O mediático tradutor e autor de manuais escolares de filosofia, o luso-brasileiro Desidério Murcho, no seu recente livro "Filosofia em directo", posto à venda em conjunto com a edição do jornal «Público» de 27 de Janeiro de 2011, explana em 96 páginas o que entende ser a natureza e os problemas da filosofia. O livrinho divide-se em nove capítulos: 1. Democracia; 2. Liberdade; 3. Autonomia; 4. Valor; 5. Sentido; 6.Realidade; 7. Contingência; 8. Raciocínio; 9. Verdade.
O livro é pouco esclarecedor sobre o que é a filosofia. Ausência de um quadro geral de referência à ontognoseologia e suas correntes fundamentais: realismo, idealismo, fenomenologia. Desidério evita a rocha de contornos bem marcados destas definições.. Não é o seu forte. Ausência de referência aos grandes contributos trazidos pelo rio da tradição filosófica: a matematização do mundo na filosofia pitagórica e galilaica; a formalização arquetípica do mundo nas filosofias de Platão, Aristóteles e da escolástica; a racionalização do mundo, em versão idealista de Kant, e em versão realista de Hegel e Marx; a sensorialização e insubstancialização do mundo por Hume, Mach, Avenarius, Russell, etc. Nada disto nos é referido. Sempre a velha preocupação de Desidério Murcho que faz lembrar os historiadores revisionistas que eliminam factos históricos: apagar a tradição filosófica, a filosofia que jorrou até nós pelas escadarias dos séculos, desde a Antiguidade.
PROCLAMAR O CEPTICISMO E APLICAR O MAIS ESTREITO DOGMATISMO
Analisemos, com exemplos, o tipo de argumentação desenvolvida por DM neste livro:
«Evolução
«Quem tiver a ideia de que a evolução biológica seria o fundamento do valor, comete igualmente dois erros. Primeiro, considera erradamente que o facto de termos certas preferências, explicáveis em termos de selecção natural, é razão suficiente para as aceitar. Isto é uma incompreensão dupla. Por um lado, as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas - a evolução não decide por nós, qual Deus benevolente. Por outro, a origem biológica de uma preferência não lhe dá uma prerrogativa especial - a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.»
«Em segundo lugar, quem põe a teoria da evolução no lugar ocupado pelo Deus judaico-cristão, comete o erro biológico de crer que a evolução tem uma direcção ou propósito; nós teríamos então o dever de obedecer a este propósito da evolução, como se fosse um Deus. Mas a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção. E, mesmo que o tivesse, daí não se concluiria que teríamos o dever de lhe obedecer. » (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 48, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Em primeiro lugar, Desidério não distingue, com clareza, valor, de preferência. O valor é um farol e a preferência um caminhar para esse farol.
Em segundo lugar, o facto de que «as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas» não invalida que possa haver um pólo dominante na génese dos valores- e que esse polo seja a constituição biológica- e pólos dominados - a sociedade, a consciência moral e religiosa, etc. Também a teoria psicanalítica de Freud considera uma fonte genética dos valores, o id ou infra-ego, com o princípio do prazer, sem embargo dos conflitos que o super-ego, portador dos valores sociais, vindos de fora do indivíduo, causa ao reprimir o id. Em suma, a desarmonia entre as preferências de valores não impede que a génese destes possa estar no instinto biológico. O argumento de que «a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.» é confuso, falacioso porque não se cinge ao conflito de preferências no seio do mesmo indivíduo mas recorre a uma vontade externa, a de outro.
Em terceiro lugar, Desidério Murcho, calçando as botas ferradas de um dogmatismo pouco filosófico, define a sua posição eliminando as outras, sem argumentar com fundamento. Ele opõe-se ao vitalismo ou ao biologismo teleológico, com uma petição de princípio: «a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção porque é um substituto para a ideia de Deus.»
Falta demonstrar esta afirmação metafísica. A virtude filosófica de Desidério, se a possuir, e não fôr um sectário de uma corrente parcelar, deveria ter a humildade de apresentar as duas teses que se opõem nesta matéria delicada e brumosa.
Poderia ter a liberalidade de citar, por exemplo, Bergson, que defende finalidade na evolução biológica:
«Em resumo, se nos exprimíssemos em termos de finalidade, diríamos que a consciência, depois de ter sido obrigada, para se libertar a si própria, a cindir a organização em duas partes complementares, vegetais e animais, procurou uma saída na dupla direcção do instinto e da inteligência. Não a encontrou com o instinto, e não a obteve, do lado da inteligência, senão através de um salto brusco do animal ao homem. De forma que, em última análise, o homem constituiria a razão de ser de toda a organização da vida no nosso planeta.» (Henri Bergson, A evolução criadora, pag 169, Edições 70).
