Quarta-feira, 2 de Fevereiro de 2011
Incoerências de "Filosofia em directo" de Desidério Murcho

O mediático tradutor e autor de manuais escolares de filosofia, o luso-brasileiro Desidério Murcho, no seu recente livro "Filosofia em directo", posto à venda em conjunto com a edição do jornal «Público» de 27 de Janeiro de 2011, explana em 96 páginas o que entende ser a natureza e os problemas da filosofia. O livrinho divide-se em nove capítulos: 1. Democracia; 2. Liberdade; 3. Autonomia; 4. Valor; 5. Sentido; 6.Realidade; 7. Contingência; 8. Raciocínio; 9. Verdade.

 

O livro é pouco esclarecedor sobre o que é a filosofia. Ausência de um quadro geral de referência à ontognoseologia e suas correntes fundamentais: realismo, idealismo, fenomenologia. Desidério evita a rocha de contornos bem marcados destas definições.. Não é o seu forte. Ausência de referência aos grandes contributos trazidos pelo rio da tradição filosófica: a matematização do mundo na filosofia pitagórica e galilaica; a formalização arquetípica do mundo nas filosofias de Platão, Aristóteles e da escolástica; a racionalização do mundo, em versão idealista de Kant, e em versão realista de Hegel e Marx; a sensorialização e insubstancialização do mundo por Hume, Mach, Avenarius, Russell, etc. Nada disto nos é referido. Sempre a velha preocupação de Desidério Murcho que faz lembrar os historiadores revisionistas que eliminam factos históricos: apagar a tradição filosófica, a filosofia que jorrou até nós pelas escadarias dos séculos, desde a Antiguidade.

 

PROCLAMAR O CEPTICISMO E APLICAR O MAIS ESTREITO DOGMATISMO

 

 Analisemos, com exemplos,  o tipo de argumentação desenvolvida por DM neste livro:

 

«Evolução

 

«Quem tiver a ideia de que a evolução biológica seria o fundamento do valor, comete igualmente dois erros. Primeiro, considera erradamente que o facto de termos certas preferências, explicáveis em termos de selecção natural, é razão suficiente para as aceitar. Isto é uma incompreensão dupla. Por um lado, as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas - a evolução não decide por nós, qual Deus benevolente. Por outro, a origem biológica de uma preferência não lhe dá uma prerrogativa especial - a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.»

«Em segundo lugar, quem põe a teoria da evolução no lugar ocupado pelo Deus judaico-cristão, comete o erro biológico de crer que a evolução tem uma direcção ou propósito; nós teríamos então o dever de obedecer a este propósito da evolução, como se fosse um Deus. Mas a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção. E, mesmo que o tivesse, daí não se concluiria que teríamos o dever de lhe obedecer. » (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 48, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Em primeiro lugar, Desidério não distingue, com clareza, valor, de preferência. O valor é um farol e a preferência um caminhar para esse farol.

 

Em segundo lugar, o facto de que «as nossas preferências não são harmoniosas: temos de raciocinar arduamente para decidir entre elas» não invalida que possa haver um pólo dominante na génese dos valores- e que esse polo seja a constituição biológica- e pólos dominados - a sociedade, a consciência moral e religiosa, etc. Também a teoria psicanalítica de Freud considera uma fonte genética dos valores, o id ou infra-ego, com o princípio do prazer, sem embargo dos conflitos que o super-ego, portador dos valores sociais, vindos de fora do indivíduo, causa ao reprimir o id.  Em suma, a desarmonia entre as preferências de valores não impede que a génese destes possa estar no instinto biológico. O argumento de que «a vontade que uma pessoa tem de fazer sexo com outra é obviamente biológica, mas nem por isso a outra está obrigada a aceitar.» é confuso, falacioso porque não se cinge ao conflito de preferências no seio do mesmo indivíduo mas recorre a uma vontade externa, a de outro.

 

Em terceiro lugar, Desidério Murcho, calçando as botas ferradas de um dogmatismo pouco filosófico, define a sua posição eliminando as outras, sem argumentar com fundamento. Ele opõe-se ao vitalismo ou ao biologismo teleológico, com uma petição de princípio: «a evolução biológica não tem qualquer propósito ou direcção porque é um substituto para a ideia de Deus.»

Falta demonstrar esta afirmação metafísica. A virtude filosófica de Desidério, se a possuir, e não fôr um sectário de uma corrente parcelar,  deveria ter a humildade de apresentar as duas teses que se opõem nesta matéria delicada e brumosa.

