Sábado, 27 de Novembro de 2021
Questionar Schopenhauer: o sujeito olha para fora de si?

Schopenhauer, que se considerava um kantiano,  difere da teoria de Kant ao escrever:

«O espaço só surge quando o sujeito cognoscente olha para fora: é o modo e a maneira  como o sujeito capta algo distinto de si. Daqui se deduz que mais além do fenómeno, no ser em si de todas as coisas, que há-de ser alheio ao espaço e ao tempo e também à pluralidade, tão pouco pode haver conhecimento algum».»

(Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, 2º volume, Alianza Editorial, Madrid, pag 361; o destaque a negrito é nosso).

Para Kant, o espaço é inato como forma a priori da sensibilidade, antes de haver casas, árvores, etc, havia espaço vazio mental, o espaço não surge somente quando o sujeito olha fora de si. Aliás, olhar fora de si é impossível na lógica da gnosiologia kantiana porque fora de si só há os númenos (Deus, liberdade , mundo como totalidade) invisíveis e incognoscíveis:  o mundo inteiro, visível e palpável, com as montanhas, os rios, os céus, os animais, está dentro do sujeito , na sensibilidade deste exterior ao seu corpo físico, como série de fenómenos, pois a sensibilidade  é mente ou espírito impensante onde se aloja a matéria que é pura ilusão (idealismo material). O sujeito, segundo Kant, é espaço, tempo (formas a priori da sensibilidade), entendimento e razão, não há sujeito anterior ao espaço.



publicado por Francisco Limpo Queiroz às 22:57
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Sábado, 2 de Outubro de 2021
Incoerência de Popper : verdade versus aproximação à verdade

 

Popper era um céptico que dava uma no cravo e outra na ferradura, isto é, uma no cepticismo e outra no dogmatismo. Pregava um cepticismo pirrónico - não podemos estar certos de nada, além das aparências dos sentidos - e um dogmatismo simultâneo - exemplos: aceitamos provisoriamente que a tabela periódica dos elementos é verdadeira, que o evolucionismo de Darwin é verdadeiro, que a escatologia marxista de que o comunismo é o fim da história é falsa, etc. Escreveu:

 

«Estamos, pois, constantemente, em busca de uma teoria verdadeira (uma teoria verdadeira e relevante) ainda que não possamos nunca dar razões (razões positivas) para mostrar que encontrámos realmente a teoria verdadeira que buscávamos. Ao mesmo tempo, podemos ter boas razões - isto é, boas razões críticas - para pensar que aprendemos algo de importante: que progredimos em direcção à verdade.»  (Karl Popper, O realismo e o objectivo da ciência, Lisboa, Publicações Dom Quixote, pp 57)

 

Em termos simples, Popper dizia que a melhor teoria não é a verdadeira, porque a verdade é inatingível, mas a que mais se aproxima da verdade. Se não podemos nunca demonstrar que encontramos a verdade, como podemos falar de «progresso em direcção à verdade»? Não podemos. Seria preciso acreditar que tal tese, tal modelo é a verdade. Mas esta está encoberta por um nevoeiro invencível, de acordo com Popper.

 

Há em Popper a mesma incoerência que em Kant: este pensava o númeno ou coisa em si incognoscível - equivalente à verdade em Popper -  mas dizia ser impossível demonstrar que há númeno - tese equivalente ao cepticismo pirrónico de Popper.  É como um corredor de bicicleta que vê a meta e se aproxima dela mas diz que nunca lá consegue chegar porque não a vê nem conhece exactamente onde se situa.

 in «Dicionário de Filosofia e Ontologia, Dialética e equívocos dos filósofos», de Francisco Queiroz, pags 510-511

Encontram-se à venda na livraria «Modo de Ler», Praça Guilherme Gomes Fernandes, centro da cidade do Porto, as nossas 0bras:

Dicionário de Filosofia e Ontologia, Dialética e Equívocos dos Filósofos, de Francisco Limpo Queiroz,

