Diversos equívocos caracterizam o manual do professor da Areal Editores «Clube das ideias, filosofia 11º ano» de Carlos Amorim e Catarina Pires, com revisão científica de J.A. Pinto, sem embargo de possuir alguns textos de boa qualidade.
AMBIGUIDADE E ERRO EM PERGUNTAS DE ESCOLHA MÚLTIPLA
Diversos erros pautam exercícios com questões de escolha múltipla neste manual. Vejamos exemplos:
«Na resposta a cada um dos itens 1 a 10, selecione a única opção que permite obter uma afirmação correcta.»
4. O conhecimento a priori é constituído pelas crenças que:
A) Só podemos justificar sem recorrer à experiência.
B) Só podemos justificar recorrendo à experiência.
C) Podemos justificar sem recorrer à experiência.
D) Podemos justificar recorrendo à experiência.»
(Carlos Amorim e Catarina Pires, revisão de J.A. Pinto, «Clube das ideias, filosofia 11º ano», Areal Editores, pp. 188-189).
Segundo os autores do manual, a única resposta correcta é a C.
Crítica minha: Há duas respostas correctas: A e C. São quase indistinguíveis uma da outra e é uma arbitrariedade dizer que a «C é superior ou mais correcta que a A». O conhecimento a priori é aquele que ou é anterior à experiência dos sentidos ou é paralelo a esta mas hermeticamente isolado dos dados empíricos. Pobres estudantes, submetidos a perguntas tão ambíguas e mal construídas que são a «jóia» da medíocre filosofia analítica reinante no ensino em Portugal!
Eis outro exemplo:
«6. Segundo Descartes, o cogito é uma verdade indubitável porque:
(A) Intuímo-lo com toda a clareza e distinção.
(B) Podemos provar que Deus existe.
(C) A existência do nosso corpo pode ser uma ilusão.
(D) Somos uma substância cuja natureza é o pensamento.»
( ibid, pag 189)
Segundo os autores do manual, só a resposta A está correcta.
Crítica minha: Há três respostas correctas: A, C e D. Ainda que a resposta A pareça ser a mais óbvia, a resposta C está certa: Descartes duvida do corpo mas não do cogito que é o próprio instrumento da dúvida. E a resposta D também está certa porque, intuitivamente, nos apercebemos que o nosso ser é exclusivamente pensamento (cogito), numa fase inicial do raciocínio.
E na ficha informativa da página 131 do manual lemos:
3. O argumento «Desde que se observa que agosto tem 31 dias. Portanto, no próximo verão, agosto terá 31 dias» é um:
(A) Argumento indutivo (generalização).
(B) Argumento indutivo (previsão).
(C) Argumento por analogia.
(D) Argumento de autoridade.
(Carlos Amorim e Catarina Pires, revisão de J.A. Pinto, «Clube das ideias, filosofia 11º ano», Areal Editores, pagina 131).
Segundo os autores a única resposta correcta é a B.
Crítica minha: a confusão paira à partida na divisão, algo nebulosa, entre argumento indutivo (generalização) e argumento indutivo (previsão). A previsão é uma generalização estendida para futuro. Mas o importante é perceber que nenhuma das respostas está correcta, em rigor, porque se trata de um argumento dedutivo, parte de uma premissa geral da qual extrai uma conclusão particular: «o mês de Agosto tem por natureza 31 dias, logo deduz-se que o mês de Agosto de 2014 vai ter 31 dias».
UMA INCOMPREENSÃO DO QUE É A FENOMENOLOGIA COMO ONTOLOGIA
Visando definir fenomenologia, o manual descreve assim a análise fenomenológica do acto de conhecer:
«Entre o sujeito e o objecto há uma oposição.»
«Entre eles, estabece-se uma correlação: o sujeito apreende o objecto e este é apreendido pelo sujeito.»
«O sujeito, nessa apreensão, isto é, nesse movimento de saída de si e regresso a si, constrói uma representação ou imagem do objecto.»
(Carlos Amorim e Catarina Pires, revisão de J.A. Pinto, «Clube das ideias, filosofia 11º ano», Areal Editores, pág. 141; o destaque a negrito é posto por mim).
