Alguns equívocos subsistem nos manuais do professor «50 lições de filosofia, 11º ano» e «50 lições de filosofia, 10º ano» da Didáctica Editora, de Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho.
HÁ CONHECIMENTO SEM CRENÇA , AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTA O MANUAL DO 11º
Sobre a definição da filosofia analítica àcerca do conhecimento como «crença verdadeira justificada» diz o manual:
«A crença é condição necessária do conhecimento.»
«Acreditar é um estado mental ou psicológico de convicção ou de adesão a algo. A crença ocorre, portanto, na mente de alguém. Mesmo que as crenças sejam acerca de objectos exteriores, nem por isso elas deixam de se encontrar apenas na mente do sujeito que acredita. Se digo que acredito que o Benfica será campeão no próximo ano, estou apenas a exprimir o que vai na minha cabeça, até porque aquilo que o Benfica conseguirá no próximo ano é algo que ainda nem sequer aconteceu.» (Aires Almeida e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 11º ano » Didáctica Editora, pág. 108). .
Há conhecimento sem crença, ao contrário do que afirmam Aires Almeida e Desidério Murcho: o conhecimento sensorial, por exemplo. O cão, tal como o homem, conhece o calor do verão ou o frio do inverno sem acreditar - sente apenas. A crença pressupõe um pensamento ou um princípio de pensamento - disto não se apercebem os filósofos analíticos e a grande massa amorfa dos docentes que os seguem. Kant cometeu grossa asneira ao sustentar que o conhecimento só existe no entendimento, em resultado da união deste com a sensibilidade. Intelectualizou o conhecimento, o que é uma visão parcelar.
Ora os dois tipos extremos de conhecimento que se tocam no fechar do círculo - a sensação e a intuição inteligível - não pressupõem nenhuma crença, são involuntários, irracionais, ocorrem simplesmente. Excluem a crença: ambos são certeza «totalitária». Não preciso de crença no vermelho do sol poente que neste momento desfruto: sinto-o na minha retina. Não tenho crença na bondade dos vírus das vacinas a «prevenir» doenças: sei, por intuição inteligível, que são nocivos ao corpo humano.
A crença implica pensamento, um certo distanciamento entre o sujeito e o objecto - daí o «ver para crer» - ao passo que o conhecimento pleno é a pura adesão do sujeito ao objecto, acto no qual a crença se dissipa.
Em Platão, a crença é a pistis, que faz parte da doxa ou opinião. Ao nível da episteme (raciocínio científico) ou da noese (apreensão intuitiva do arquétipo) não há crença, há certeza. A certeza é inimiga da crença. Crer em Deus é não ter a certeza absoluta da Sua existência ou dos Seus predicados. Conhecer é estar com as coisas sem crença, é ter intimidade intelectual ou sensorial com essas coisas, materiais ou espirituais, sem duvidar, sem o biombo da crença.
Quando se diz que o conhecimento é crença verdadeira comete-se um erro de paralaxe filosófica.
UMA NOÇÃO CONFUSA DE ESSENCIALISMO
Sobre essencialismo, lê-se no manual do 11º ano:
«Essencialismo contemporâneo
«Poderia Kant não ter sido um filósofo? É natural pensar que sim, pois ele poderia ter-se dedicado à pintura, por exemplo, ou a qualquer outra actividade. Mas poderia Kant ter sido mais do que ele mesmo? A resposta, também natural, é que não, pois isso viola as leis da lógica.»
«O que dizer, contudo, da hipótese de Kant não ter sido humano? Se defendermos que as únicas verdades necessárias são as verdades que podemos conhecer a priori, estamos obrigados a dizer que não é uma verdade necessária que Kant era humano,ou seja, estamos obrigados a dizer que ele poderia não ter sido humano.Porquê? Porque não podemos saber a priori que ele era realmente humano:só a posteriori podemos saber disso.»
«Os filósofos essencialistas contemporâneos consideram que do facto de não podermos saber a priori que Kant não poderia não ter sido humano não se conclui correctamente que ele poderia não tê-lo sido. De modo que precisamos de outras razões a favor da ideia de que poderia tê-lo sido. Os essencialistas defendem que não há bons argumentos a favor dessa ideia e que é mais natural pensar que ele não poderia não ter sido humano. E esse será outro exemplo de uma verdade necessária a posteriori.»(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 11º ano » Didáctica Editora, pág. 244). .