 

Poderia ter a liberalidade de citar, por exemplo, Bergson, que defende finalidade na evolução biológica:

 

«Em resumo, se nos exprimíssemos em termos de finalidade, diríamos que a consciência, depois de ter sido obrigada, para se libertar a si própria, a cindir a organização em duas partes complementares, vegetais e animais, procurou uma saída na dupla direcção do instinto e da inteligência. Não a encontrou com o instinto, e não a obteve, do lado da inteligência, senão através de um salto brusco do animal ao homem. De forma que, em última análise, o homem constituiria a razão de ser de toda a organização da vida no nosso planeta.» (Henri Bergson, A evolução criadora, pag 169, Edições 70).

 

Mas o mesmo tradutor que afirma que não há qualquer finalidade na evolução biológica contradiz-se ao escrever:

 

«Como sabemos então que sabemos seja o que for? Se estamos a perguntar como podemos garantir que sabemos quando cremos que sabemos, a resposta simples é nunca. Mas se raciocinarmos de maneira cuidadosa, podemos - cooperando cognitivamente com os nossos semelhantes - tomar medidas que diminuam o erro e aumentem o acerto.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 88, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Há uma evidente inconsistência entre esta posição céptica e a posição dogmática acima expressa na tese de que «não há qualquer finalidade ou direcção na evolução biológica e esta não é a fonte dos valores». Se afirma que nunca podemos ter a certeza de nada, como pode garantir que estão errados os que sustentam que a vida orgânica é dotada de sentido e finalidades? É nesta caldeira de incoerência que ferve o pensamento de Murcho.

UMA PSEUDO-REFUTAÇÃO DO IDEALISMO 

 

Visando refutar o idealismo ontológico material e o cepticismo de que deriva, escreve DM:

 

«Declarar que todas as nossas convicções são ilusórias, precisamente porque não podemos excluir a hipótese do sonho, é fazer duas confusões.»

«Primeiro, não pode ser verdadeiro que todas as nossas convicções são ilusórias, porque nesse caso também a convicção de que todas as convicções são ilusórias seria ilusória; e se esta convicção for ilusória, então as outras convicções não serão ilusórias.Por outro lado, se insistimos que só esta convicção não é ilusória, teríamos de explicar o seu carácter de excepção. Se estamos convictos de que todas as nossas convicções são ilusórias, não é coerente estar convicto de que essa convicção em particular não é ilusória.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 70, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

O idealismo material e o cepticismo não afirmam que todas as certezas são ilusórias: a ilusão é o carácter de quase todas, excepto o dogma base de que a realidade material é ilusória (idealismo) ou duvidosa (cepticismo). Desidério Murcho classifica de incoerência esta dualidade que, no fundo, é a dualidade observador-observado, máquina fotográfica/ fotos da paisagem. Não há nenhuma incoerência na doutrina idealista, ao nível racional: não há que explicar o carácter dogmático de excepção da tese «tenho a certeza de que toda a matéria e os entes dela formados são ilusão». É um axioma. Corresponde à divisão sujeito-objecto, que continua a existir no idealismo: o objecto material é aparência, o eu psico-espiritual é a realidade. O eu cognoscente é real para os idealistas, os entes materiais são ilusões, percepções corpóreas tridimensionais. Logo, não é possível aplicar os mesmos critérios de certeza e ilusão a estes dois níveis ontológicos.

 

A essência íntima das coisas é inexplicável: a explicação é sempre uma articulação de entidades em si mesmas incognoscíveis, no todo ou em parte. A pretensão de DM explicar tudo é anti filosófica: é um desvio logicista. Há mais mundo para além da lógica e da retórica. O inexprimível, o inefável, o alógico, existem. Há um intuir originário que está para além do "explicar", intuir esse que compreende mas não discursa, não explica. Lao Tse dizia: «Aquele que fala não sabe/ Aquele que sabe não fala.» Desidério raciocina mecanicamente na base do «8 ou 80», sem meio termo. Exige que, se há convicções ilusórias, todas as convicções sejam ilusórias - é a falácia da composição. O pensamento de Desidério é excessivamente linear, de superfície. Falta-lhe profundidade.

 

 

A CONFUSÃO SOBRE O QUE É VERDADE E SOBRE O QUE É CONHECIMENTO

 

Os equívocos de Desidério estendem-se às noções de verdade e conhecimento:

 

«Em suma, a verdade não é o mesmo que verificação ou confirmação. E também não é uma adequação entre o pensamento e a realidade, se por adequação entendermos uma cópia. A verdade é o que ocorre quando as nossas convicções representam correctamente a realidade. Nunca temos maneira de garantir a correcção da representação, mas nada se conclui daí excepto a nossa falibilidade. E o que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas é a realidade.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é de minha autoria).

 

A verificação é o acto de encontro com a verdade. Portanto não é exacto dizer que verdade não é o mesmo que verificação: enquanto acto de descoberta (aletheia) a verdade coincide com a verificação, que é o abrir da verdade; enquanto objecto em si, interno ou externo, a verdade é diferente da verificação, do mesmo modo que actualização (passagem da potência ao acto) difere de acto. 

