À primeira vista, a filosofia «é» mais «a priori» -isto é, anterior à experiência, isenta de experiência - do que a ciência.
Assim pensam alguns autores como os do Manual de Filosofia do 11º ano português A Arte de Pensar que, no texto seguinte, fornecem uma distinção confusa entre a filosofia e a ciência (o negrito é nosso):
«O perspectivismo fraco apoia-se na diversidade de actividades cognitivas, que estudam diferentes aspectos da realidade. Assim, por exemplo, a filosofia procura a verdade sobre problemas de carácter mais básico e mais geral, consistindo num estudo a priori, enquanto a ciência procura também a verdade, mas sobre problemas de carácter empírico ou formal. A natureza dos objectos da filosofia e da ciência é, portanto, diferente. Temos resultados diferentes mas esses resultados são acerca de diferentes objectos.»
(Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A arte de pensar, manual de Filosofia do 11º ano, Didáctica Editora, pag. 222-223).
Salta à vista um primeiro equívoco neste texto: o conhecimento a priori opõe-se decerto a empírico mas não se opõe a formal, pelo contrário, inclui este. A filosofia, pela lógica que lhe é inerente, possui uma forte dimensão formal. E não é verdade que a filosofia se abstenha de buscar a verdade sobre problemas de carácter empírico e que estes sejam exclusivo da ciência, como o texto quer fazer crer. Os problemas da legitimidade do aborto voluntário, da censura na internet e na imprensa em geral, da dicotomia capitalismo/ comunismo, da industrialização versus preservação ecológica, etc, são problemas empíricos e filosóficos. Sustentar que a filosofia consiste apenas num «estudo a priori» é truncá-la, reduzi-la a uma gramática do pensamento.
O conhecimento a priori é o conhecimento obtido sem recurso directo ou indirecto à experiência sensorial. Em princípio, a sua fonte preexiste à vida biológica: as ideias inatas postuladas por Descartes - segundo este, ao nascer, já teríamos gravados na nossa mente as ideias de alma, Deus, corpo, números, figuras geométricas - são conhecimentos a priori.
Podemos, no entanto, admitir que enquanto se vive, isto é, enquanto nos banhamos permanentemente no mundo empírico, na experiência sensorial, exista no nosso espírito um compartimento escuro, hermeticamente fechado à experiência, no qual se processa o conhecimento a priori ( exemplo: conceber um triângulo, conceber que à diversidade de determinações subjaz uma unidade essencial). Seguramente, Kant partilhava este ponto de vista.
Kant escreveu (o negrito é nosso):
«A matemática fornece o exemplo mais brilhante de uma razão pura que se estende com êxito por si mesma, sem o auxílio da experiência.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, pag. 581).
«Assim, construo um triângulo, apresentando o objecto correspondente a um conceito, seja pela simples imaginação na intuição pura, seja, de acordo com esta, sobre o papel, na intuição empírica, mas em ambos os casos completamente a priori, sem ter pedido o modelo a qualquer experiência» (Kant, ibid, pag 580).
«O conhecimento filosófico considera, pois, o particular apenas no geral, o conhecimento matemático, o geral no particular e mesmo no individual, mas a priori e por meio da razão, (...)»
«É nesta forma que consiste, por consequência, a diferença entre estes dois modos de conhecimentos racionais e não é sobre a diferença das matérias ou objectos que repousa.» (Kant, ibid, 580)
Kant postula que tanto a filosofia como a matemática são conhecimentos à priori.
A filosofia não é, a nosso ver, mais «a priori» do que a lógica e do que a matemática, ciências formais. Definir filosofia como «conhecimento a priori» é defini-la como lógica e como dialética mas não como epistemologia ( a filosofia pensa sobre as noções de átomo, vacina, infraestrutura e superestrutura, id, ego e super-ego, etc) , ética, estética, gnosiologia.
A filosofia é, em larguíssima media, conhecimento a posteriori, obtido com base na experiência sensorial, articulado com conhecimento a priori. O seu objecto é rigorosamente o mesmo que o da ciência: a «realidade», «a verdade objectiva». Diferem apenas no grau de dogmatismo e de positividade.
(Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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