Mas o mesmo tradutor que afirma que não há qualquer finalidade na evolução biológica contradiz-se ao escrever:
«Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos - cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes - tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 88, Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Há uma evidente inconsistência entre esta posição céptica e a posição dogmática acima expressa na tese de que «não há qualquer finalidade ou direcção na evolução biológica e esta não é a fonte dos valores». Se afirma que nunca podemos ter a certeza de nada, como pode garantir que estão errados os que sustentam que a vida orgânica é dotada de sentido e finalidades? É nesta caldeira de incoerência que ferve o pensamento de Murcho.
UMA PSEUDO-REFUTAÇÃO DO IDEALISMO
Visando refutar o idealismo ontológico material e o cepticismo de que deriva, escreve DM:
«Declarar que todas as nossas convicções são ilusórias, precisamente porque não podemos excluir a hipótese do sonho, é fazer duas confusões.»
«Primeiro, não pode ser verdadeiro que todas as nossas convicções são ilusórias, porque nesse caso também a convicção de que todas as convicções são ilusórias seria ilusória; e se esta convicção for ilusória, então as outras convicções não serão ilusórias.Por outro lado, se insistimos que só esta convicção não é ilusória, teríamos de explicar o seu carácter de excepção. Se estamos convictos de que todas as nossas convicções são ilusórias, não é coerente estar convicto de que essa convicção em particular não é ilusória.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 70, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
O idealismo material e o cepticismo não afirmam que todas as certezas são ilusórias: a ilusão é o carácter de quase todas, excepto o dogma base de que a realidade material é ilusória (idealismo) ou duvidosa (cepticismo). Desidério Murcho classifica de incoerência esta dualidade que, no fundo, é a dualidade observador-observado, máquina fotográfica/ fotos da paisagem. Não há nenhuma incoerência na doutrina idealista, ao nível racional: não há que explicar o carácter dogmático de excepção da tese «tenho a certeza de que toda a matéria e os entes dela formados são ilusão». É um axioma. Corresponde à divisão sujeito-objecto, que continua a existir no idealismo: o objecto material é aparência, o eu psico-espiritual é a realidade. O eu cognoscente é real para os idealistas, os entes materiais são ilusões, percepções corpóreas tridimensionais. Logo, não é possível aplicar os mesmos critérios de certeza e ilusão a estes dois níveis ontológicos.
A essência íntima das coisas é inexplicável: a explicação é sempre uma articulação de entidades em si mesmas incognoscíveis, no todo ou em parte. A pretensão de DM explicar tudo é anti filosófica: é um desvio logicista. Há mais mundo para além da lógica e da retórica. O inexprimível, o inefável, o alógico, existem. Há um intuir originário que está para além do "explicar", intuir esse que compreende mas não discursa, não explica. Lao Tse dizia: «Aquele que fala não sabe/ Aquele que sabe não fala.» Desidério raciocina mecanicamente na base do «8 ou 80», sem meio termo. Exige que, se há convicções ilusórias, todas as convicções sejam ilusórias - é a falácia da composição. O pensamento de Desidério é excessivamente linear, de superfície. Falta-lhe profundidade.
A CONFUSÃO SOBRE O QUE É VERDADE E SOBRE O QUE É CONHECIMENTO
Os equívocos de Desidério estendem-se às noções de verdade e conhecimento:
«Em suma, a verdade não é o mesmo que verificação ou confirmação. E também não é uma adequação entre o pensamento e a realidade, se por adequação entendermos uma cópia. A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam correctamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correcção da representação, mas nada se conclui daí excepto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é de minha autoria).
A verificação é o acto de encontro com a verdade. Portanto não é exacto dizer que verdade não é o mesmo que verificação: enquanto acto de descoberta (aletheia) a verdade coincide com a verificação, que é o abrir da verdade; enquanto objecto em si, interno ou externo, a verdade é diferente da verificação, do mesmo modo que actualização (passagem da potência ao acto) difere de acto.
Ademais, não é apenas a realidade que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas: é também o aparelho interno cognoscente, isto é, os nossos orgãos dos sentidos e a nossa inteligência. Um cego não pode ver a relva verde que a realidade da paisagem diante de si lhe oferece.