  Ademais, não é apenas a realidade que torna as nossas representações verdadeiras ou falsas: é também o aparelho interno cognoscente, isto é, os nossos orgãos dos sentidos e a nossa inteligência. Um cego não pode ver a relva verde que a realidade da paisagem diante de si lhe oferece.

 Sobre o conhecimento, escreve: 

 

«Quando confusamente se fala de conhecimento falso, o que está em causa é falar de algo que parece conhecimento, mas não é; e do mesmo modo que o dinheiro falso não é dinheiro, também o conhecimento falso não é conhecimento. Consequentemente, se a Terra não está imóvel, nunca se pôde saber que a Terra estava imóvel - apesar de muita gente ter tido a convicção de que sabia tal coisa.».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 81, Fundação Francisco Manuel dos Santos).

 

Ao contrário do que afirma DM, dinheiro falso é dinheiro... sem validade legal. Certamente, no século XII, a generalidade das pessoas não conhecia, intelectual ou científicamente, que a Terra estava imóvel - conhecia, sensorialmente, a imobilidade da Terra - mas conhecia a teoria de que a Terra é imóvel. Mas hoje ninguém conhece factualmente que a Terra se move - para conhecer é preciso vê-la a mover-se. Hoje conhece-se, intelectualmente - um conhecimento indirecto, susceptível de dúvida - que a Terra gira em torno do seu eixo ao mesmo tempo que gira em volta do Sol. E nada impede que esta teoria seja falsificada, desmentida no futuro. Desidério Murcho fala como se a verdade nesta matéria estivesse conquistada de uma vez por todas. Não está.

Há, de facto, um conhecimento de verdades e de falsidades. O conhecimento não é apenas uma relação entre o sujeito e o objecto exterior, factivo ou factual. Não é apenas um conhecimento de verdades. É também uma relação entre a mente percepcionante e a representação (imagem sensorial, ideia, juízo) que nela se forma.

 

O conhecimento tem duas vertentes: a objectiva, isto é, a do referente ou objecto a conhecer; a subjectiva, isto é, a do símbolo, representação do objecto. O conhecimento do átomo ou dos quarks e leptões - exceptuando os átomos maiores, visíveis a microscópio - é a relação da mente com uma imagem conceptual nela elaborada. Parece que Desidério não questiona a existência de leptões. Ele respeita, venera a ciência instituída. Mas e se os leptões não existirem? Ser-se-á forçado a dizer que não havia conhecimento dos leptões, foi tudo uma fantasia. De facto, não se conheciam os leptões mas um conceito símbolo de tais supostas entidades.

 

É ERRADO O RACIOCÍNIO QUE SE AFASTA DO ÓBVIO?

DM escreve ainda:

 

«Erramos ao raciocinar sobretudo quando nos afastamos do óbvio e do simples. Quem não sabe raciocinar proficientemente, não vê o que há de errado com o raciocínio "Há uma causa de todas as coisas porque todas as coisas têm uma causa" , mas facilmente vê o erro do raciocínio "Há uma mãe de todas as pessoas porque todas as pessoas têm uma mãe". (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 85, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

De facto, há vezes em que erramos no raciocínio ao afastarmo-nos do óbvio e do simples - por exemplo, é óbvio o raciocínio que diz´«Vacinar é infectar o sangue com vírus e toxinas, logo vacinar é mau para a saúde» . Mas há muitas outras vezes em que geramos um raciocínio profundo, ao afastar-nos daquilo que é óbvio ao senso comum. A teoria da relatividade de Einstein, contra o óbvio da teoria do espaço tridimensional feito de linhas rectas e planos, sustenta que o espaço é ondulatório, irregular, e encurva na proximidade de grandes massas.

ANDAMOS SÉCULOS A SUBSTITUIR O RACIOCÍNIO POR DEUS, PELA AUTORIDADE OU PELA OBSERVAÇÃO?

  

DM escreve ainda, como se tivesse descoberto o santo Graal da filosofia:

 

«O raciocínio está no centro da estrutura epistémica de seres falíveis. No entanto, a tentação ao longo dos séculos tem sido fingir que podemos abandonar o raciocínio paciente envolvido nos controlos e ajudas permanentes, substituindo-o por Deus, pela Autoridade ou pela Observação ou Experimentação. Mas não há fuga do raciocínio porque mesmo que Deus ou alguma autoridade nos fale, temos de raciocinar para concluir com base na observação ou na experimentação. E no raciocínio, como em tudo o resto, podemos cometer erros, porque somos falíveis.»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 84, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

Não faz sentido dizer que só o raciocínio está no centro da nossa estrutura epistémica. O centro do processo de conhecimento é triplo: raciocínio, intuição inteligível e intuição sensível. Que é o raciocínio sem a intuição inteligível? Um esqueleto descarnado. As intuições inteligíveis de números 3,7,8 e 18 é que permitem estruturar o seguinte raciocínio: « Se 3 adicionado de 7 perfaz 10, e dez adicionado de 8 dá 18, então 3 mais 7 mais 8 tem como resultado 18».