Esta descrição do acto de conhecer é pertença da teoria realista, baseada num dualismo nítido entre sujeito e objecto, e não da fenomenologia como ontologia. Nesta última, a correlação não se estabelece, é uma estrutura originária que sempre esteve lá, ligando o sujeito ao objecto exterior no mundo e não se pode desfazer. Há, pois, confusão destes autores sobre o que é fenomenologia. Seguem acriticamente textos de Hessen e Hartmann. Aliás citam um texto de Hessen que apresenta uma incoerência:
« O objecto é o determinante, o sujeito é o determinado. O conhecimento pode definir-se, por último, como uma determinação do sujeito pelo objecto. Mas o determinado não é o sujeito pura e simplesmente, mas apenas a imagem do objecto nele. Esta imagem é objectiva, na medida em que leva em si os traços do objecto» ( Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado, 1976, pp 27, citado in Carlos Amorim e Catarina Pires,«Clube das ideias, filosofia 11º ano», Areal Editores, pág. 140; o destaque a negrito é posto por mim).
Então o sujeito não é determinado pelo objecto mas apenas a imagem nele formada é determinada? Isto está errado. É óbvio que o sujeito é determinado, impressionado pelo objecto e a imagem deste resulta da interacção prévia sujeito-objecto. Hessen, brilhante académico, lavra no magma das confusões. Como Heidegger, Quine ou Rorty. E muitos outros.
UMA TOTAL INCOMPRENSÃO SOBRE OS FENÓMENOS E A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL EM KANT
Na tentativa de explicar a teoria do conhecimento em Kant, diz o manual da Areal:
« Imagine que hoje de manhã, como acontece a maior parte dos dias, apanhou um autocarro em direcção à escola. Vai entretido com os seus pensamentos quando, de repente, sente o autocarro a travar. À sua frente, uma pessoa desiquilibra-se e cai. A pessoa a cair dá lugar a uma intuição. As intuições correspondem à recepção dos dados da experiência através das sensações e incluem a localização no espaço e no tempo (formas puras a priori da sensibilidade): hoje pela manhã (tempo) alguém caiu no autocarro (espaço)».(Carlos Amorim e Catarina Pires,«Clube das ideias, filosofia 11º ano», Areal Editores, pág. 182; o destaque a negrito é posto por mim).
Catarina Pires e Carlos Amorim não compreendem quase rigorosamente nada da ontognosiologia de Kant. Interpretam-no como um realista, isto é, no exemplo, como alguém que supõe que há um autocarro real incognoscível («númeno») e que o autocarro que vemos é distorcido («fenómeno») - interpretação partilhada por 99% dos catedráticos de filosofia - e não como um idealista. Ora, em Kant dados da experiência e intuições são a mesma coisa, os dados empíricos são as sensações de matéria ( madeira, carne, pedra, ferro, etc), a cor, o som, a dureza, e tudo isto é construção subjectiva do espírito do observador: não há autocarro fora do meu espírito, sou eu que invento o autocarro com as minhas formas a priori de espaço e de tempo, e com as categorias de impenetrabilidade, unidade, realidade, sou eu que invento o corpo da pessoa a cair diante de mim .
Para Kant, o fenómeno é um conjunto de intuições objectivas/ sensações moldadas pelas intuições puras de espaço e tempo. Kant é, neste ponto, igual a David Hume. Não há autocarro fora de mim: a minha sensibilidade engloba o mundo inteiro e tudo o que existe materialmente é criação mental minha. Kant chama a isto realismo empírico, isto é, realismo aparente, diferente do realismo ontológico ou transcendental. Mas não culpemos excessivamente Catarina Pires, Carlos Amorim e J.A.Pinto: nem Bertrand Russel, nem Giles Deleuze, nem Zizeck ou Heidegger entenderam este aspecto decisivo da teoria de Kant o qual, aliás, apresentou, equivocamente, a sensibilidade como «mera receptividade» quando ela é activa e cria os corpos materiais e a matéria.
Kant escreveu:
«Devíamos contudo lembrar de que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido...de que, portanto, não é o movimento da matéria que produz em nós representações, mas que ele próprio (e, portanto, também a matéria que se torna cognoscível) é mera representação...»(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, nota da pag 363-364;o negrito é posto por mim).
No exemplo do manual acima, Carlos Amorim e Catarina Pires interpretam o autocarro e a pessoa como objectos em si, reais, mas segundo se deduz de este texto de Kant o autocarro e a pessoa são meras representações inventadas pelo nosso espírito. Ora o que são representações? São imagens, sensações, ideias, juízos, e nada mais que isso. O autocarro é irreal, tal como a pessoa a cair é irreal. Não passam de fenómenos, aparências muito consistentes. Este manual, como aliás todos os outros manuais de filosofia do ensino secundário, deturpa, por incompreensão, a teoria dos objectos materiais ou estética transcendental de Kant. Esta deturpação do pensamento de Kant, por ignorância, é geral nas universidades portuguesas e brasileiras, britânicas, norte-americanas e outras.