Eis um texto extraordinariamente confuso: não se define essência, nem essencialismo. Não se sabe o que os autores entendem por filósofos essencialistas. O exemplo é razoavelmente obscuro. Aires Almeida e Desidério Murcho revelam-se aqui obscurantistas. É uma insensatez dizer que Kant poderia ser não humano se, à partida, ligamos o nome de Kant a famílias, a um cidadão prussiano do século XVIII. É uma contradição nos termos: Kant, nome humano, suscitaria a suspeita de que a pessoa que o usa é não humana. É confundir o terminológico, a ordem da linguagem, com o ontológico, a ordem do ser - um velho truque dessa sofística contemporânea que dá pelo nome de filosofia analítica...
É similar a dizer: «O quartzo poderá ser um não mineral» ou «a galinha poderá não ser um animal». São «habilidades» retóricas, argumentação vazia, dissociando artificialmente o significante do significado, do referente Só a Kaballah estabelece a ligação necessária entre o nome e a coisa, ao contrário da linguística de Saussure que postula o «laço arbitrário», casual, entre significante e significado.
Os autores do manual exaltam a «descoberta» de Saul Kripke segundo a qual há verdades necessárias a posteriori e alegam que «Hume concluía que as verdades científicas eram contingentes só porque eram conhecidas a posteriori.» ( 50 lições de Filosofia, 11º ano Filosofia, pag 243). Ora isto não é verdade em toda a sua extensão: Hume considerava a matemática como um conjunto de verdades científicas, não contingentes, necessárias, a posteriori. O número ou proporção de quantidade,´que fundamenta a matemática, é uma das sete relações filosóficas - poderíamos dizer: categorias - inscritas na mente do sujeito, segundo Hume. Ora, não há contingência nas operações matemáticas, em geral.
Hume escreveu, reafirmando o carácter necessário das verdades da álgebra e da aritmética:
«Restam portanto a álgebra e a aritmética como as únicas ciências das quais podemos levar uma cadeia de raciocínios até um certo grau de complicação, conservando contudo uma perfeita exactidão e certeza. Estamos de posse de um critério preciso que nos permite ajuizar da igualdade e proporção dos números; e, conforme estes correspondem ou não ao critério, determinamos-lhes as relações sem qualquer possibilidade de erro» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, pág. 105; o destaque a negrito é posto por mim).
Não foi, pois, Saul Kripke o primeiro a posttular verdades científicas universais e necessárias a posteriori. Hume já o fizera. E muitos outros, como por exemplo, os materialistas dialéticos vinculados ao empirismo. Acontece que Desidério Murcho e Aires Almeida não abordam nos seus manuais as filosofias de esquerda como o marxismo, o anarquismo, o socialismo revolucionário - só vêem o lado pragmático norte-americano e britânico da filosofia institucional, filosofias «apolíticas» de direita ou centro, e nem tudo vêem- e não conhecem as posições ontognosiológicas de outras correntes. Por isso não admira que errem ao escrever que Saul Kripke foi o primeiro a teorizar as verdades universais a posteriori...
OS SUBJECTIVISTAS NEGAM QUE A BELEZA ESTEJA NOS PRÓPRIOS OBJECTOS?
Sobre subjectivismo e objectivismo, diz o manual do 11º ano:
«Chama-se subjectivistas àqueles que respondem que apenas conta o que cada sujeiro sente: a justificação dos juízos estéticos tem um carácter subjectivo. Quando perguntam a um subjectivista: «Por que razão dizes que aquele objecto é bonito?» ele responde «Digo que aquele objecto é bonito porque eu sinto prazer a olhar para ele».
«Por sua vez, chamam-se objectivistas aos que respondem que tudo o que conta são as características dos próprios objectos: afirmamos que um objecto é bonito ou feio porque tem certas propriedades que o tornam realmente bonito ou que o tornam realmente feio.» (50 lições de Filosofia, 11º ano Filosofia, pag 125).
Os subjectivistas negam que a beleza esteja nos objectos? Não, necessariamente. Apenas afirmam que cada mente possui uma forma única, singular de captar a beleza objectiva dos objectos. Portanto, para os subjectivistas a beleza pode estar simultaneanente no objecto exterior e na mente humana que o apreende. Não é isto o que os autores deste manual afirmam.