Astrologia Histórica, a nova teoria dos graus e minutos homólogos,de Francisco Limpo Queiroz,

Astrología y guerra civil de España de 1936-1939, de Francisco Limpo Queiroz



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Segunda-feira, 14 de Novembro de 2016
Fenomenalismo: equívocos de Johannes Hessen

 

Hessen sustenta que há um intermédio entre o realismo e o idealismo chamado fenomenalismo. E apresenta, equivocamente, Kant, como exemplo dessa corrente. Hessen escreveu:

 

«O fenomenalismo (de phaenomenon= fenómeno, aparência) é a teoria segundo a qual não conhecemos as coisas como são em si, mas como se nos apresentam. Para o fenomenalismo, há coisas reais mas não podemos conhecer a sua essência. Só podemos saber «que» as coisas são, mas não «o que» são. O fenomenalismo coincide com o realismo quando admite coisas reais; mas coincide com o idealismo quando limita o conhecimento à consciência, ao mundo da aparência, do que resulta imediatamente a impossibilidade de conhecer as coisas em si» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, páginas 108-109; o bold é posto por nós)

 

A definição de fenomenalismo dada acima viola o princípio da não contradição, não se pode ser realista e idealista em simultâneo no mesmo aspecto: para Hessen, no fenomenalismo, a matéria é real, as coisas são reais (isto é exterior à mente; realismo) e o conhecimento é limitado à consciência(e isto, diz ele, é.. idealismo). Mas esta última posição não é idealismo, ao contrário do que afirma Hessen. É realismo crítico, porque a matéria está lá, existe de facto, embora oculta por um «vidro fosco».

 

E quanto a Kant, este nunca afirmou que a matéria é real, ao contrário do que pensava Hessen e do que pensam os catedráticos de filosofia actuais. Kant escreveu:

 

«Devíamo-nos, contudo, lembrar de que os corpos não são objectos em si, que nos estejam presentes, mas uma simples manifestação fenoménica, sabe-se lá de que objecto desconhecido; de que o movimento não é efeito de uma causa desconhecida, mas unicamente a manifestação fenoménica da sua influência sobre os nossos sentidos; de que, por consequência, estas duas coisas não são algo fora de nós, mas apenas representações em nós; de que, portanto, não é o movimento da matéria que produz em nós representações, mas que ele próprio (e portanto também a matéria que se torna, assim, cognoscível) é mera representação.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian, nota de rodapé das pags 363-364: o bold é nosso).

 

A Hessen passou despercebido o carácter idealista da doutrina de Kant quando escreveu:

 

«Desta maneira, não temos já perante nós a coisa em si, mas a coisa como se nos apresenta, ou seja o fenómeno.»

«Isto é, em breves palavras, a teoria do fenomenalismo, na forma como foi desenvolvida por Kant. O seu conteúdo essencial pode resumir-se a três proposições: 1. A coisa em si é incognoscível. 2. O nosso conhecimento permanece limitado ao mundo fenoménico. 3. Este surge na nossa consciência porque ordenamos e elaboramos o material sensível em relação às formas a priori da intuição e do entendimento.» (Johannes Hessen, Teoria do Conhecimento, Arménio Amado- Editor Sucessor, Coimbra, 7ª edição, 1978, páginas 110-111; o bold é posto por nós).

 

Neste texto acima, não há nem uma palavra sobre a natureza da matéria física, se é real ou irreal, que é aquilo que distingue realismo de idealismo.

 

Fenomenalismo não é uma posição ontológica, como realismo e idealismo. É uma posição gnoseológica. Não é, portanto, um intermédio de realismo e idealismo mas uma corrente ou qualidade colateral adicionável a qualquer uma delas. Em termos metafóricos: se idealismo e realismo produzem juízos sobre a existência da cadeira «que está ali», fenomenalismo é a cortina que oculta ou desvela a cadeira. Há o ser (realismo, idealismo) e o ver (fenomenalismo/ naturalismo). Há um fenomenalismo realista - o realismo crítico de Descartes, por exemplo, a matéria é exterior mas não tem peso, nem cor, nem grau de dureza, nem cheiro, etc. - e um fenomenalismo idealista - o idealismo transcendental de Kant, a matéria é ilusão dentro da sensibilidade, os númenos não são matéria. Há ainda um fenomenalismo céptico - a fenomenologia de Heidegger que,  apesar de formular o conceitos de ser e ser-aí e de mundo, não se decide sobre a realidade da matéria.

