Quarta-feira, 16 de Setembro de 2020
Equívocos de Hegel: o uno é tão abstrato como a forma universal?

 

"Fenomenologia do Espírito" é um livro enfadonho de Hegel (Estugarda, 27 de agosto de 1770 – Berlim, 14 de novembro de 1831), excessivamente esquemático, a prefigurar o raciocínio fragmentado da filosofia analítica, e com subtis paralogismos, sem embargo de conter algumas ideias notáveis. O mestre alemão da dialética na universidade de Berlim na primeira metade do  século XIX, que Schopenhauer classificava de charlatão, tem, na verdade, erros teóricos, ambiguidades,  na sua exposição. 

 

No texto abaixo afirma Hegel, por exemplo, que o uno e a forma da universalidade são contrários e igualmente abstractos. Isto é um erro. E fala na forma do uno. Mas o uno tem forma? O uno é sem forma e esta inscreve-se no uno, não é abstrata, ou pelo menos, não é  tão abstracta como ele. Do sem forma à forma universal (e esta é: o triângulo, o hexágono, o círculo, o cubo, a esfera, a pirâmide, etc.) vai um passo no sentido do concreto. Entendendo habitualmente o termo autoconsciência como a consciência do indivíduo isolado, Hegel escreveu:

 

«3.A contradição na autoconsciência»

«O trânsito opera-se da forma do uno à forma da universalidade, de uma abstração a outra, do fim do puro ser para si que rejeitou a comunidade com outros, ao puro contrário, que é com isso um ser em si igualmente abstrato.» 

(G.W.F. Hegel, Fenomenología del Espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pag. 216)

 

NÃO HÁ MEDIAÇÃO ENTRE A VIDA E A MORTE? O PRAZER É UM MEDIADOR COM A ESSÊNCIA?

 

Hegel sustenta erradamente que não há mediação entre a vida e a morte. Então e o estado de vida vegetativa, o coma? Não é um mediador entre a vida e a morte? Hegel escreveu:

 

«Este trânsito do ser vivo à necessidade carente de vida manifesta-se ante ele, portanto, como uma inversão sem mediação alguma. O mediador tinha que ser aquilo  em que ambos os lados formavam uma unidade, em que a consciência, portanto, reconhecia um momento no outro, reconhecia o seu fim e o seu operar no destino e o seu destino no seu fim e no seu operar, reconhecia a sua própria essência em esta necessidade. Mas esta unidade é para esta consciência precisamente o próprio prazer ou o sentimento simples, singular e o trânsito do momento de este seu fim ao momento da sua verdadeira essência é, para esta consciência, um puro salto ao contraposto; com efeito, estes momentos não se entrelaçam no sentimento mas no puro si mesmo, que é um universal ou o pensamento. »

(Hegel, ibid, pág. 217; o destaque a negro é posto por mim)

 

Por que razão o prazer é o mediador, se se contrapõe à essência, isto é, ao outro, à comunidade? Há uma certa ambiguidade nestas reflexões. 

 

A filosofia de Hegel move-se mecanicamente em um mecanismo triádico, assenta em três ideias básicas: o em si, isto é, o ser, abstracto e universal; a essência, isto é, o  contrário do em si, o ser desdobrado, o ser que se contêm a si e ao outro ; o para si, isto é, o ser que desfaz o desdobramento e se recolhe, enriquecido pela experiência, pelo contacto com a comunidade.

 

O MOVIMENTO DE ALIENAÇÃO É SIMULTANEAMENTE LIBERDADE DO SER E NECESSIDADE?

 

Ao referir-se à forma superior do espírito, isto é, ao espírito absoluto que é a filosofia ou a racionalidade de Deus/ Ideia Absoluta, Hegel escreve: 

«3.O espírito concebido no seu retorno à imediatez, que é ali

 

«Assim pois, no saber do espírito, fechou-se o movimento de configuração, ao ser ele mesmo afectado pela diferença superada da consciência. O espírito conquistou o puro elemento do seu ser ali, o conceito. O conteúdo é, segundo a liberdade do seu ser, o si mesmo que se aliena ou a unidade imediata do saber de si mesmo. O puro movimento de esta alienação constitui, considerado enquanto ao conteúdo, a necessidade de este.»