O que valem as universidades? Muito e muito pouco. Os doutoramentos encobrem erros teóricos graves a par de teses correctas. Luzes e sombras impregnam as cátedras - mais sombras do que luzes. O melhor do saber está fora das universidades, em livres pensadores excêntricos que a massa académica não compreende ou não aceita.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Sartre move-se, tal como Heidegger, no paradoxo posicional da fenomenologia: perspectivar, de fora, o mundo físico e a consciência do sujeito (designada de para-si, em Sartre) como se fosse um terceiro Olho, exterior, num hiper realismo, e, simultaneamente, perspectivar a partir de dentro da consciência do sujeito o mundo físico exterior por saber que é impossivel abandonar, por completo, o «Cogito» de Descartes, perspectiva traduzida, de diferentes modos, no idealismo e no realismo. O esforço de Sartre para destacar o primado da coisidade material, que integra a facticidade, sobre a consciência subjectiva é visível. No entanto, na linha da fenomenologia heideggeriana, Sartre fala na situação como correlação sujeito (para si) / objecto material (em si). Escreveu:
«A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada a não ser a sua situação) e é também a coisa inteira (nunca há mais nada senão as coisas) . É o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação, se assim quisermos; ou são as coisas a reenviar ao sujeito a imagem dele. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, do meu nascimento, do meu lugar, do meu passado, dos meus redores, do facto do meu próximo - e é a minha liberdade sem limites como o que faz com que haja para mim uma facticidade.»
(Sartre, "O Ser e o Nada", Círculo de Leitores, pag 541; o negrito é posto por mim).
A confusão neste texto de Sartre reside no seguinte: a liberdade não faz com que haja uma facticidade, isto é, um estado de coisas inevitável e incontornável (exemplo: o meu rosto, o meu capital genético, a família e o meio onde nasci e cresci, etc). É o inverso que, originariamente, acontece. A facticidade é anterior, ontologicamente, à liberdade. Não escolhemos o corpo ou a família em que nascemos, ainda que a posteriori possamos agir sobre um ou outra segundo o nosso livre-arbítrio. Decerto, a liberdade pode escolher uma das várias escarpas do promontório rochoso da facticidade, em momentos ulteriores - supondo que o fatalismo não existe, claro. Mas essa escolha não é uma criação a partir do nada, um poder infinito da liberdade, como a frase acima, de Sartre, sugere. Não existe a liberdade infinita.
Outro paradoxo implícito no texto consiste nisto: o sujeito, o para-si, é um "nada" mas ao escolher entre as diversas vias da situação - de que ele é uma componente móvel e activa - modifica esta, desenvolve certas facetas desta e enfraquece outras. Por exemplo: se alguém é pouco musculado, pode decidir frequentar um programa de músculação em ginásio e alterar formas no seu corpo. Então a frase «nunca há mais nada senão as coisas» não é verdadeira: o livre-arbítrio do «para si» (consciência individual) é causa eficiente de algumas coisas, não é, por conseguinte, um nada. Se escrevo um livro usando a "coisa" que é a minha mão, a minha inteligência (o «para mim») não é um nada, mas sim a autora do livro, das páginas que vão surgindo escritas. A coisidade do sujeito que se opõe à coisidade material não é da mesma natureza desta: é demiúrgica, criadora, opõe-se à inércia da facticidade.
Sartre defende, com brilhantismo, a sua tese do primado da liberdade sobre a facticidade:
« Não sou acaso eu que decido do coeficiente de adversidade das coisas e, inclusive, da sua imprevisibilidade ao decidir de mim mesmo? Não há assim acidentes numa vida; um acontecimento social que rebenta subitamente e me arrasta não vem de fora; se sou mobilizado para uma guerra, esta guerra é a minha guerra, ela é à minha imagem e eu mereço-a. Mereço-a, em primeiro lugar, porque dispunha sempre da possibilidade de a ela me subtrair pelo suícidio ou a deserção; estes possíveis últimos são aqueles que devem estar-nos sempre presentes quando se trata de encarar uma situação. Na falta de a ela me ter subtraído, escolhi-a; pode ser por moleza, por cobardia perante a opinião pública, porque prefiro certos valores ao da própria recusa de fazer a guerra (a estima dos meus inimigos, a honra da minha família,etc). De qualquer modo, trata-se de uma escolha. » (Sartre, O Ser e o Nada, pag 546; o negrito é colocado por mim).
Mas este voluntarismo sartriano minimiza o peso «morto» do determinismo biológico e social que faz frente ao livre-arbítrio.
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