Sobre o conhecimento, escreve:
«Quando confusamente se fala de conhecimento falso, o que está em causa é falar de algo que parece conhecimento, mas não é; e do mesmo modo que o dinheiro falso não é dinheiro, também o conhecimento falso não é conhecimento. Consequentemente, se a Terra não está imóvel, nunca se pôde saber que a Terra estava imóvel - apesar de muita gente ter tido a convicção de que sabia tal coisa.».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 81, Fundação Francisco Manuel dos Santos).
Ao contrário do que afirma DM, dinheiro falso é dinheiro... sem validade legal. Certamente, no século XII, a generalidade das pessoas não conhecia, intelectual ou científicamente, que a Terra estava imóvel - conhecia, sensorialmente, a imobilidade da Terra - mas conhecia a teoria de que a Terra é imóvel. Mas hoje ninguém conhece factualmente que a Terra se move - para conhecer é preciso vê-la a mover-se. Hoje conhece-se, intelectualmente - um conhecimento indirecto, susceptível de dúvida - que a Terra gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que gira em volta do Sol. E nada impede que esta teoria seja falsificada, desmentida no futuro. Desidério Murcho fala como se a verdade nesta matéria estivesse conquistada de uma vez por todas. Não está.
Há, de facto, um conhecimento de verdades e de falsidades. O conhecimento não é apenas uma relação entre o sujeito e o objecto exterior, factivo ou factual. Não é apenas um conhecimento de verdades. É também uma relação entre a mente percepcionante e a representação (imagem sensorial, ideia, juízo) que nela se forma.
O conhecimento tem duas vertentes: a objectiva, isto é, a do referente ou objecto a conhecer; a subjectiva, isto é, a do símbolo, representação do objecto. O conhecimento do átomo ou dos quarks e leptões - exceptuando os átomos maiores, visíveis a microscópio - é a relação da mente com uma imagem conceptual nela elaborada. Parece que Desidério não questiona a existência de leptões. Ele respeita, venera a ciência instituída. Mas e se os leptões não existirem? Ser-se-á forçado a dizer que não havia conhecimento dos leptões, foi tudo uma fantasia. De facto, não se conheciam os leptões mas um conceito símbolo de tais supostas entidades.
É ERRADO O RACIOCÍNIO QUE SE AFASTA DO ÓBVIO?
DM escreve ainda:
«Erramos ao raciocinar sobretudo quando nos afastamos do óbvio e do simples. Quem não sabe raciocinar proficientemente, não vê o que há de errado com o raciocínio "Há uma causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa" , mas facilmente vê o erro do raciocínio "Há uma mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe". (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 85, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
De facto, há vezes em que erramos no raciocínio ao afastarmo-nos do óbvio e do simples - por exemplo, é óbvio o raciocínio que diz´«Vacinar é infectar o sangue com vírus e toxinas, logo vacinar é mau para a saúde» . Mas há muitas outras vezes em que geramos um raciocínio profundo, ao afastar-nos daquilo que é óbvio ao senso comum. A teoria da relatividade de Einstein, contra o óbvio da teoria do espaço tridimensional feito de linhas rectas e planos, sustenta que o espaço é ondulatório, irregular, e encurva na proximidade de grandes massas.
ANDAMOS SÉCULOS A SUBSTITUIR O RACIOCÍNIO POR DEUS, PELA AUTORIDADE OU PELA OBSERVAÇÃO?
DM escreve ainda, como se tivesse descoberto o santo Graal da filosofia:
«O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controlos e ajudas permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 84, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Não faz sentido dizer que só o raciocínio está no centro da nossa estrutura epistémica. O centro do processo de conhecimento é triplo: raciocínio, intuição inteligível e intuição sensível. Que é o raciocínio sem a intuição inteligível? Um esqueleto descarnado. As intuições inteligíveis de números 3,7,8 e 18 é que permitem estruturar o seguinte raciocínio: « Se 3 adicionado de 7 perfaz 10, e dez adicionado de 8 dá 18, então 3 mais 7 mais 8 tem como resultado 18».
O raciocínio aristotélico «Há dois princípios, a forma e a matéria-prima, logo a combinação dos dois produz o composto, o ente individual» necessita previamente das intuições, inteligíveis ou sensíveis, de forma, matéria, composto, ente, indivíduo. O raciocínio sem as intuições ou conceitos que o musculam é vazio, é uma estrutura formal sem conteúdos. Há raciocínios metafísicos, antimetafísicos, etc, formalmente correctos que não conduzem necessáriamente à certeza. Porque esta só as intuições, sensíveis ou não, a fornecem. Ora o que DM faz é desprezar o papel fulcral da intuição inteligível (ideia, conceito) e ignorar o carácter alógico desta.