(Hegel, ibidem pág.471)

 

Há, nestas passagens de Hegel, uma incoerência: primeiro, afirma que o conteúdo - exemplifiquemos: o Estado surgido da revolução francesa de 1789-1799 é um conteúdo em que o Espírito Deus se aliena ou separa de si mesmo - surge como liberdade do ser, depois diz que a alienação quanto ao seu conteúdo é necessidade, isto é, lei obrigatória, infalível que exclui a liberdade. Conteúdo livre e ao mesmo tempo necessário. Há aqui uma violação do princípio da não contradição...Tudo isto se permite a Hegel porque é grande na linguagem abstracta onde o transvase ilegítimo de conceitos ocorre.

 

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Quarta-feira, 8 de Junho de 2016
Há obras de arte sem assunto, como sustentou Goodman?

Nelson Goodman, filósofo norte-americano construtivista (1906-1998), escreveu:

 

«Obviamente, o assunto é o que é dito, o estilo é o modo como é dito. Um pouco menos obviamente, essa fórmula está cheia de falhas. A arquitectura, a pintura não objectiva e a maior parte da música não têm assunto. O estilo delas não pode ser uma questão do modo como dizem algo, porque elas não dizem literalmente nada; fazem outras coisas, significam de outros modos. » (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos,pag 63, Editorial Asa, 1995).

 

O problema que aqui se coloca é o da ruptura com a concepção hegeliana e romântica da arte como um composto de forma e conteúdoParte da  arte contemporânea, aparentemente sem referente no mundo exterior, não tem conteúdo ou assunto, segundo Goodman. Seria, pois, apenas forma. Isto não se aplica, em regra, à literatura, porque esta se compõe de frases, significantes com um significado, mas mesmo aí há questões problemáticas:

 

«A forma varia enquanto o conteúdo permanece constante - mas existem dificuldades mesmo com esta máxima. Graham Hough escreve: ".. quanto mais reflectimos sobre isso, mais problemático se torna falar sobre diferentes modos de dizer; cada modo de dizer não é, de facto, o dizer de uma coisa diferente?» (Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, pag 64, Editorial Asa, 1995).

 

Se entendermos por assunto o que Hegel designa por conteúdo da obra de arte - as ideias, os sentimentos que esta desperta no espectador - então toda a obra de arte tem assunto. Deveremos distinguir dois tipos de assunto: aquele que é objectivo, dizível, e aquele que é absolutamente subjectivo, inexprimível, inefável. Este último predomina na arte contemporânea que o público vulgar classifica de "sem sentido", "incompreensível", "pseudo-arte porque não se entende e não mostra o mundo como é".

 Corrigindo Goodman: há obras de arte sem assunto racional, perceptível e objectivo, são as do abstracionismo, dadaísmo e outras que possuem ou suscitam assunto subjectivo, indizível.

 

 

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Sábado, 17 de Novembro de 2012
Questionar Aristóteles: possessão-privação é distinto de contradição?

Aristóteles foi, a meu ver, o maior filósofo dialético da Antiguidade clássica grega. Definiu quatro tipos de opostos: os contrários, os contraditórios, os relativos e os privativos/possessivos. Há ainda os intermédios que fazem a mediação entre os contrários. Mas nesta divisão desdobrada num mesmo plano afigura-se-me haver, pelo menos, um paralogismo.

 

Ser e não ser é uma oposição de contradição mas é também uma oposição de posse e privação: o ser possui ser mas está privado de não ser e viceversa, o não ser está privado de ser. Afinal qual é a diferença? A oposição entre a possessão e a privação não é senão o lado formal da contradição, o enunciado abstracto desta, da dicotomia A  e não-A. Ou se possui A ( e se está privado de não-A) ou se possui não-A (e se está privado de A).

Não há possessão /privação fora da contradição, a meu ver. Aristóteles escreveu:

 

«Por sua vez,  a contrariedade primeira é possessão e privação, mas não qualquer privação (pois "privação" tem muitos sentidos), senão a completa. ( Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1055a, 30-35).

«A privação, por seu lado, é um tipo de contradição.» ( Aristóteles, Metafísica, Livro X, 1055b, 1-5).

 

 

Questionemos Aristóteles. Por que razão só a contrariedade primeira é possessão-privação completa e a contrariedade segunda, como, por exemplo, mesa de madeira e fogueira, não é possessão e privação completa? A mesa de madeira está privada de fogo e possui moléculas de celulose e o fogo em si, nas suas partículas ígneas, está privado da mesa de madeira. Aristóteles situa, no texto acima, a privação-possessão como um tipo de contradição, uma espécie dentro do género contradição. Não está a ser exacto, a meu ver. Toda a contradição, incluindo a contrariedade, é, na sua estrutura, uma oposição entre posse e privação.