UMA TAUTOLOGIA NA DEFINIÇÃO DE OBJETIVISMO
Este manual do 10º ano define objetivismo do seguinte modo: `
« A tese central da teoria objetivista é que alguns juízos de valor são objetivos. Isto significa que quando uma pessoa ou uma sociedade condena ou aceita um dado juízo de valor pode estar enganada, tal como acontece com os juízos de facto. » (...)
«Por exemplo, nos finais do século XIX, na Europa, discutia-se se as mulheres tinham o direito de votar. Mas hoje acreditamos que o juízo de valor de que as mulheres devem ter o direito de votar é objectivamente verdadeiro»
(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 10º ano » Manual do Professor, Didáctica Editora, pág. 57).
Objetivismo é alguns juízos de valor serem objetivos? Isto é uma tautologia. O que significa serem objetivos? Desidério, Aires e Célia não sabem explicar. Objectivo significa duas coisas: que está fora das mentes humanas e é visível ou patente a todas ou quase todas (exemplo: as mulheres votam em eleições gerais em quase todos os países no século XXI, o rio Tejo separa Lisboa de Almada e do Barreiro); que está dentro das mentes humanas mas é compreendido de igual modo por todas ou quase todas (exemplo: É objectivo que 7 adicionado de 5 tem como resultado 12).
A AUSÊNCIA DO CONCEITO DE INTERSUBJECTIVISMO
Para os autores, as correntes de valores têm dois níveis de verdade: subjectivismo e objectivismo. Como não introduzem o conceito de intersubjectivismo deslizam para o pensamento imperfeito. Diz o manual:
«A segunda objeção põe em causa a ideia de que se um juízo não for subjectivo, não há discordância. Pelo contrário, há muitos casos en que estamos perante juízos que não são subjectivos e no entanto há discordância. Por exemplo, há quem pense que os seres humanos foram directamente criados por Deus como é descrito na Bíblia e quem pense que os seres humanos surgiram de outras espécies por meio de processos naturais. Contudo, não se trata de juízos subjectivos. Acontece apenas que as pessoas não conseguem chegar a um consenso».
(Aires Almeida, Célia Teixeira e Desidério Murcho, «50 lições de filosofia, 10º ano » Manual do Professor, Didáctica Editora, pág. 52).
Se não são juízos subjectivos, o que são? Juízos intersubjectivos, isto é, comuns a uma grande quantidade de pessoas. Mas o manual carece deste conceito. A intersubjectividade é um degrau intermédio entre a subjectividade, a consciência isolada, e a objectividade, isto é, a realidade em si ou a opinião unânime de toda a humanidade.
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No Prefácio de « A Ética da Crença» afirma Desidério Murcho:
« Todo o conhecimento proposicional - assim como a crença - é uma relação entre uma pessoa que conhece e uma proposição ou verdade conhecida.» (Desidério Murcho in Prefácio de «A ética da crença», Bizâncio, pág 33)
Vemos que Murcho separa artificialmente crença de conhecimento proposicional. Ora, muito deste último inclui a crença, como por exemplo, o seguinte conhecimento proposicional: «Cada molécula de água é composta de dois átomos de hidrogénio e um átomo de oxigénio». Também o conhecimento proposicional «A economia é a força propulsora essencial da história social e política» inclui crença, isto é, conteúdo especulativo, incerto, já que há outras teses sobre a causa determinante da evolução histórico-social.
TODO O CONHECIMENTO PROPOSICIONAL É FACTIVO?
Murcho sustenta que tanto o conhecimento proposicional, teórico ou teórico-prátivo, como o conhecimento por contacto, sensorial, são factivos, o que é um erro no que respeita ao primeiro deles:
« Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por contacto são factivos, o mesmo argumento aplica-se a refutar a ideia de que a fé poderia ser conhecimento por contacto.» (Desidério Murcho in Prefácio de «A ética da crença», Bizâncio, pág 49)
Ora, há muito conhecimento proposicional que não é factivo, isto é, não está ancorado em factos sólidos da experiência, irrefutáveis. Por exemplo, o seguinte conhecimento proposicional: «A matéria escura constitui 96% da massa do universo. O Big Bang ocorreu há cerca de 15 000 milhões de anos e consistiu na explosão de um pequeno ponto de matéria-energia dando origem ao universo». Nada disto é factual, factivo: não passam de especulações. É um conhecimento especulativo, duvidoso, o que contraria a tese antidialética de Desidério Murcho de que «todo o conhecimento é factivo».