 

O raciocínio aristotélico «Há dois princípios, a forma e a matéria-prima, logo a combinação dos dois produz o composto, o ente individual» necessita previamente das intuições, inteligíveis ou sensíveis, de forma, matéria, composto, ente, indivíduo. O raciocínio sem as intuições ou conceitos que o musculam é vazio, é uma estrutura formal sem conteúdos. Há raciocínios metafísicos, antimetafísicos, etc, formalmente correctos que não conduzem necessáriamente à certeza. Porque esta só as intuições, sensíveis ou não, a fornecem. Ora o que DM faz é desprezar o papel fulcral da intuição inteligível (ideia, conceito) e  ignorar o carácter alógico desta.

 Quanto mais fala em raciocínio,menos DM raciocina!  Quanto mais brande a espada da lógica e do falibilismo, menos pensa!

 

 

A DISTINÇÃO SUBJECTIVO-OBJECTIVO NÃO EXISTE?  EXISTE, EM UM SENTIDO, NÃO EXISTE, EM OUTRO

 

DM sustenta ainda que subjectividade e objectividade não se distinguem, afirmando, com razão, que o que é subjectivo não é necessariamente errado ou incorrecto:

 

 «Tal como o consenso não implica a verdade, também a ausência de consenso não implica que o que está em causa é meramente subjectivo»(...)

 «A distinção entre objectividade e a subjectividade esconde geralmente uma confusão: pensar que da dificuldade de chegar a consenso se conclui que nenhuma convicção é genuinamente verdadeira, no mesmo sentido em que as verdades objectivas o são. ».»(Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag 93-94, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é posto por mim).

 

 Há uma certa nuvem de confusão nesta argumentação.Desidério Murcho não define com precisão o que entende por subjectivo, parece não se aperceber do desdobramento de sentidos deste termo. A distinção subjectivo e  objectivo não existe, de facto, quanto ao conteúdo substancial das nossas representações, isto é, objectivo e subjectivo não se distinguem epistemicamente - exemplo: eu posso estar perfeitamente certo, com toda a razão objectiva, ao defender, isolado, contra a «comunidade científica» que "a passagem de um planeta em 26º do signo de Sagitário causa, em regra, desaires para o PSD" - mas a distinção subjectivo-objectivo existe enquanto distinção numérica, por sim dizer, sociológica: o subjectivo é o pensamento singular, de um só indivíduo, o objectivo é o pensamento comum de muitos indivíduos.  

 

É POSSÍVEL PROVAR QUE DEUS NÃO É O FUNDAMENTO DO DEVER? ARBITRÁRIO OPÕE-SE A RAZOÁVEL?

 

DM desenvolve ainda o seguinte raciocínio sofístico contra a ideia de Deus como fundamento do dever: 

 

«Quem pensa que sem Deus, tudo seria permitido, considera que as nossas preferências não são suficientes para fundamentar o dever. Mas considera que as preferências de Deus o são. Interpretada literalmente, a ideia é implausível. Se a minha preferência, depois de passar pelo crivo do pensamento prudencial cuidadoso, não fundamenta o dever, a preferência de Deus ainda menos o poderia fazer. Se a minha preferência por beber água não me dá uma razão para beber água, a preferência de Deus não pode dar-me uma razão para a beber. Isto porque ou a preferência de Deus pela água é arbitrária, e nesse caso não me dá razão alguma para beber água precisamente por ser arbitrária, ou é razoável, e nesse caso é por ser razoável que me dá uma razão para beber água e não por ser uma preferência de Deus.» (Desidério Murcho, Filosofia em directo, pag. 44-45, Fundação Francisco Manuel dos Santos; o negrito é colocado por mim).

 

Neste estilo "light", saltando de ramo em ramo na árvore da retórica do "bem falar", se desenvolve a vazia argumentação de Desidério Murcho. Por que razão Deus ou deuses não poderiam fundamentar o dever? Não é implausível haver deuses, embora seja indemonstrável, empiricamente falando. A natureza biocósmica não nos revela que haja Deus ou deuses mas não nos proibe de pensar que existam. Por que razão a preferência de Deus por eu beber água não pode ser razoável? Por que razão a razoabilidade não pode brotar do próprio Deus? Em Hegel, a ideia absoluta ou Deus é absolutamente racional, razoável, apesar de inicialmente arbitrária, encarna em natureza e nas leis biocósmicas desta. Pode Desidério refutar Hegel, de modo inquestionável e vencedor? Não pode. Na metafísica pura, ateus, teístas, panteístas e panenteístas terçam armas, isto é, argumentos, sem que se possa descortinar, objectivamente, quem tem razão.