«E de certo modo a forma dos contrários é a mesma, posto que a substância da privação é a substância oposta, por exemplo, da doença a saúde, já que a ausência desta é a doença, e a saúde é, por sua vez, a noção que está na alma, quer dizer, o conhecimento.»( Aristóteles, Metafísica, Livro II, 1032b, 1-5).


Se a forma dos contrários é a mesma, o que os distingue? O conteúdo, a matéria (interior à forma). Assim há possessão e privação ao nível da forma, da essência, e ao nível da matéria, da existência. Neste último caso diremos, por exemplo, que há uma contradição entre estar e não estar nesta sala: estou nela às dezasseis horas de um dado dia mas às dezoito horas estou ausente. A contradição entre estar e não estar é diacrónica, os seus campos opostos desdobram-se no tempo, não são simultâneos, excepto no pensamento. Não é pois, possível, estudar o ser (entendido como essência) sem implicar o tempo (existência)- e isto contraria a linha de investigação heideggeriana, deficiente do ponto de vista dialético, porque atribui à ontologia tradicional a «confusão» entre ser e tempo, como se fosse possível isolar entre si estas duas dimensões .

 

Apesar de grande dialético, Aristóteles não conseguiu evitar estas duplicações do mesmo conceito: contradição (A versus não-A), possessão-privação (A versus não A). Ora a dialética divide cirurgicamente a realidade, as coisas, usando a díade (dualidade) e a tríade (trialidade). Há, no entanto, maior profundidade em Aristóteles, do que em Heidegger ou em Hegel, sem embargo de estes terem gerado doutrina filosófica distinta da do Estagirita. Em termos de estatura de pensamento: Aristóteles o maior, depois Hegel e, em terceiro lugar, Heidegger.

 

 

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Quinta-feira, 19 de Abril de 2012
Estética de Hegel: a luz, a cor e a pintura no quadro das artes

 

A Estética, de Hegel, é um livro de um grande pensador, atento àos aspectos multiformes das artes plásticas (pintura, escultura, arquitectura) e não plásticas (poesia, teatro, música, dança). Hegel escreveu na sua teoria da cor e da luz incolor:

 

«Com efeito, a luz como dissemos não existe, senão em relação a outra coisa diferente dela, e particularmente à treva. Mas nesta relação os dois princípios, longe de se oporem um ao outro, formam uma unidade, uma combinação de luz e treva. A luz, assim toldada e obscurecida, mas penetrando e iluminando, por sua vez, a treva, forma o princípio da cor, que é o material próprio da pintura.A luz em si é incolor;é a indeterminação pura da identidade consigo mesma; a cor que, em relação à luz, é já qualquer coisa de relativamente escuro, e, por conseguinte, diferente da luz, é um obscurecimento a que se associa o princípio da luz, para formar uma unidade, e é ter-se uma falsa e péssima ideia da luz o considerá-la como composta de diferentes cores, quer dizer de diferentes escuridades.»

 

(Hegel, Estética, Pintura e Música, pag 42-43, Guimarães Editores, 1962; o destaque a negrito é de minha autoria)

  

Assim, Hegel opõe-se à ideia de que a luz (branca) se decompõe, ao refractar-se num prisma, nas sete cores do arco-íris. Estas seriam pois externas à luz, brotariam das diferentes escuridades das diversas zonas do prisma.  

 

Prossegue Hegel:

 

«As formas, as distâncias, a delimitação, os contornos, enfim todas as relações espaciais e todos os diferentes modos de manifestação no espaço, são produzidos na pintura pela cor, cujo princípio ideal está igualmente em condições de representar conteúdos ideais e permite traduzir, com o auxílio de oposições mais ou menos profundas, de delicadezas e transições várias, os mais ligeiros matizes dos objectos representados. O que podemos assim obter, graças à cor, é verdadeiramente admirável. Eis, por exemplo, dois homens totalmente diferentes: cada um representado pela consciência que tem de si prórprio e pelo seu organismo animal, uma totalidade espiritual e corporal, e todavia, toda esta diferença se reduz num quadro a simples diferenças de cores. Aqui termina uma cor, ali começa outra e, graças a isto, tudo surge ante a nossa vista: a forma, a distância, os jogos fisionómicos, a expressão, tudo o que cada homem tem de mais sensível e mais espiritual. E esta redução, dissemos já, não deve ser considerada como um expediente, como um defeito, mas antes pelo contrário: a pintura negligencia intencionalmente a terceira dimensão, para substituir a realidade puramente espacial pelo princípio mais elevado e mais rico da cor.» (...) (Hegel, Estética, Pintura e Música, pag 42-43, Guimarães Editores, 1962)

 

Eis, no texto acima, duas teses extraordinariamente interessantes de Hegel: é a cor que produz as formas - a cor que estamos habituados a encarar como um conteúdo que preenche o espaço vazio da forma, já é, em si, uma forma; o princípio da cor substitui a representação tridimensional do espaço, sendo mais rico que esta, o que significa que a cor é porta de acesso ao mundo espiritual mais do que a forma trimidensional de uma estátua.