A astrofísica actual é profundamente metafísica: e os mesmos que crêem na teoria das cordas e do Big Bang como Carlos Fiolhais, Desidério Murcho, Guilherme Valente e tantos outros são os que, paradoxalmente, duvidam da causalidade planetária dos factos sociais ou lançam anátemas sobre o determinismo e o fatalismo planetários. É impossível demonstrar que o universo tem 10 ou 30 dimensões mas estas mentes atentas e veneradoras do «saber científico» crêem que se pode demonstrar. É muito mais fácil demonstrar que a Alemanha é finalista do campeonato do mundo de futebol, em 13 de Julho de 2014 porque Marte está em 23º de Balança e Quirón em 17º de Peixes nesse dia, uma vez que, por analogia, a Alemanha Federal foi campeã mundial em 7 de Julho de 1974 quando Úrano estava em 23º de Balança e Júpiter em 17º de Peixes mas aquelas mentes «iluminadas» (iluminati?) não crêem na factualidade astronómico-histórica.
Afinal, acredita-se em fórmulas astrofísicas metafísicas (argumento da autoridade) e rejeita-se os factos empíricos palpáveis...O positivismo lógico e o conjecturalismo de Popper não passam de metafísica do avesso porque negam a ciêmcia da astrologia histórica, empírica e comprovável. Não é qualquer astrologia, claro: somente a astrologia histórico-social desenvolvida neste blog e em livros nossos.
NÃO EXISTE ÉTICA DA CRENÇA
Aliás, contrariando o título deste livro, importa notar que não existe ética da crença. A crença é um processo de cognição metaético: acontece espontaneamente, de forma «técnica», não ética. Os chamados «filósofos analíticos» metem a ética e a lógica proposicional em todo o seu discurso e no limitado horizonte do seu pensamento porque a inteligência neles é escassa para irem mais longe: o pensar ontológico e gnosiológico profundo é-lhes estranho.
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Em «Os problemas da filosofia», Bertrand Russel escreveu:
«1. A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, a falsidade. Alguns filósofos, e não poucos, deixaram de satisfazer adequadamente a esta primeira condição: construiram teorias segundo as quais todo o nosso pensar deveria ser verídico, o que os pôs nas maiores dificuldades para arranjar um lugar para a falsidade. A este respeito, deve diferir a teoria da crença da teoria da intimidade, já que no caso da intimidade não é necessário tomar em conta a existência de um contrário. »
«2. Evidente parece que se não houvesse crença, nada poderia haver que fosse falso, nem tão-pouco haver verdade, no sentido em que a verdade é correlativa da falsidade. Se imaginarmos um mundo só de matéria, não haverá nele lugar para o falso; e, embora se contivessem nesse mundo aquilo a que podemos chamar "factos", não haveria nele verdade alguma, no sentido da palavra "verdade" em que esta última designa coisas da mesma espécie que as falsidades. O verdadeiro e o falso são, de facto, propriedades das crenças e das asserções; e, por isso, um mundo de pura matéria, não contendo crenças nem asserções, não teria verdades nem falsidades.»
«3. Cumpre, porém, observar em contraposição ao que acabamos de dizer aí que o verdadeiro e o falso de qualquer crença depende de algo exterior à crença.»
(Bertrand Russell, Os problemas da filosofia, pag 186-187,Arménio Amado, Editor Sucessor, Coimbra, 1974; o negrito é colocado )
Há alguma confusão em Bertrand Russell sobre este tema. O verdadeiro e o falso não são apenas propriedade das crenças e das asserções. A verdade não se restringe ao juízo, à asserção, à afirmação ou negação de algo. A verdade está já contida, de forma originária ou embrionária, nas intuições intelectuais ou conceitos que compõem o juízo. O clarear da verdade será o juízo - definição de um conceito, asserção ligando dois ou mais conceitos- ou o raciocínio - articulação lógica e inferencial de dois ou mais juízos.