Quanto mais fala em raciocínio,menos DM raciocina! Quanto mais brande a espada da lógica e do falibilismo, menos pensa!
A DISTINÇÃO SUBJECTIVO-OBJECTIVO NÃO EXISTE? EXISTE, EM UM SENTIDO, NÃO EXISTE, EM OUTRO
DM sustenta ainda que subjectividade e objectividade não se distinguem, afirmando, com razão, que o que é subjectivo não é necessariamente errado ou incorrecto:
«Tal como o consenso não implica a verdade, também a ausência de consenso não implica que o que está em causa é meramente subjectivo»(...)
«A distinção entre objectividade e a subjectividade esconde geralmente uma confusão: pensar que da dificuldade de chegar a consenso se conclui que nenhuma convicção é genuinamente verdadeira, no mesmo sentido em que as verdades objectivas o são. ».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 93-94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).
Há uma certa nuvem de confusão nesta argumentação.Desidério Murcho não define com precisão o que entende por subjectivo, parece não se aperceber do desdobramento de sentidos deste termo. A distinção subjectivo e objectivo não existe, de facto, quanto ao conteúdo substancial das nossas representações, isto é, objectivo e subjectivo não se distinguem epistemicamente - exemplo: eu posso estar perfeitamente certo, com toda a razão objectiva, ao defender, isolado, contra a «comunidade científica» que "a passagem de um planeta em 26º do signo de Sagitário causa, em regra, desaires para o PSD" - mas a distinção subjectivo-objectivo existe enquanto distinção numérica, por sim dizer, sociológica: o subjectivo é o pensamento singular, de um só indivíduo, o objectivo é o pensamento comum de muitos indivíduos.
É POSSÍVEL PROVAR QUE DEUS NÃO É O FUNDAMENTO DO DEVER? ARBITRÁRIO OPÕE-SE A RAZOÁVEL?
DM desenvolve ainda o seguinte raciocínio sofístico contra a ideia de Deus como fundamento do dever:
«Quem pensa que sem Deus, tudo seria permitido, considera que as nossas preferências não são suficientes para fundamentar o dever. Mas considera que as preferências de Deus o são. Interpretada literalmente, a ideia é implausível. Se a minha preferência, depois de passar pelo crivo do pensamento prudencial cuidadoso, não fundamenta o dever, a preferência de Deus ainda menos o poderia fazer. Se a minha preferência por beber água não me dá uma razão para beber água, a preferência de Deus não pode dar-me uma razão para a beber. Isto porque ou a preferência de Deus pela água é arbitrária, e nesse caso não me dá razão alguma para beber água precisamente por ser arbitrária, ou é razoável, e nesse caso é por ser razoável que me dá uma razão para beber água e não por ser uma preferência de Deus.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag. 44-45, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é colocado por mim).
Neste estilo "light", saltando de ramo em ramo na árvore da retórica do "bem falar", se desenvolve a vazia argumentação de Desidério Murcho. Por que razão Deus ou deuses não poderiam fundamentar o dever? Não é implausível haver deuses, embora seja indemonstrável, empiricamente falando. A natureza biocósmica não nos revela que haja Deus ou deuses mas não nos proibe de pensar que existam. Por que razão a preferência de Deus por eu beber água não pode ser razoável? Por que razão a razoabilidade não pode brotar do próprio Deus? Em Hegel, a ideia absoluta ou Deus é absolutamente racional, razoável, apesar de inicialmente arbitrária, encarna em natureza e nas leis biocósmicas desta. Pode Desidério refutar Hegel, de modo inquestionável e vencedor? Não pode. Na metafísica pura, ateus, teístas, panteístas e panenteístas terçam armas, isto é, argumentos, sem que se possa descortinar, objectivamente, quem tem razão.
Arbitrário opõe-se sempre a razoável? Não. É outra confusão de Desidério Murcho. Eu posso conduzir arbitráriamente um automóvel sem destino fixo, dormindo aqui ou acolá, mas isso é razoável pois não ultrapasso a velocidade de 90 quilómetros por hora e levo os documentos, o dinheiro e a roupa suficiente para realizar essa viagem de uma ou várias semanas. A máxima de cada indivíduo é arbitrária, segundo Kant: depende do livre arbítrio de cada um. Mas o facto de ser arbitrária - por exemplo, a máxima: «Divulga a toda a gente as virtudes medicinais das tisanas de tília, hipericão, erva de são roberto, malva e outras» é arbitrária, escolhi-a mas outros escolherão outras máximas - não impede que seja razoável. Razoável, isto é, racional, prudente e experimentado, opõe-se a irrazoável, não a arbitrário.