 

Arbitrário opõe-se sempre a razoável? Não. É outra confusão de Desidério Murcho. Eu posso conduzir arbitráriamente um automóvel sem destino fixo, dormindo aqui ou acolá, mas isso é razoável pois não ultrapasso a velocidade de 90 quilómetros por hora e levo os documentos, o dinheiro e a roupa suficiente para realizar essa viagem de uma ou várias semanas. A máxima de cada indivíduo é arbitrária, segundo Kant: depende do livre arbítrio de cada um. Mas o facto de ser arbitrária - por exemplo, a máxima: «Divulga a toda a gente as virtudes medicinais das tisanas de tília, hipericão, erva de são roberto, malva e outras» é arbitrária, escolhi-a mas outros escolherão outras máximas - não impede que seja razoável. Razoável, isto é, racional, prudente e experimentado, opõe-se a irrazoável, não a arbitrário.

 

 

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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)

 



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 14:32
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Sábado, 31 de Outubro de 2009
Equívocos do «Dicionário Escolar de Filosofia» da Plátano Editora -II

Prosseguem as críticas aos erros e imprecisões do Dicionário Escolar de Filosofia da Plátano Editora.

 

CONFUSÕES SOBRE O LIBERTISMO, O COMPATIBILISMO E O INCOMPATIBILISMO

 


Os problemas metaéticos consubstanciados nos eixos do determinismo/indeterminismo, livre-arbítrio/ fatalismo recebem uma conceptualização equívoca, falaciosa:

 



«compatiblismo/incompatibilismo

 


«O problema do livre-arbítrio consiste em saber se a crença de que somos livres é compatível com a crença de que o mundo é governado por leis e que no mundo todos os acontecimentos, incluindo as nossas acções, são determinados pelas suas causas (ver causa/efeito). Em geral, existem dois tipos de teorias que respondem a este problema: as teorias compatibilistas e as teorias incompatibilistas.

 


O compatibilismo é uma concepção metafísica que afirma que o livre-arbítrio é compatível com o determinismo. A posição compatibilista pode ser expressa com a seguinte afirmação condicional: se tudo for determinado, é possível que exista livre-arbítrio.

 


O determinismo moderado é a teoria compatibilista mais influente. Um determinista moderado, como David Hume, aceita que a acção seja determinada por causas; no entanto, sustenta que essa acção pode ser livre se o agente, ao praticá-la, puder agir de outra forma e se tiver um controlo sobre o desejo e a crença que causam a acção. Por exemplo, entregar um telemóvel a um ladrão é uma acção livre caso nos seja possível recusar fazê-la e se o desejo de viver, assim como a crença de que entregar o telemóvel permite preservar a vida, forem as causas dessa acção. O incompatibilismo é o conjunto de concepções metafísicas que negam que o livre-arbítrio seja compatível com o determinismo. A posição dos incompatibilistas é a seguinte: se tudo for determinado, não é possível que exista livre-arbítrio. As duas teorias incompatibilistas mais importantes são o determinismo radical e o libertismo. Os deterministas radicais argumentam que o livre-arbítrio não existe porque todas acções são efeito de causas remotas e incontroláveis. Os libertistas afirmam que o livre arbítrio existe porque nem todas as acções são o efeito de causas remotas e incontroláveis. » APC (Dicionário Escolar de Filosofia).

 


. Há ´múltiplas confusões neste artigo. A primeira é a distinção artificial entre «determinismo moderado» e «determinismo radical»: António Paulo Costa (APC) não viu que a quantidade de determinismo que há em ambos é exactamente a mesma. Se o primeiro admite a lei da gravitação universal, o efeito de descida do açúcar no sangue por administração de insulina, a formação de cloreto de sódio por mistura de ácido clorídrico e sódio, o segundo admite o mesmo. O «moderado» e o «radical» não pertencem à natureza do determinismo em si mas enunciam, ambiguamente, o facto de este estar ou não envolto pela mola do livre-arbítrio que o pode pressionar de fora.

 

  

 

Outra confusão é a definição de libertismo: diz-se que é uma doutrina incompatiblista e que «o incompatibilismo é o conjunto das doutrinas metafísicas que negam que o o livre arbítrio  seja compatível com o determinismo» e mais adiante diz-se o inverso, isto é, que «os libertistas afirmam que o livre-arbítrio existe porque nem todas as acções são efeito de causas remotas e incontroláveis», ou seja, o libertismo é compatibilismo...