Mas há um anoitecer ou uma noite da verdade, anterior ao juízo, que é as essências das coisas ou as próprias coisas,que são verdades em si mesmas, intuíveis. Exemplo: o número dois é um conceito - ou um arquétipo para os platónicos - automaticamente verdadeiro, sem dar lugar a falsidade. Se digo «Hoje há nuvens no céu» já há «grãos» de verdade nos conceitos de nuvem, céu e hoje, - e esses «grãos» não admitem nenhuma falsidade em si mesmos - mesmo que a afirmação seja falsa, no contexto histórico. Neste caso, a falsidade está na oposição entre a essência-frase e a existência-referente/ situação real.
Se identificarmos o termo verdade com realidade e o termo falsidade com irrealidade, é óbvio que não há terceira via, isto é, não há coisas que não são verdadeiras nem falsas.
A suspensão do juízo de existência é uma suspensão do conhecimento da verdade, mas não é, no plano eidológico, estar fora da dicotomia verdade-falsidade. No plano das essências, formas estáveis ou imóveis desligadas da existência, por posição ou por abstracção, não há falsidade: a matéria é tão real como a anti-matéria; o comunismo igualitário e portador de liberdades individuais é idealmente, eidéticamente, real, ainda que seja falso no plano existencial, isto é, impossível de colocar em prática. Dito de outro modo: há ideias que são verdades no plano ideal e mentiras, irrealidades, no plano existencial, físico-social.
A verdade sofre níveis distintos de oposição:
A) No plano da essência ideal, como verdade-essência ou eidética, é sempre verdade, apesar de possuir contrários que não a anulam mas que com ela coexistem (exemplo: o belo ideal é real nesse plano, não é anulado pelo feio ideal, e vice-versa). É o reino do imutável, perene.
B) No plano da existência ou essência materializada, como verdade ontológica, existencial, é em curtos períodos, ou mesmo a cada instante negada, alterada, ou falsificada pelo seu contrário eidético-ontológico ( exemplo: o político incorruptível cede a pressões de um lobby, isto é, deixa de ser incorruptível; a saúde dá lugar à doença, etc).
AS SENSAÇÕES ESTÃO FORA DO BINÓMIO VERDADE-FALSIDADE, COMO SUSTENTOU RUSSELL?
A noção de verdade não é unívoca, ainda que numerosos pensadores a tenham como tal.
Russell escreveu:
«Os dados-dos-sentidos reais não são verdadeiros nem falsos. Uma mancha de cor que eu vejo tão somente existe; não pertence à espécie daquelas coisas que são verdadeiras ou que são falsas. É verdade que essa mancha existe; verdade que tem uma certa forma, certo grau de luminosidade; verdade, ainda, que está cercada de certas outras cores. A própria mancha, porèm, como todas as outras coisas que pertencem ao mundo dos sentidos, é de natureza radicalmente diversa do que é verdadeiro e do que é falso, e por isso é a rigor impróprio o dizermos dela que é verdadeira. Assim, quaisquer verdades evidentes de si que possamos obter pelos sentidos devem ser diferentes dos dados sensíveis através dos quais as alcançamos.» (Bertrand Russel, Os problemas da filosofia, página 178; o destaque a negrito é da minha autoria).
Há aqui um erro: a mancha de cor, e os dados dos sentidos (sense data) em geral, são verdadeiros na tela da psique, isto é, na sua existência. Podem ser falsos na relação com outras essências, imersas na existência exterior, não psíquica, isto é, por exemplo: pode a côr vermelha da rosa ser apenas uma impressão psíquica e não haver vermelho “lá fora” no objecto físico rosa, desprovido de cores.
Se dissermos que a mancha de cor não é verdadeira, negamos a intuição sensorial, fonte primordial da verdade.Portanto, os dados dos sentidos são verdadeiros em si mesmos, podendo ser falsos na sua relação com o todo que os transcende. Ou seja: a verdade depende do contexto (mente, mundo dos objectos físicos, etc) em que se insere. A verdade não implica necessariamente a correspondência da percepção sensorial ou do pensamento com o mundo físico exterior: pode ser interna à própria crença, identificar-se com esta, especialmente ao tratar-se de crença empírica ou sensorial. Verdade e crença coincidem praticamente ao nível sensorial.
