facto, é ambas as coisas - o mundo é sempre um âmbito, um vasto «círculo» ou «esfera» no seio do qual se plantam os entes.
O mundo pertence ao ser e ao homem, que é o ser-aí. Em O ser e o tempo, Heidegger disse expressamente:
«El mundo no es ontologicamente una determinación de aquellos entes que el ser ahí, por esencia, no es, sino un carácter del "ser-ahí" mismo.» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77).
O mundo é, por conseguinte, um campo sensorial-conceptual que só o homem ( ser aí) possui e no qual se projectam os objectos "físicos" ou "entes diante dos olhos". Idealidade do mundo mas não necessariamente dos objectos que o povoam, pois Heidegger diz:
«Los entes intramundanos son proyectados sin excepción sobre el fondo del mundo, es decir, sobre un todo de significatividad a cuyas relaciones de referencia se ha fijado por anticipado el curarse de en cuanto ser en el mundo. Cuando los entes intramundanos son descubiertos a una con el ser del "ser ahí", es decir, han venido a ser comprendidos, decimos que tienen "sentido"). .» ( Heidegger, El ser y el tiempo, Fondo de Cultura Económica, Pag 77; a letra negrita é nossa).
Isto significa que os entes intramundanos rios, campos, animais não fazem parte do ser do homem (ser aí) são-lhe exteriores ou, no mínimo, correlatos (exteriores-imanentes como gémeos siameses). Não sabemos, pois, se a matéria existe em si mesma. Sabemos, sim, que, na óptica de Heidegger, os objectos são exteriores ao ser-aí - mas serão ideias autobsistentes ou corpos físicos reais? Ou algo indeterminado? Na imagem heideggeriana do ser como floresta e do ser-aí (homem) como colocado na abertura ou clareira do ser (mundo) não se esclarece o lugar dos entes intramundanos: estão na clareira mas foram projectados. A partir de onde? Heidegger não o diz. Parece-me lógico que os entes intramundanos (exemplo: a nuvem, a pedra, a montanha) sejam projectados desde o interior da floresta densa onde subsistem, presumivelmente, como «árvores», algo comparáveis aos arquétipos platónicos.
Na passagem abaixo, Heidegger rejeita o realismo e a própria fenomenologia como corrente intermédia dos correlativos para afirmar um ontologismo ´- a realidade, nem material nem espiritual, fora do sujeito, é o ser - que tem, sem dúvida, a influência do idealismo kantiano, fazendo corresponder o ser ao númeno kantiano exterior ( objecto incognoscível, exterior, como Deus e mundo metafísico) e o ser-aí (Dasein) ao númeno kantiano interior (objecto interior, como alma imortal e liberdade).
«O homem jamais é primeiramente do lado de cá do mundo como um «sujeito», pense-se este como «eu» ou como «nós». Nunca é também primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre se refere, ao mesmo tempo, a objectos, de tal maneira que a sua essência consistiria na relação sujeito-objecto. Ao contrário, o homem primeiro é, em sua essência, ex-sistente na abertura do ser, cuja aberta ilumina o «entre» em cujo seio pode «ser» uma «relação» de sujeito e objecto. » (Heidegger, Carta sobre o Humanismo,Págs 99-100).
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Um dos modos do ser, na filosofia de Heidegger, é o ser-aí (Dasein), um dos conceitos chave do famoso livro «Ser e Tempo» deste filósofo alemão.
Na versão brasileira da editora «Vozes», a tradutora Márcia de Sá Cavalcante opta por substituir a expressão «ser-aí» por «pre-sença» na tradução da palavra Dasein:
«Pre-sença não é sinónimo de existência e nem de homem. A palavra Dasein é comunmente traduzida por existência. Em Ser e Tempo , traduz-se em geral, para as línguas neolatinas pela expressão "ser-aí", être-là, esser-ci, etc. Optamos pela tradução de pre-sença pelos seguintes motivos: 1) para que não se fique aprisionado às implicações do binómio metafísico essência-existência; (...)4) pre-sença não é sinónimo nem de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade.»(M. Heidegger, O Ser e o Tempo, parte I, Nota N1 de Márcia de Sá Cavalcante, pag 309).
Ao contrário do que sustenta Márcia Cavalcante, o ser-aí (que ela traduz por...pre-sença) designa o ente homem, a julgar pelo que Heidegger escreveu:
«As ciências têm, enquanto modos de o homem se comportar, a forma de ser de este ente (o homem). A este ente designamo-lo com o termo "ser-aí". (Martin Heidegger,El Ser y el Tiempo, versão espanhola, Fondo de Cultura Económica, Madrid, pag 21).
«O ser que se aloja neste ente no seu ser é, em cada caso, meu. O "ser aí" não pode tomar-se nunca ontologicamente, portanto, como caso e exemplar de um género de entes "diante dos olhos" (na tradução brasileira: ser-simplesmente dado). A estes entes o seu ser é-lhes indiferente, ou vista a coisa exactamente, "são" de tal forma que o seu ser não pode ser-lhes indiferente nem o contrário. A menção de "ser aí" tem que ajustar-se ao carácter do "ser em cada caso meu", que é característico deste ente, indicando ou subentendendo ao mesmo tempo sempre o pronome pessoal: "eu sou", "tu és".» (Heidegger, ibid, pag. 54).
Ser-aí é, pois, sinónimo do ser em cada caso meu, isto é, da minha pessoa, da tua, da dele. Não é uma estrutura alheia ao homem universal nem tão pouco ao homem singular, como sustenta Márcia de Sá Cavalcante. O ser-aí é o homem, cada homem singular. As árvores, as montanhas e os animais são entes «diante dos olhos», destituídos de ser-aí.
Certamente, Heidegger reconheceu que os gregos identificaram o ser (to ón; einai) com a presença constante:
«Para os gregos, "ser" quer dizer o mesmo que presença constante. Constância e presente são, porém, caracteres do tempo. Ente é para os gregos aquilo que permanece, o permanente nas coisas que existem, o que, na mudança do estado das coisas (por exemplo, tornar-se maior ou menor) resiste na mudança das qualidades. (Martin Heidegger, Lógica, A pergunta pela essência da linguagem, Fundação Calouste Gulbenkian, Pág. 218).
Note-se que Heidegger erra ao restringir constância e presente ao âmbito do tempo. A constância e o presente são esfera comum ao tempo e ao ser - entendido este último como forma geral e matéria, o que Heidegger não precisa, na sua ambiguidade . A citação de Heidegger acima não legitima que Márcia Cavalcante traduza ser-aí, Dasein, por «presença». No máximo, poderia traduzir Dasein por «esta presença minha, aí», o que não é o mesmo que «presença». O ser-aí (Dasein) é uma excrescência do ser (Sein) que é muito mais vasto, é um fauno guardião da floresta que é o ser, projectado na clareira desta...
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