 

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Terça-feira, 31 de Janeiro de 2012
Schopenhauer compreendeu bem Kant

 

Ao contrário da generalidade dos académicos de hoje, que interpretam Kant como um realista crítico ou realista fenomenológico (exemplificando como interpretam Kant: há fora de mim uma árvore material que é númeno, incognoscível, e a árvore que eu vejo é fenómeno, representação) Schopenhauer compreendeu muito bem o sentido da expressão "realismo empírico" em Kant. Escreveu:

 

«Sem embargo, o idealismo transcendental não disputa de maneira alguma ao mundo existente a sua realidade empírica, mas diz unicamente que esta não é incondicional, posto que tem por condição as nossas funções cerebrais das quais resultam as formas de percepção, quer dizer, tempo, espaço e causalidade; que por conseguinte, essa mesma realidade empírica não é mais que a realidade de um fenómeno.» (Arthur Schopenhauer, Historia de la filosofía (de los Presocraticos a Hegel) , pag 65, Editorial Quadrata).

 

E escreveu ainda:

 

« Vemos pois que Locke desconta da qualidade das coisas em si que recebemos de fora, o que é ação dos nervos dos sentidos; este é princípio simples, compreensível e indiscutível. Mas neste caminho deu Kant, mais tarde, o grande passo gigantesco  descontando também o que é ação do nosso cérebro (de essa massa nervosa relativamente muito maior) pelo qual se reduziram então todas as supostas propriedades primárias a secundárias, e as supostas coisas em si, a simples fenómenos, mas ficando então a verdadeira coisa em si despojada de aquelas propriedades e como uma quantidade completamente incógnita, como um verdadeiro x.» (Schopenhauer, ibid, pag 118; o destaque a negrito é de mimha autoria).

 

Ao falar da redução das qualidades primárias (forma, tamanho, movimento, extensão, substância indefinida)  a qualidades secundárias (as que só existem na nossa percepção, na nossa mente) Schopenhauer acentua bem o idealismo de Kant, em que a matéria é interna ao espírito humano. No entanto, é de assinalar que Kant manteve, na esfera idealista do espírito,  a distinção das qualidades primárias- que no seu sistema são intersubjetivas, apenas empiricamente reais (realismo empírico) - e das qualidades secundárias - cor, cheiro, sabor, calor e frio, grau de dureza, etc, - que no seu sistema são subjetivas, absolutamente irreais.  

 

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Terça-feira, 16 de Novembro de 2010
Confusões de Ferrater Mora sobre o Em Si e o Fenómeno

De um modo geral, a grande maioria das correntes filosóficas distingue entre o em si , a realidade em si mesma, independentemente de eu e nós existirmos ou não, e o para-mim ou para nós, isto é, o fenómeno, aquilo que aparece. Por exemplo: uma pessoa em si, com as suas crises de melancolia oculta, os seus desejos suicidas que ninguém pressente, pode ser muito diferente enquanto fenómeno, isto é, aparência para nós: amável, educada, sorridente, optimista. Kant distingue entre a coisa em si ou númeno (a ideia ou objecto metafísico incognoscível: Deus, alma, liberdade) e a coisa para nós ou fenómeno ( exemplo: a árvore, a nuvem, o corpo físico).