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Agnosticismo é o mesmo que cepticismo? Será quádrupla e não tripla a estrutura geral da realidade? Agnósis significa, em grego, desconhecimento, sem conhecimento. Parece-me que há dois tipos de desconhecimento: o agnosticismo, ou seja, a privação do conhecimento; o cepticismo, ou seja, a negação do conhecimento. Mais uma vez me inspiro em Aristóteles, essa luminária genial da filosofia, que determinou duas vertentes do não ser: a privativa e a negativa. E há dois tipos de conhecimento: o dogmatismo positivo ( por exemplo: «o ser e tal ou tais entes, como o planeta terra, o electromagnetismo, a humanidade existem») e o dogmatismo negativo ( exemplo: «o ser e diversos entes como a Terra,o electromagnetismo e a humanidade não existem)».
A privação do conhecimento significa que nem sequer se faz ideia de que existe uma referência, um objecto, uma teoria a conhecer, numa dada área. Vive-se na pura ignorância: não há certeza, nem há dúvida. É a privação. É possível que certas tribos indígenas vivendo secularmente no meio da floresta da Amazónia ignorassem por completo, até ao século XIX ou mesmo até ao século XXI, a existência de outros povos e da civilização industrial mundial. Estariam em estado de agnosticismo puro.
Mas se um dos membros da tribo dissesse: «Vi, ao longe, gente estranha, com cor de pele diferente» surgiria a dúvida, o cepticismo, na mente de alguns dos seus ouvintes. O cepticismo encerra em si algum conhecimento: o conhecimento de uma ideia, hipótese, não confirmada pelos orgãos dos sentidos, a fonte mais segura da verdade. Erram, pois, aqueles que dizem que todo o conhecimento é factivo, isto é, de factos reais, irrecusáveis. O conhecimento de hipóteses, de sonhos não é factivo, indiscutível, mas é conhecimento de algo. Aquele que duvida da existência de entidades extraterrestres conhece a hipótese de estas existirem mas nega à hipótese o transformar-se em certeza (dogma). Usa, pois, o livre arbítrio. Mas o que nunca viu nem ouviu falar de extraterrestres nem lhe ocorreu essa ideia está aquém da dúvida: não chegou sequer ao patamar do cepticismo. Está em absoluto privado do dogma, nesse campo, ao passo que o céptico sente-se vizinho do dogma e conhece o dogma sem o adoptar. Assim, há três posições: agnose (privação do conhecimento), dúvida (negação existencial de um conhecimento) e dogma (afirmação de um conhecimento).
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Uma das características predominantes deste heterogéneo movimento designado por filosofia analítica é a tendência para deslocar o carácter intuitivo-racional da verdade do mundo empírico para o mundo da lógica pura, caindo na hiper-análise.
Por hiper-análise entendo a tendência de separar em fragmentos as partes inseparáveis de um todo.
Uma das teses analíticas mais expendidas nos Manuais de Filosofia no Ensino Secundário é a de que «o conhecimento implica três condições, que são a crença, a verdade e a justificação».
Ressalta de imediato a existência de dois erros nesta formulação: a separação entre crença e conhecimento e a separação entre crença e verdade.
Quem crê, acredita em algo. Crer é designar uma «verdade» para mim, para nós ou «em si». Portanto, a verdade, no seu aspecto de ser apreendida subjectiva ou intersubjectivamente, faz parte da crença, não está fora desta. Classificar crença e verdade como condições separadas é um erro de hiper-análise.
É seguir as pisadas de Descartes, ao formular o «Cogito» («Eu penso«) como uma cápsula fechada, vazia. O «penso» é sempre «penso algo, um barco, os meus amigos, o átomo, o céu, etc», é sempre uma «representação do mundo ou verdade», como Husserl mostrou.