 

  

 

APC define assim determinismo moderado:

 

  

 

«O determinismo moderado é a teoria compatibilista mais influente. Um determinista moderado, como David Hume, aceita que a acção seja determinada por causas; no entanto, sustenta que essa acção pode ser livre se o agente, ao praticá-la, puder agir de outra forma e se tiver um controlo sobre o desejo e a crença que causam a acção.»

 

  

 

Ora isto é exactamente a definição que APC forneceu de libertismo, exceptuando o rótulo que lhe colou de "incompatibilismo". Então determinismo moderado e libertismo são exactamente o mesmo, segundo este nebuloso " Dicionário Escolar de Filosofia", verdadeira casa de fantasmas que se duplicam em aparições: ambos postulam determinismo na natureza e livre-arbítrio. Há uma falta de lógica essencial nesta classificação. Falta de reflexão.

 

  

 

METAFÍSICA É MUITO MAIS QUE ESTUDO CONCEPTUAL GERAL

 

 

 

Também a definição de metafísica neste Dicionário surge envolta em rolos de fumo de ambiguidade:

 

 

 

«metafísica

 


 

 

«O estudo dos aspectos conceptuais mais gerais da estrutura da realidade. Por exemplo: Serão todas as verdades relativas, ou haverá verdades absolutas? E o que é a verdade? Ao longo do tempo um ser humano muda de personalidade, fica fisicamente diferente, perde cabelo, etc. — como se pode então dizer que é a mesma pessoa? Será que a vida faz sentido? Será que temos livre-arbítrio? A ontologia é a disciplina da metafísica que estuda quais as categorias de coisas que há. Por exemplo: Será que há números, ou são meras construções humanas? Terão os universais, como a brancura, existência independente dos particulares, isto é, das coisas brancas? Serão as possibilidades não realizadas reais, ou meras fantasias? O que hoje em dia se chama "lógica filosófica" abrange em grande parte os temas da metafísica tradicional, introduzidos na obra Metafísica, de Aristóteles, designadamente o problema da identidade e persistência de objectos ao longo do tempo. A designação de "metafísica", contudo, não foi introduzida por Aristóteles, que usava a expressão "filosofia primeira", muito corrente ainda no séc. XVII, mas hoje pouco usada — o que é uma pena, pois não permite o trocadilho informativo que consiste em dizer que a filosofia primeira estuda as questões últimas. No sentido popular do termo, "metafísica" quer dizer algo totalmente diferente: o "estudo" de questões que transcendem a realidade material: ocultismo, espiritismo, etc. Em filosofia, a metafísica não é nada disto. »

 

  

 

«A metafísica é uma das disciplinas centrais e mais gerais da filosofia; muitas outras disciplinas abordam problemas metafísicos particulares. Por exemplo: a filosofia da acção estuda, entre outras coisas, o problema metafísico de saber o que é e como se individua uma acção (isto é, como se distinguem as acções umas das outras); a filosofia da ciência estuda, entre outras coisas, o problema ontológico de saber se as entidades inobserváveis postuladas pelas ciências (como os quarks) têm existência real e independente de nós, ou se são meras construções humanas. »

 

  

 

«Com o desenvolvimento da ciência moderna, a partir do séc. XVII, a metafísica começou a sofrer ataques por não produzir resultados à semelhança da ciência; afinal, era a ciência empírica, como a física, que produzia conhecimento seguro sobre a natureza última das coisas, e não a metafísica. Esses ataques começam com Kant. Posteriormente, algumas escolas de filosofia, como o positivismo lógico, encaravam a metafísica como coisa mítica do passado. Contudo, na filosofia contemporânea, a força dos problemas metafísicos voltou a impor-se, e o seu estudo floresceu uma vez mais. » DM (Dicionário Escolar de Filosofia).

 

 

 

Desidério Murcho (DM) define metafísica de forma ambígua: «o estudo dos aspectos conceptuais mais gerais  da estrutura da realidade.» Esta definição poderia aplicar-se à lógica, que não é própriamente metafísica, e estuda conceitos gerais da estrutura da realidade.

 

 

 

Desidério vive no mundo do símbolo lógico, num átrio pré filosófico - é um pouco como aquele frade, metido à força num convento, que, como não capta a transcendência de Deus, multiplica o estudo conceptual das regras monásticas, visando tranquilizar-se sobre o que para si é incompreensível -  e isso impede-o de conceber a verdadeira essência da metafísica que não é ser estudo conceptual  mas sim realidade transfísica.

 

 

 

Metafísica é, por exemplo, o lado transfísico do copo em que pego e do vinho que nele está contido. Não é um estudo de conceitos porque os conceitos são representações de realidades, excepto no hegelianismo. Há, decerto, conceitos de metafísica. Metafísica é realidade transfísica -o que não significa necessariamente seres sobrenaturais.