 

A PINTURA É A ARTE QUE MELHOR LIGA A INTERIORIDADE À EXTERIORIDADE

 

Hegel compara entre si, do ponto de vista da forma e do conteúdo, as diferentes artes:

 

«A primeira coisa a considerar e sobre a qual importa chamar a atenção é que a pintura restringe as três dimensões do espaço à superfície. A concentração total dessas dimensões seria representada por um ponto, o que significaria a supressão da justaposição e a instabilidade consecutiva desta supressão que corresponde a um ponto do tempo. Mas é somente na música que esta negação se encontra realizada de uma forma consequente. A pintura, pelo contrário, deixa subsistir o espacial, ao suprimir apenas uma das três dimensões, e ao fazer da superfície o elemento das suas representações. Esta redução das três dimensões às duas da superfície está implicada no princípio da interiorização que se não pode manifestar no espacial como interioridade senão reduzindo a totalidade exterior, em vez de a deixar subsistir na sua completa extensão. (...)»

«Já a escultura, em lugar de ser uma simples reprodução, imitativa da realidade natural, corporal, era uma criação do espírito exercendo-se sobre a natureza e eliminando, por esta razão, das suas figuras, tudo o que não correspondia ao conteúdo que se tratava de exprimir.  Entre as particularidades eliminadas pela escultura, a cor era uma delas, de modo que permanecia apenas a abstração da figura sensível. Na pintura sucede o contrário, porque ela tem por conteúdo a interioridade espiritual que não pode manifestar-se exteriormente senão como parecendo retirar-se do exterior para reentrar em si mesma

(Hegel, Estética, Pintura e Música, pag 32-34, Guimarães Editores, 1962; o destaque a negrito é posto por mim).

 

A fina inteligência deste texto acima destaca que a música corresponde à ausência de espacialidade, tal como o ponto, ao passo que a pintura implica o espaço a duas dimensões. Enquanto a escultura é uma exterioridade, um fora de si, a pintura é um passar do exterior ao interior,  porque não é tridimensional e força a imaginar a realidade através de aparências.

A comparação entre música, pintura e escultura sugere-me a analogia com as três fases da Ideia Absoluta ou Deus concebidas por Hegel: a primeira, a fase do ser em si, ou Deus sozinho antes de criar o mundo, em que não há espaço nem tempo, poderia ser associada à música; a segunda, a fase do ser fora de si, ou Deus exteriorizado, alienado em natureza física e biofísica, em estrelas, montanhas, plantas e animais, seria simbolizada pela escultura; a terceira, a fase do ser para si, em que Deus encarna em humanidade a qual através do pensamento e da acção intenta volver a Deus espírito seria simbolizada pela pintura.

 

 

« Do ponto de vista da generalidade, existem diferenças entre as artes; têm umas um carácter mais ideal, são outras mais acessíveis à percepção exterior. As produções da escultura, por exemplo, são mais abstractas do que as da pintura; a poesia, os poemas épicos são, por um lado, dotados de menor vida exterior do que uma verdadeira representação dramática mas, por outro lado, ultrapassam a arte dramática graças ao seu conteúdo concreto...»

«Como todavia, é o espírito que realiza numa forma exterior, o conteúdo que tem um interesse intrínseco, cabe perguntar, também neste caso, qual seja o significado preciso da oposição entre o ideal e o natural. » (Hegel, Estética, o belo artístico ou o ideal, pag. 32, Guimarães editores, 1962; o destaque a negrito é posto por mim).

 

O espírito a que o texto se refere é o espírito do mundo, ou seja, a ideia absoluta (Deus) incarnada em humanidade, a ideia absoluta na sua terceira fase, de ser para si. As outras duas fases anteriores são como já disse: o ser em si ou ideia absoluta, Deus antes de criar o universo, o espaço e o tempo; o ser fora de si, isto é, Deus alienado em natureza biofísico, transformado em astros, montanhas, planícies, minerais, vegetais e animais, à excepção do homem.

