Ernst Mach (18 de Fevereiro de 1838-19 de Fevereiro de 1916), físico e filósofo austríaco, um dos fundadores do empirocriticismo, escreveu:
«Cores, temperaturas, pressões, espaço, tempo e assim por diante estão ligados uns com os outros de variadas maneiras; e com eles estão associadas disposições da mente, sentimentos e volições. Fora desta fábrica, que está relativamente mais fixa e permanece visível, grava-se na memória, e exprime-se na linguagem. Uma permanência relativamente maior é exibida, em primeiro lugar, por certos complexos de cores, sons, pressões, e assim por diante, funcionalmente ligados no espaço e no tempo, que por isso recebem nomes especiais e são chamados corpos. Esses complexos não são absolutamente permanentes.»
«A minha mesa está agora luminosamente, agora mal iluminada. A sua temperatura varia. Pode receber uma mancha de tinta. Uma das suas pernas pode ser quebrada. Pode ser reparada, polida, substituída, peça a peça. Mas, para mim, permanece a mesa na qual diariamente escrevo. »
«Mais, esse complexo de memórias, humores e sentimentos, junto com um corpo particular (o corpo humano) que é chamado o "Eu" ou o "Ego" manifesta-se como relativamente permanente. Eu posso ser solicitado para este ou aquele assunto, posso estar quieto e alegre, excitado, ou mal-humorado. Ainda, casos patológicos aparte, subsistem suficientes aspectos duradouros para identificar o ego. Obviamente, o ego também só tem permanência relativa.»
«A aparente permanência do ego consiste principalmente no simples facto da sua continuidade, na lentidão das suas mudanças. »(Ernst Mach, The Analysis of Sensations, and the relation of the Physical to the Psychical, pags 3-4, Forgotten Books, Viena, 1900; o destaque a negrito é posto por mim).
Parece estarmos a ler David Hume no seu atomismo cognitivo. Escreve Mach:
«Então naturalmente surge a noção filosófica, de início impressiva, mas subsequentemente reconhecida como monstruosa, de uma "coisa em si", diferente da sua "aparência", e incognoscível.»
«Coisa, corpo, matéria não são nada para além da combinação dos elementos - cores, sons e assim por diante...»
(Ernst Mach, The Analysis of Sensations, and the relation of the Physical to the Psychical, pags 6, Forgotten Books, Viena, 1900)
Isto é, basicamente, o idealismo atomista e sensista de David Hume. No entanto, este, no seu «Tratado da Natureza Humana», comete o erro de dizer que a plebe não distingue entre representação (imagem, ideia) e objecto físico em si:
«Ora, conforme já notamos, qualquer que seja a distinção que os filosófos façam entre os objectos e as percepções dos sentidos, que eles admitem serem coexistentes e semelhantes, tal distinção não é compreendida pela generalidade das pessoas; estas, como não apreendem senão um ser, jamais podem aceitar a opinião de uma dupla existência e de uma representação. As próprias sensações que entram pelos olhos ou pelos ouvidos, são para elas os verdadeiros objectos...» (David Hume, Tratado da Natureza Humana, pag 247, Fundação Calouste Gulbenkian; o destaque a negrito é posto por mim)
Isto é, obviamente, falso. A maioria das pessoas defende o realismo natural, que é um dualismo, de um lado o objecto físico em si, do outro lado a percepção, esta como «imagem de espelho» do primeiro. A prova do erro de Hume está em que o senso comum diz que o cego não vê, não tem representação, de um objecto físico fora dele.
O que me parece é que Mach não circunscreve as cores, os sons, o espaço, o tempo, ao interior das mentes humanas, mas as põe fora como se houvesse um caos ou magma exterior à mente a que ela fosse buscar a matéria-prima para construir os objectos que são aglomerados de sensações. Esses objectos estariam pois na fronteira mente-corporeidade exterior. Kant ou Berkeley são, irrevogavelmente, idealistas, ainda que o primeiro se auto classifique de «realista empírico». Em Mach, os complexos chamados corpos existem em nós e fora de nós ou no limite entre o interior e o exterior desconhecido. São complexos de sensações, não são coisas em si, autosubsistentes. Poderá o empirocriticismo ser algo distinto de uma variante do idealismo?
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Por realismo, entende-se a família das doutrinas (ontológicas, éticas, estéticas, etc) que asseveram que as coisas materiais ou os juízos de valor existem em si mesmos, no mundo exterior, fora das subjectividades, dos psiquismos humanos ou no interior destes mas na sua componente objectiva. Por anti realismo, entende-se o inverso: coisas e valores estão imersas na imaginação arbitrária das mentes humanas, não subsistem fora destas.