 

 

 

 Também se equivoca DM ao dizer que «a ontologia é a disciplina da metafísica que estuda as categorias do que há». A ontologia é a doutrina do ser e há ser fora da metafísica. Cada ciência possui ser metafísico e ser não metafísico e também nesta última medida é ontologia. O facto de a matemática comportar no seu ser números pares e ímpares é ontologia mas não necessariamente metafísica. 

 

ERRO LÓGICO SOBRE A RELAÇÃO DO QUANTIFICADOR EXISTENCIAL COM O QUANTIFICADOR UNIVERSAL

 

A definição de quantificador existencial na sua relação com quantificador universal está formalmente errada neste Dicionário:

 

«quantificador existencial

 

«Expressões como "alguns", "pelo menos um", etc., são quantificadores existenciais, simbolizados habitualmente na lógica clássica com um E ao espelho: . A negação de um quantificador existencial é um quantificador universal, porque negar que alguns filósofos são imortais é o mesmo do que afirmar que todos os filósofos são mortais. »Ver quantificador. DM

 

Se isto não é um desvario teórico de Desidério Murcho, e consiste numa tese geral da lógica proposicional que, supostamente, ele propaga, é um grave erro desta: a negação de uma proposição particular - proposição iniciada por um quantificador existencial do tipo «Algum», «Alguns», «Poucos», «Muitos» -não autoriza afirmar  a proposição universal inversa. Exemplo: a proposição «alguns deuses não são femininos» não é o mesmo que a proposição «todos os deuses são masculinos.» mas DM sustentaria que sim, por aquilo que acima escreveu; a proposição «alguns homens não são ignorantes» não é o mesmo que a proposição «todos os homens são sábios».  Portanto, ao invés do que defende DM, a negação de um quantificador existencial não é, não equivale automaticamente a um quantificador universal ("Todos", "Nenhuns").

 

Eis como o «campeão» da apologia da lógica proposicional entre os professores de filosofia do ensino secundário em Portugal, o campeão do combate à grande filosofia clássica (Platão, Hegel, Aristóteles, Tomás de Aquino, Heidegger, etc) que, equivocamente, baptiza de «história da filosofia»,  se revela um banal sofista, um decorador de fórmulas cujo sentido não assimilou...

 

O VALOR NAS COISAS NÃO INCLINA NECESSARIAMENTE A UMA ATITUDE FAVORÁVEL PARA COM ELAS

 

A definição de valor neste Dicionário é sesgada, fantasmagórica, muito pobre:

 

«valor

 

«Quando reconhecemos um valor nas coisas (por exemplo, considerando-as belas, justas ou sagradas), inclinamo-nos a ter uma atitude favorável para com elas que se reflecte nos nossos actos e escolhas (ver acção). Quem tem uma postura objectivista em relação aos valores julga que as coisas são valiosas independentemente de as valorizarmos, mas para um subjectivista as coisas são valiosas simplesmente porque as valorizamos. Atribuir valor instrumental a uma coisa é considerá-la valiosa apenas em virtude de esta ser um meio para alcançar aquilo que julgamos ter valor em si — isto é, aquilo que julgamos ter valor intrínseco. Ver hedonismo, objectivismo/subjectivismo, juízo de facto/juízo de valor.»  PG

 

Pedro Galvão (PG) já nos habituou à sua fuga diante das definições. Neste artigo não nos é dito o que é um valor. É substância?  Essência? Atitude? Qualidade?  Quantidade?  Nada diz. É uma onda do mar de vagueza...

 

 A frase :«Quando reconhecemos um valor nas coisas (por exemplo, considerando-as belas, justas ou sagradas), inclinamo-nos a ter uma atitude favorável para com elas que se reflecte nos nossos actos e escolhas (ver acção)»  é incorrecta, genericamente falando. Há valores positivos e negativos. Reconhecemos em Hitler e nos símbolos nazis um valor.. negativo e não nos inclinamos favoravelmente para eles.

 

A frase: «Quem tem uma postura objectivista em relação aos valores julga que as coisas são valiosas independentemente de as valorizarmos, mas para um subjectivista as coisas são valiosas simplesmente porque as valorizamos.» é ambigua. Falta definir objectivismo. Há o objectivismo extra animan e o objectivismo intra animan, este último o conceito de esse objectivum da Escolástica medieval. A qual se refere PG? Também subjectivismo não surge correctamente definido. Não se percebe o que é o mundo subjectivo. A definição de PG prima pela ausência de contornos claros e racionais.

 

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Quinta-feira, 31 de Agosto de 2006
É a filosofia uma disciplina não empírica e não formal?

 

Estarão correctos aqueles que sustentam que a« filosofia é uma disciplina não empírica e não formal»?