 

 

E prossegue Hegel:

 

«Assim, com efeito, a pintura não deve introduzir no seu domínio senão o que, contariamente à escultura, à poesia e à música, ela é capaz de representar mediante e através das figuras e das formas exteriores, quer dizer, a concentração do espírito, cuja expressão permanece inacessível à escultura, enquanto que a música é incapaz de dar uma concreta expressão exterior da interioridade e a própria poesia se limita a uma imagem imperfeita da forma sensível. A pintura, pelo contrário, está em condições de lançar uma ponte entre a interioridade e a exterioridade, de ligar um ao outro o interior e o exterior, de exprimir exteriormente a interioridade total. Portanto tem por conteúdo, tanto a vida da alma com toda a profundidade dos sentimentos que nela se agitam, como as particularidades vincadas dos caracteres e tudo o que é característico em geral; (...) todavia a particularidade específica deve  estar como que gravada, enraízada na fisionomia, e ser parte integrante da forma exterior.» (Hegel, Estética, Pintura e Música, pag 51, Guimarães Editores, 1962; o destaque a negrito é posto por mim).

 

Na obra de pintura, o conteúdo é o sentimento geral, o ideal universal, - tese - a forma são os traços e as cores do quadro, o exterior-antítese. A síntese é o carácter do indivíduo, a particularidade específica, misto de visível e de invisível, que se espelha nos traços do rosto, nas cores da figura.

 

 

 

 O VERMELHO É A COR MASCULINA DA REALEZA, O AZUL A COR FEMININA DA MATERNALIDADE

 

 

 

As cores exprimem o espírito, o ideal universal e o subjectivo particular.

 

«A cor comporta igualmente uma oposição do claro e do escuro que vão reagindo um contra o outro, reforçando-se ou aniquilando-se reciprocamente. Apesar da sua intensidade, o vermelho e o amarelo são em si mais claros que o azul. Isto diz respeito à própria natureza das diferentes cores que Goethe expôs com mestria. Efectivamente, no azul é o escuro que domina e só aparece como azul depois de ter atravessado um meio mais claro, mas não inteiramente transparente. O céu, por exemplo, é escuro, tanto mais escuro, quase negro, quanto mais nos elevamos; mas visto através de um meio transparente, embora perturbador, como é o do ar atmosférico das regiões mais baixas, parece azul, e tanto mais azul quanto o ar é menos transparente. No amarelo, pelo contrário, é o claro que age através dum meio nublado, mas que o deixa transparecer. O fumo, por exemplo, é um destes meios; quando olhamos através do fumo qualquer coisa negra que atrás dele se encontra, mas que ele deixa ainda transparecer, o fumo toma uma cor azulada; toma pelo contrário uma cor amarelada ou avermelhada, quando se encontra ante um meio claro. O vermelho em si é a cor real e concreta, resultando da interpenetração do azul e do amarelo que formam, por seu turno, um par de cores opostas. O verde pode igualmente ser considerado como o produto de uma combinação análoga, mas de uma combinação que não vai até à fusão total, até à formação de uma unidade concreta; resulta muito simplesmente de uma supressão das diferenças, que se traduz por uma neutralidade calma, saturada. Estas cores são as mais puras, as mais simples, as cores fundamentais. »

 

«Há um simbolismo das cores. Devemos procurar um sentido simbólico na maneira como as aplicavam os antigos pintores, sobretudo no emprego do azul e do vermelho. O azul, pelo facto de ter por princípio o escuro que não opõe qualquer resistência ( enquanto que é o claro que resiste, que produz, que vive e anima) corresponde a uma maneira de considerar as coisas mais doce, mais reflectida, mais calma; o vermelho simboliza o princípio varonil, dominador, real; o verde, o indiferente e o neutro. Conformemente a esta simbólica, Santa Maria, quando é representada sentada sobre um trono na qualidade de Rainha do céu, está revestida de um manto vermelho, ao passo que traz um manto azul, quando é representada como Mãe

 

(Hegel, Estética, Pintura e Música, pags 96-98, Guimarães Editores, 1962; o destaque a negrito é posto por mim).


 

 

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Sábado, 23 de Dezembro de 2006
Mito e Sofisma em torno da Lógica Proposicional Simbólica

Está, hoje, na moda,  o pensamento superficial de que «a lógica proposicional é o eixo principal do pensamento filosófico e de que, sem ela, este não é possível».