Aliás, toda a crença é conhecimento, entendendo que há vários níveis de conhecimento: o conhecimento factual, «indiscutível», da verdade, seja sensorial (exemplo: «a neve é fria»), empírico-racional ou racional (exemplo: 12+12=24); o conhecimento provável, metafísico-religioso (exemplo: «Deus criou o universo físico») ou metafísico-científico (exemplo: «O Big Bang originou o universo»), incerto, discutível, de uma «verdade» impossível de objectivar; o conhecimento ilusório ou «superado» de que parte da humanidade se desembaraçou ( exemplo: a teoria geocêntrica de Aristóteles e Ptolomeu, a crença no «mau-olhado», etc).
O conhecimento é a superfície de contacto entre o sujeito cognoscente, pessoal ou transpessoal, e a «realidade-objecto», seja esta física, psíquica, racional, metafísica ou de outra natureza.
Esse contacto possui uma dupla vertente: verdade e erro, que, em larga medida, se transformam dialeticamente um no outro.
Assim, parece-nos errónea a seguinte formulação do conhecimento num Manual de Filosofia:
«O conhecimento é factivo, ou seja, não se pode conhecer falsidades.»
«Dizer que não se pode conhecer falsidades não é o mesmo que dizer que não se pode saber que algo é falso. As duas coisas são distintas. Vejamos os seguintes exemplos:»
«1. A Mariana sabe que é falso que o céu é verde.
«2. A Mariana sabe que o céu é verde.
«1 e 2 são muito diferentes. O exemplo 1 não viola a factividade do conhecimento. Mas a afirmação 2 viola a factividade do conhecimento: a Mariana não pode saber que o céu é verde, pois o céu não é verde».
«Dizer que o conhecimento é factivo é apenas dizer que sem verdade não há conhecimento».
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag.96).
A afirmação de Maria de que «o céu diurno é azul» seria factiva, segundo estes autores. Mas como classificar a afirmação dos filósofos e físicos, que perfilham a teoria das qualidades primárias e secundárias dos objectos físicos, de que «o céu diurno não tem cor, o azul que lhe atribuimos apenas existe no nosso cérebro»? Ambas são afirmações factuais, derivadas de perspectivas diferentes: empírica versus epistemológica. E ambas podem ser postas em dúvida, a partir de outras perspectivas de raciocínio. Alguma delas é "factiva", deveras?
Se o conhecimento fosse factivo, no sentido em que os autores do texto o definem, isto é, impedindo a falsidade, então não haveria progresso no conhecimento do mesmo tema científico: se consideram factivo que «o céu é azul» ou que «o número de massa do hidrogénio é um» ou que «os átomos têm órbitas circulares com electrões» estas asserções deveriam permanecer como «verdades imutáveis» por toda a eternidade.
Ora, isto não é assim. O conhecimento, na sua grande vastidão, é revisível, mistura, na sua essência mutável, a verdade com o erro. Se há conhecimento factivo, no sentido de indiscutível, limita-se às operações da matemática, a princípios lógicos e a intuições empíricas fundamentais (exemplos: «Estou neste lugar; O azeite a ferver queima-me se saltar sobre a minha pele»).
Há, no entanto, muito mais conhecimentos, além destes, que não são indiscutíveis, factivos - a teoria de Darwin é um conhecimento e, em boa parte, não factivo; a teologia cristã ou islâmica é um conhecimento metafísico de seres míticos, não factivo para centenas de milhões de pessoas; a teoria da democracia liberal mundial como a melhor das sociedades possível também não é "factiva", etc.
Na Idade Média europeia, a crença em que a Terra estacionava no centro do universo com o sol e os planetas a girar à sua volta era o conhecimento científico possível. Depois essa teoria geocêntrica foi substituída, no século XVII, pela teoria heliocêntrica: deixou de ser um conhecimento científico, sociologicamente falando, e passou a ser um conhecimento pré-científico, um conhecimento superado. E ainda hoje, no século XXI, o geocentrismo continua a ser conhecimento, de uma «verdade superada» ou ilusão.
Portanto, conhecimento não implica obrigatoriamente verdade - verdade objectiva, consensual, universal - mas tão somente «verdade para mim» ou «verdade para nós», «verdade» provável ou plausível, «verdade superada» ou erro.
Falar de «verdade» em geral como condição do conhecimento e não distinguir entre «verdade objectiva, universal» e «verdade subjectiva» ou «verdade intersubjectiva» nem distinguir entre «verdade provável» e «verdade indiscutível, definitiva» é falsear a noção de conhecimento. Em última análise, o conhecimento não é factivo: poderá ser tendencialmente factivo. Factiva é a realidade a que ele se refere, realidade que se encontra em um dos extremos desse "segmento de recta" chamado conhecimento ou, melhor, que é tangente a esse extremo.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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