Escreve Desidério Murcho:
«As posições anti-realistas globais têm sido uma tentação constante ao longo da história da filosofia. Estas posições distinguem-se do anti-realismo local pela sua abrangência. Ao passo que o anti-realismo local declara que um certo domínio do pensamento (como a ética, no exemplo dado) não está ancorado na natureza das coisas, o anti-realismo global declara que nenhum domínio do pensamento está ancorado na natureza das coisas. O anti-realismo global disputa a própria expressão "natureza das coisas". ( )
«O anti-realismo local não é radicalmente incoerente. O anti-realismo ético, por exemplo, não é radicalmente incoerente, apesar de poder ser falso por outras razões. Mas qualquer forma de anti-realismo global, ou cepticismo radical, é radicalmente incoerente. Isto não é surpreendente. Pois não se pode estar a dizer a verdade, quando se diz que não é possível, de todo em todo, dizer a verdade.» (Desidério Murcho, Pensar outra vez filosofia, valor e verdade, Edições Quasi, V.N.Famalicão, 2006, pags 94-96; o negrito é nosso)
Este texto, que, além de vago, copia as noções de anti realismo global e local veiculadas por Simon Blackburn, enferma de uma confusão conceptual. Senão, vejamos um exemplo. A teoria de Kant é quase um anti realismo global:
A) No aspecto ontológico, é anti realismo uma vez que os objectos materiais não são reais em si mesmos, apenas existem no interior da nossa imensa mente.
B) No aspecto ontológico-categorial/modal, é anti realismo uma vez que as categorias de unidade, pluralidade, causa- efeito, contingência, necessidade, etc, são imanentes ao espírito do sujeito e dos sujeitos, não existindo fora das mentes.
C) No aspecto moral, é em boa parte anti-realista, na medida em que o bem e a norma ética que o visa é subjectivo. O supremo bem, como númeno regulador, poderá considerar-se real, objectivo
D) No aspecto estético, é anti realismo uma vez que a faculdade (estética) de julgar é subjectiva nos seus conteúdos.
No entanto, apesar de ser praticamente um anti realismo em todos os domínios, o kantismo está muito longe de ser um cepticismo radical. É mesmo uma teoria extremamente coerente. Desidério confunde anti-realismo global com cepticismo radical, sem destrinçar que este funda uma modalidade do anti realismo mas está longe de englobar todo o anti realismo.
Há muito anti realismo global que é dogmatismo subjectivista ou intersubjectivista mas não é cepticismo radical, ainda que se tenha servido do cepticismo como método de construção dos seus andaimes dogmáticos.
Por exemplo, o filósofo analítico Ayer desenvolveu um sistema anti-realista global que não é um cepticismo radical, mas utiliza o ceptismo parcial e mantém alguns dogmas:
A) Ayer, durante bastante tempo, negou a realidade física exterior ao sujeito, isto é, rejeitou o realismo como sendo metafísico. Foi pois anti realista, sustentando o construtivismo lógico, uma forma de fenomenismo, que reduz os objectos materiais (cadeiras, árvores, etc) a complexos de sensações, dissolvendo a distinção dualista rígida entre o psíquico e o físico, na linha do monismo neutral de Russell.
B) No plano ético, Ayer manteve-se anti realista, subjectivista, opondo-se a Moore, o fundador da filosofia analítica - que postulava o bem e o mal, etc, como sendo valores objectivos, e denunciava a «falácia naturalista» na ética.
C) No plano estético, recusou conferir qualquer validade objectiva aos juízos de belo e feio, sendo pois anti realista.
D) Dentro do seu anti realismo, e mais tarde, após aderir ao realismo ontológico (ao "realismo físico" de Moore), Ayer sustentou o positivismo lógico e o seu critério de verificação - o que significa que a experiência pode ser encarada como um patamar pré-ontológico - admitindo como hipótese provável, na sua fase anti realista, a existência dos objectos físicos, sempre sem cair no cepticismo radical (o probabilismo na medida em que admite graus plausíveis de verdade distintos não é um cepticismo radical).
Por conseguinte é erróneo identificar, como o faz Desidério Murcho, todo o anti realismo global com o cepticismo radical e proclamar o primeiro «radicalmente incoerente». Nem Kant nem Ayer foram radicalmente incoerentes na estruturação dos seus sistemas filosóficos..
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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