 

No entanto, os pequenos pensadores adeptos desta lógica - em Portugal, com destaque para Desidério Murcho e o seu grupo antifilosófico de «filósofos» mediáticos que influenciam o Ministério da Educação - nunca souberam explicar a razão pela qual Marx, Freud, Nietzschze ou Heidegger desconheciam ou não utilizavam essa lógica e pensavam, no entanto, muito melhor do que Desidério e muitos dos «analíticos.» 

 

É que Marx, Freud, Nietzsche e Heidegger raciocinavam segundo uma lógica ideal, informal, noção desconhecida, pelo menos aparentemente, para a lógica interproposicional e prévia a esta.

A lógica proposicional bivalente, simbólica é uma tabuada que nem sequer cobre o espectro completo do pensamento. Com ela, ainda que se domine os operadores de verdade ou verofuncionais- meros nexos lógicos entre as proposições - pode-se errar na delimitação dos conceitos entre si, na sua correlação, que é prévia à formação do juízo.

 

Por exemplo, o problema de saber se  «a filosofia é exterior ou interior à ontologia» não pode resolver-se através da lógica proposicional. Porque esta é destituída de intuição substancial, é um conjunto de regras, um aparelho formal. Exemplo:  o raciocínio «Se chover, levo guarda-chuva»  representa-se nesta lógica por p -> q, sendo p =chover e q=levo o guarda-chuva. Simplificação, útil nalguns casos e deformante noutros.

 

É pela lógica ideal ou material, também chamada lógica informal - que principia com a noologia ou delimitação e caracterização dos conceitos, anterior a qualquer regra - que se responde ou se resolve o dito problema. Uns dirão que a ontologia é um domínio da filosofia, sendo portanto interior a esta. Outros dirão que a ontologia é exterior, em parte ou na totalidade, à filosofia, isto é engloba esta e outros domínios ou é completamente alheia à filosofia.

 

Desidério Murcho, repetindo o positivismo lógico, sustenta que «a questão do ser é um pseudoproblema filosófico». Trata-se de um sofisma deste professor radicado no Brasil em 2011. Quanta superficialidade sofística naquela frase! Há diversas acepções da palavra ser. E uma delas, o ser como relação predicativa, de pertença ou exclusão de A em relação a B, inclui a lógica proposicional simbólica. Se o ser é um pseudoproblema, então a lógica proposicional simbólica também o é, dado que esta é uma vertente conceptual do ser.

 

Os apologistas da lógica proposicional bivalente como «a grande, a verdadeira arte de pensar, sem a qual não existe autêntica filosofia» equivalem, de facto, aos ritualistas dentro do catolicismo, aos defensores da missa em latim como «o verdadeiro sacrifício oferecido a Deus, ao contrário da missa em vernáculo, sem valor»- como se a forma fosse mais importante do que o conteúdo e valesse a pena, aos olhos da divindade, rezar em latim no templo e ter, ao mesmo tempo, uma atitude de banditismo e fraude no plano económico-social e político, prejudicando outras pessoas, com absoluto egoísmo!

 

Agradaria a Deus , supondo que este existe, que um torturador e assassino, funcionário da ditadura chilena de Pinochet, frequentasse a missa em latim, diariamente, no intervalo das sessões de tortura de opositores que promovia? Decerto que não, do mesmo modo que não agradam à fecundidade do pensamento filosófico os formalistas analíticos que sabem de cor as tabelas de verdade mas pensam mal...

 

Aquilo que se denomina correntemente "filosofia analítica" não é senão, em larga medido, a expressão da ideologia da burguesia nesta época da globalização, a expressão formalista das relações económicas capitalistas em que o valor de verdade se mede pela capacidade de fazer dinheiro - o dinheiro é em si mesmo um símbolo - e a ideologia política é «posta de lado», aparentemente, como sendo um «pseudoproblema». Neste sentido, os Desidérios, de Portugal e de outros países, são apenas comissários políticos de uma classe social privilegiada, eurocratas, metafísicos em sentido negativo que, totalitariamente, reservam à filosofia um destino de marginalização.

 

É contra estes tecnocratas medíocres do pensamento, estes carcereiros das ideias atrás das grades do formalismo, que disfarçam a sua ausência de ideias criativas e de racionalidade holística com a memorização da tabuada das regras, e contra o seu mito/sofisma da pretensa «superioridade da lógica proposicional» que temos de defender o galeão da filosofia, carregado de ouro de teorias, nos mares agitados da cultura mediática.

 

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publicado por Francisco Limpo Queiroz às 17:37
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