 

 

 

Ferrater Mora hierarquiza assim as posições entre o em si, o fenómeno e a consciência cognoscente:

 

«Em geral, estas posições adoptadas até ao presente podem ser esquematizadas do seguinte modo . 1) posição exclusiva do em si (Parménides); 2) posição exclusiva do fenómeno (Berkeley); 3) o em si e o fenómeno existem separadamente e entre eles não há senão o nada (Parménides, ao formular a doutrina da opinião); 4) o em si e o fenómeno estão unidos pelo demiurgo (Platão); 5) divisão do em si numa multiplicidade (Demócrito); 6) afirmação do em si e da sua incognoscibilidade teórica (Kant).»

 

(José Ferrater Mora , Dicionário de Filosofia , Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1991, pags. 157-158)

 

 

 

Há várias confusões nesta classificação, algo desgarrada, de Ferrater Mora:

 

A)     A posição idealista, imaterialista, de Berkeley (2) não é exclusiva do fenómeno, mas exclusiva da consciência cognoscente que absorve em si o fenómeno («as árvores e todo o cosmos estão dentro da minha gigantesca mente») e do em si , isto é, Deus e os diversos espíritos;

 

B)     A divisão do em si numa multiplicidade não está só em Demócrito (os átomos são, de facto, múltiplos) mas até em Berkeley ( o em si: Deus e os espíritos) e em Kant (o em si: os númenos).

 

C)    O em si e o fenómeno em Platão só estão unidos pelo demiurgo no momento da criação do universo dos fenómenos. Posteriormente, a sua união faz-se pela participação da forma dos fenómenos (sensíveis) nas Formas ou Modelos eternos do inteligível.

 

D)    A posição de Kant não é apenas a da incognoscibilidade do em si mas também a existência do fenómeno dentro da consciência cognoscente (posição similar à de Berkeley).

 

 

 

Como se deveria desdobrar de forma correcta o leque das teorias sobre o triângulo em si, fenómeno, consciência cognoscente?

 

Por exemplo, do seguinte modo: o em si está no fenómeno e ambos fora da consciência cognoscente (realismos natural e crítico/epistemológico); o em si está, incognoscível, atrás do fenómeno e ambos fora da consciência cognoscente (realismo fenomenista); o fenómeno, material, está dentro da consciência e o em si imaterial fora desta, metafísico (idealismos de Kant e Berkeley); o em si material é incognoscível e ignora-se se está dentro ou fora da consciência, e é, como o fenómeno, correlato a esta (fenomenologia).

 

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Quinta-feira, 17 de Abril de 2008
Contradições sobre o númeno e outros erros teóricos de Kant

Quem disser que Kant não se contradiz na "Crítica da Razão Pura" não conseguiu penetrar na floresta do seu sistema ontognosiológico e aperceber-se de que o pensamento kantiano sofre fracturas por não ter um centro de gravidade único.

 

O NÚMENO É A COISA EM SI

 

Um primeiro ponto a assentar na interpretação de Kant: númeno é o mesmo que coisa em si.

 

«O nosso entendimento recebe, deste modo, uma ampliação negativa, porquanto não é limitado pela sensibilidade, antes limita a sensibilidade, em virtude de denominar os númenos as coisas em si (não consideradas como fenómenos).» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 271).

 

«O conceito de um númeno, isto é, de uma coisa que não deve ser pensada como objecto dos sentidos, mas como coisa em si (exclusivamente por um entendimento puro), não é contraditório, pois não se pode afirmar que a sensibilidade seja a única forma possível de intuição. Além disso, este conceito é necessário para não alargar a intuição sensível até às coisas em si e para limitar, portanto, a validade objectiva do conhecimento sensível (pois as coisas restantes, que a intuição sensível não atinge, se chamam por isso mesmo númenos, para indicar que os conhecimentos sensíveis não podem estender o seu domínio sobre tudo o que o pensamento pensa). Mas em definitivo não é possível compreender a possibilidade de tais númenos e o que se estende para além da esfera dos fenómenos é (para nós) vazio; quer dizer, temos um entendimento que, problematicamente, se estende para além dos fenómenos, mas não temos nenhuma intuição, nem sequer o conceito de uma intuição possível, pelo meio do qual nos sejam dados objectos fora do campo da sensibilidade e assim o entendimento possa ser usado assertoricamente para além da sensibilidade.»