Há, portanto, três fontes de verdade:
1) Os orgãos dos sentidos.
2) A razão (incluindo a linguagem, o discurso).
3) O mundo exterior –independente, na concepção realista, do sujeito percipiente.A verdade como aletheia – desocultação - é simultaneamente dada pela coerência (empírico-racional) e pela correspondência entre a percepção e o pensamento, por um lado, e o (suposto) mundo exterior por outro.
Russell escreveu:
«Assim, embora a verdade e a falsidade sejam propriedades das nossas crenças, são não obstante propriedades extrínsecas, em um certo sentido; porque a condição de verdade da crença é algo que não envolve quaisquer crenças, ou (em geral) qualquer espírito, mas tão somente os objectos da crença. Um espírito que crê, crê veridicamente quando há um todo complexo correspondente, todo que não envolve o dito espírito mas unicamente os seus objectos. Esta correspondência garante a verdade; a sua ausência, pelo contrário, redunda em falsidade.Deste modo explicamos simultaneamente que as crenças: (a) dependam dos espíritos para a sua existência; (b) não dependam dos espíritos para a sua verdade.» (…)
«Assim uma crença é verdadeira quando há um facto correspondente à crença; e falsa, pelo contrário, quando não há facto correspondente.»«Comprovam-se por aí que os espíritos não criam a verdade ou a falsidade. Eles criam as crenças; porém, criadas as crenças, não está na alçada do espírito o fazê-las falsas ou verdadeiras, excepto no caso especial em que se referem a coisas porvindouras que estão no poder de realização da pessoa que nelas crê, como seja por exemplo, o fazer uma viagem. O que dá verdade à crença é sempre um facto, facto que não envolve de maneira alguma (excepto em casos especiais) o espírito da pessoa que tem a crença.»(Bertrand Russel, Os problemas da filosofia, página 198-199).
O que é um facto? É um dado consistente dos sentidos, adicionado ou não de uma interpretação teórica, justificado ou não racionalmente. Uma árvore diante de mim é um facto, mas uma ideia de árvore é um conceito, uma idealização do facto sensorial-corporal que é a árvore. O facto científico já não é um facto puro mas um facto-conceito, um facto teorizado. Neste texto, Russell distingue crença de facto mas, na realidade, o facto nem sequer é crença ou é uma crença sensorial ou racional-sensorial de tal forma sólida que parece destituído do carácter falível de qualquer crença.
A verdade é sempre a estrutura e a consistência existencial das coisas ou das ideias e teorias. Verdade significa existência: no plano puramente subjectivo ou no plano objectivo e físico. Uma verdade no plano subjectivo pode ser mentira no plano objectivo porque as leis de correspondência interior-psíquico / exterior-físico não funcionam neste ou naquele caso. Há assim a verdade-conceito e a verdade-imagem, subjectivas, a verdade-facto, independentemente de haver humanidade. ou verdade-percepção empírica sólida, objectiva. Assim, a verdade objectiva é dupla, reforçada: supõe, ou não, a existência de uma verdade subjectiva (ideia, teoria) e de uma verdade objectiva (que engloba o objecto físico ou facto exterior e os fios de correspondência com a verdade subjectiva).
Quando dizemos que uma coisa não é verdadeira nem falsa cometemos um paralogismo: não existe nada fora do valor verdadeiro/ falso; uma coisa só «não é» verdadeira nem falsa quando a tratamos de um ponto de vista sectorial, isto é, quando a circunscrevemos ao domínio em que é possível dizer, no imediato, se é verdade ou falsidade. Assim o fez o positivismo lógico ao postular que a metafísica, em particular juízos como “Deus existe e é o criador do universo e da vida” e “a reencarnação é um fenómeno metafísico generalizado e obedece à lei do carma”, não é verdadeira nem falsa mas “sem sentido”. Porém, de facto, a metafísica tem de ser verdadeira ou não verdadeira (falsa): o positivismo lógico não fez mais do que adiar a decisão, pô-la entre paréntesis, ao restringir o campo da verdade-falsidade à experiência possível.