Aires  Almeida e Desidério Murcho definem do seguinte modo a filosofia (o negrito é de nossa autoria):

 

«A filosofia trata de problemas conceptuais e não formais.Como a matemática, a filosofia não é uma disciplina empírica, isto é, não trata de problemas que se possam resolver pela observação ou pela experimentação. Assim a filosofia não é uma disciplina como a física ou a história que são disciplinas empíricas. Contudo, ao contrário da matemática, a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais. Os problemas da filosofia só podem resolver-se por via da discussão racional, cuidadosa e sistemática

«É enganador pensar que os problemas da filosofia por serem de natureza conceptual não são verdadeiros problemas ou não são problemas reais. O problema de saber se o aborto é eticamente permissível não é menos real só porque é um problema conceptual.»

(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags. 10-11)

 

Um dos erros latentes deste texto é opôr formal a conceptual. Formal não se opõe a conceptual: todo o conceito é uma forma espiritual. Opõe-se sim a substancial ou «material». conceitos formais - como o conceito de um, de dois, de três, de todo e de parte - e há conceitos substanciais - como o conceito ou ideia de cão, de árvore, de aborto, de mar, de espírito, de matéria...A filosofia trata obviamente de problemas formais na medida em que se converte em lógica clássica ou proposicional simbólica e em dialéctica.

 

Por exemplo, o problema da Unidade geradora da Multiplicidade é, em si mesmo, formal e conceptual.

Ao contrário do que sustentam Aires de Almeida e Desidério Murcho, a filosofia é uma disciplina simultaneamente empírica e meta-empírica, isto é, metafísica. Se não possuisse uma vertente empírica, a filosofia não poderia produzir nenhuma ciência empírica ou prática como aconteceu ao longo dos séculos - o átomo de Demócrito e Leucipo, da Antiguidade Clássica, é um conceito filosófico que evoluiu num sentido empírico a ponto de se lhe determinar substancialidade (hidrogénio, oxigénio, cobre..) e correspondente número de massa - nem tão pouco influiria na reformulação das ciências.

 

Na verdade, a filosofia trata de problemas que se podem resolver pela experimentação biotecnológica ou político-social. Por exemplo, a filosofia da autogestão das empresas como «a melhor forma de criar justiça social e riqueza» nasce de problemas empíricos, possui um carácter parcialmente empírico e pode ser testada empiricamente. Do mesmo modo, sucede com o aborto: a sensibilidade de cada pessoa , o seu lado empírico, influi na filosofia dessa pessoa àcerca do aborto voluntário. A filosofia é a ciência empírica ou hermenêutica que duvida de si mesma: será que a função faz o orgão, como dizia Lamarck? Serão os sonhos manifestações dos desejos, muitas vezes distorcidas, como dizia Freud? Serão as vacinas úteis à saúde ou causarão arterioesclerose, cancro e um debilitamento geral das defesas orgânicas?

 

Separar a filosofia da realidade empírica, negar-lhe vertente empírica, é próprio de uma visão antidialética do mundo, hiper-analítica, que fragmenta o que não pode ser dissociado.

Igualmente se equivocam Aires e Desidério ao sustentar que «a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais». Mas é óbvio que se ocupa disso! Os princípios da lógica clássica (identidade, não contradição, terceiro excluído, razão suficiente) não são senão mecanismos ou provas formais e a filosofia ocupa-se deles, inclui-os no seu arsenal de pensamentos. A filosofia ocupa-se de todos os problemas que constituem o cerne das ciências, lógicas, empírico-formais ou hermenêutico-sociais: o surgimento de qualquer dúvida ou profundidade especulativa numa ciência (por exemplo o pensamento de um matemático sobre se «dois adicionado a três é o mesmo que quatro adicionado a um») converte instantânea e automaticamente a certeza científica em filosofia.

 

O erro de Desidério e Aires reside em confundirem conceptual com metafísico ou racional-abstracto, como se depreende da seguinte passagem (o negrito no texto abaixo é nosso):

 

«Dizer que um problema é conceptual é só dizer que não é um problema susceptível de ser resolvido recorrendo à experiência ou ao simples cálculo - mas pode ser um problema real e importante. Acontece apenas que é um problema cuja solução depende fundamentalmente do pensamento incluindo a avaliação crítica de pontos de vista diferentes».

(in «Textos e Problemas de Filosofia», organização de Aires Almeida e Desidério Murcho, Plátano Editora, Lisboa, pags.11)

 

Um mecânico que se apercebe que é necessário mudar a rótula do sistema de rodas de um automóvel observou sensorialmente e concebeu - formou um conceito - intelectualmente a solução do problema. E vai resolver ou traduzir esse conceito empírico num acto experimental: a mudança da rótula.

Falta a Aires e Desidério a distinção entre conceito empírico e conceito meta-empírico ou metafísico. Se possuíssem essa noção, não se equivocariam, não usariam de forma espúria o termo «conceptual».

 

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