Também Aristóteles ao garantir que a verdade se encontra no juízo e não no conceito, erra parcialmente. Aquilo que está “fora da dialéctica verdade-falsidade” é, para Aristóteles, as essências (eidos) ou formas comuns (exemplo: cavalo, nuvem, homem). Mas estas são, em si mesmas, a nosso ver, verdade –e segundo Aristóteles, são, sem ter como contrário a falsidade. Mera aparência.
As essências encontrar-se-iam, supostamente, fora do ringue onde se defrontam a verdade e a falsidade num lugar onde, aparentemente, não podem ser contestadas pela falsidade. De facto podem, porque é possível, por exemplo, imaginar a essência homem com um corpo exterior de homem e, por dentro, vasos sanguíneos e tecidos não de carne e ossos mas de palha e metal, e imaginar a essência nuvem como nuvem na aparência exterior e sala de um restaurante no interior. Portanto, até o conceito é lugar de verdade.
Verdade é realidade existencial subjectiva (irrealidade) ou objectiva. Devem ser, pois, distinguidas as duas faces da moeda da verdade: a interna e a externa, tendo esta , em princípio, um poder de sobreposição em relação à outra.
Se Russell diz que a côr verde não é verdadeira nem falsa por ser um dado dos sentidos, erra: para garantir a verdade não é necessária justificação racional, basta o testemunho indelével dos sentidos. É óbvio que, no caso das ciências, que se adentram na «gruta» metafísica do universo, das espécies biológicas, da composição invisível da matéria, etc, o testemunho dos sentidos é insuficiente para determinar a verdade e a construção racional-imaginária é indispensável. Temos, pois, a verdade a brotar de duas fontes: os sentidos e a razão-imaginação, conexionados como as duas pontas de um compasso por um ponto referencial que designamos de mundo exterior.
É possível extrinsecar a verdade da crença: nem toda a verdade, do ponto de vista humano, transubjectivo, é crença ( união do objectivo exterior ou do objectivo interior/ideal com o subjectivo) – por exemplo, não é crença a verdade do que foi o planeta Terra há 5 milhões de anos, verdade em si mesma, sem observador humano - mas numerosas crenças não são verdades objectivas.
A verdade objectiva, absolutamente independente da humanidade e dos sujeitos percipientes individuais, isto é, a verdade como não crença, é, pois, possível. Quando se descreve a Terra, ou os números como arquétipos em si, antes do aparecimento do homem está-se, talvez, a pressupor, inconscientemente, uma mente pré-humana, cósmica, no acto de apreender a paisagem da Terra com dinossauros ou glaciares muito extensos e sem seres humanos. Mas é legítimo sustentar que a verdade não pressupõe sempre a relação do pólo objectivo, exterior, físico e vital, com subjectividades ou com uma transubjectividade oculta.
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O grupo III do Exame Nacional de Filosofia 714, de Julho de 2006 em Portugal, é tributário da defnição hiperanalítica, errónea, do conhecimento como «crença verdadeira justificada».
Vejamos o texto e as questões iniciais do grupo III desse Exame:
«Para sabermos alguma coisa, não basta adivinharmos, mesmo que acertemos, por maior que seja a confiança que depositemos no nosso palpite. Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? Não será ter provas? Isto é, para termos conhecimento, não será necessário estarmos ligados à verdade daquilo em que acreditamos por razões ou provas que temos para acreditar? E essas razões ou provas não terão de ser adequadas para justificarem a nossa crença?»
D.Kolak e R.Martin, Sabedoria sem Respostas: uma Breve Introdução à Filosofia, trad.port., Lisboa, Temas & Debates, 2004, p. 51 (adaptado)
1. Considere o texto.
1.1. Qual é a definição de conhecimento discutida no texto?
1.2. «Então, além da crença verdadeira, que mais é necessário para termos conhecimento? pergunta o autor.
Responda a esta pergunta, apoiando a resposta em um ou mais exemplos.»
Nos critérios de correcção da questão 1.2 deste Exame figura o seguinte:
-Para haver conhecimento, além de termos crenças verdadeiras, temos de ser capazes de justificá-las.
-Podemos ter crenças verdadeiras sobre algo, sem conseguirmos justificar tais crenças: por exemplo, quando jogamos às cartas, podemos acreditar que nos vai sair o ás de trunfo e isso acontecer de facto.
-Nesse caso temos uma crença verdadeira, mas não sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo. (Comentário nosso: A frase é um absurdo, pois se há uma crença verdadeira, que apreende o objecto (verdade), sabemos realmente que nos vai sair o ás de trunfo...)
- Porém, podemos saber que nos vai sair o ás de trunfo por termos viciado as cartas nesse sentido: neste caso, a nossa crença além de verdadeira, é justificada.»
CONHECIMENTO NÃO IMPLICA, OBRIGATORIAMENTE, JUSTIFICAÇÃO, AO CONTRÁRIO DO QUE SUSTENTAM OS AUTORES DA PROVA
Para haver conhecimento não tem que haver, necessariamente, justificação. O conhecimento é um fluxo de intuições sensoriais e intelectuais que se afirmam por si mesmas, isto é, possuem a dose de dogmatismo indispensável para nos colocar na posse de certezas. Por exemplo, a percepção do sol, da côr azul do céu, do sabor de um beijo não implica conhecer teoria nenhuma científica (heliocentrismo, astrofísica em geral, biologia humana, etc) mas tão somente sentir: não precisam de justificação.
O conhecimento é a certeza. É o contacto entre o sujeito humano e um objecto material, ideal ou de outra natureza, intrínseco ou extrínseco ao sujeito. Essa é a definição correcta. A justificação - conjunto de inferências para fundamentar, estruturar e consolidar o conhecimento obtido por intuição - vem, em regra, depois das intuições cognoscentes. Essa justificação não é condição do conhecimento: é um conhecimento suplementar que se adiciona ao conhecimento originário, intuitivo, destituído de justificação.
Se algum estudante escrevesse na prova de Exame de Filosofia o que aqui escrevo, seria penalizado, segundo os critérios de correcção...
E no entanto, senhores inquisidores da «filosofia analítica», gente da Arte de (Não) Pensar, a Terra da definição de conhecimento move-se! Não está imóvel frente ao sol da «crença verdadeira justificada» com que nos quereis queimar os neurónios pensantes, usando as insígnias dos vossos barretes cardinalícios de mestres ou doutorados! Há mais e melhores definições de conhecimento além da vossa...
Há conhecimento erróneo, ilusório e conhecimento verdadeiro, empírico, empírico-racional, racional ou supra-racional.
Os mentores ideológicos desta prova - isto é os autores do manual de Filosofia do 11º ano A arte de pensar, da Didáctica Editora, Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão - não atingiram, sequer, a margem do rio do conhecimento filosófico, que é uma corrente holística indivisível , perspectivada desde vários ângulos em redor: não percebem que escravizar alunos e professores à definição, dada em 1963 pelo filósofo norte-amercano de segunda categoria Edmund Gettier (n. 1927), de conhecimento como «crença verdadeira justificada» é uma ditadura antifilosófica de sectários, de gente incapaz de pensar com profundidade.
Ora os testes de Exame Nacional de Filosofia têm de ser muito bem concebidos, com grande amplitude de pensamento e sabedoria, o que, seguramente, não foi o caso.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz
Acreditar e saber são coisas distintas, como sustenta a generalidade dos manuais de Filosofia?
Se digo «acredito que o átomo existe» não é o mesmo que dizer «sei que o átomo existe»?
Alguns responderão: «Não! Saber é certeza e acreditar é incerteza.»
Respondo que há duas formas de acreditar, duas formas de crença: dogmática, como no caso das teses científicas (exemplo: «A fórmula do ácido sulfúrico é H2SO4») ou vivenciais directas (exemplo: « A exposição ao sol, em excesso, no verão, queima-me a pele descoberta»); não dogmática, probabilística (exemplo: « Vou jogar nos números 2, 17, 24, 35, 47 porque acredito poder ganhar, talvez, o euro-milhões hoje»).
Acreditar e saber só se distinguem, de forma circunstancial, se o acreditar designar esta ou aquela crença não dogmática, na probabilidade de algo ocorrer(exemplo: «Acredito que um dia os seres humanos serão imortais») e o saber fôr interpretado como algo de definitivo, dogmático, absolutamente certo (exemplo: «Sei que todos os seres humanos morrem, inexoravelmente»).
No resto, acreditar e saber é o mesmo. Quem acredita sabe sempre algo, duvidoso ou certo.
f.limpo.queiroz@sapo.pt
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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