 

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270; o bold é de nossa autoria).

 

Assim o entendimento, denominado, nesta vertente idealizadora do númeno, razão noutras partes da CRP, pensa o númeno

 

Note-se que o númeno é uma coisa, não um conceito. Logo essa coisa há-de ter, na espacialidade ideal abstracta, um lugar: dentro de nós, fora de nós ou fora e dentro em simultâneo. As noções de dentro-fora e limite entre dentro e fora são categorias do pensamento e não apenas da sensibilidade. Algo que não está em lugar nenhum é algo que está fora, idealmente pensando.

 

Kant admite o sujeito enquanto númeno – e aqui númeno adquire um sentido de objecto interno ao espírito humano – no que se refere à causalidade da acção moral:

 

«Pelo seu carácter inteligível porém (embora na verdade dele só possamos ter o conceito geral) teria esse mesmo sujeito de estar liberto de qualquer influência da sensibilidade e de toda a determinação por fenómenos; e como nele, enquanto númeno, nenhuma mudança acontece que exija uma mudança dinâmica de tempo, não se encontrando nele, portanto, qualquer ligação com fenómenos enquanto causas, este ser activo seria, nas suas acções, independente e livre de qualquer necessidade natural como a que se encontra unicamente no mundo sensível.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 468).

 

Assim o númeno, nesta perspectiva realista do entendimento, nunca é um conceito, mas sim uma coisa ideal, pensante ou não, interior ou exterior ao homem.

 

A COISA EM SI AFECTA A SENSIBILIDADE PARA PRODUZIR NELA O FENÓMENO, É CAUSA DESTE

 

A coisa em si é o objecto da intuição - não o objecto que a intuição nos dá mas aquele que se encontra "por detrás" deste - conforme se depreende do seguinte:

 

«…Modo que se denomina sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um modo de intuição tal que por ele nos seja dada a própria existência do objecto da intuição (modo que se nos afigura só poder pertencer ao Ser supremo), antes é dependente da existência do objecto e, por conseguinte, só possível na medida em que a capacidade de representação do sujeito é afectada por esse objecto.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362).

 

«Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objectos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objecto nos for dado; o que, por sua vez, só é possível (pelo menos para nós, homens) se o objecto afectar o espírito de certa maneira.

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 61; o bold é nosso).

 

Se o objecto afecta o espírito, é porque se encontra, em princípio, fora deste. Ora sendo o espírito humano composto por sensibilidade, entendimento e razão, o objecto de que aqui se trata não é a coisa para nós ou fenómeno (casa, lâmpada, mão, nuvem) que é interno à sensibilidade que se projecta fora do meu corpo mas sim a coisa em si.

Assim a coisa em si afecta o nosso espírito para fazer nascer dentro deste, com a ajuda do espaço e do tempo, formas a priori da sensibilidade, o fenómeno (casa, árvore, nuvem, mar, etc).

Vejamos agora se a coisa em si está dentro ou fora do nosso espírito.

 

QUANDO KANT DEFINE A COISA EM SI (NÙMENO) COMO OBJECTO FORA DE NÓS…

 

Sendo dado que númeno e coisa em si são o mesmo, atente-se na seguinte definição de Kant :

 

«Porque, entretanto, a expressão fora de nós traz consigo um equívoco inevitável, significando ora algo que existe como coisa em si, distinta de nós, ora algo que pertence simplesmente ao fenómeno exterior, para colocar fora de incerteza este conceito tomado neste último sentido, que é aquele em que propriamente é tomada a questão psicológica respeitante à realidade da nossa intuição externa, distinguimos os objectos empiricamente exteriores daqueles que poderiam chamar-se assim no sentido transcendental, designando-os por coisas que se encontram no espaço».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 352).

 

Nesta definição acima, postula-se que a expressão fora de nós pode significar coisa em si (númeno) ora pode indicar fenómeno exterior (algo que está no nosso sentido externo mas que não extravasa a sensibilidade). Logo, nesta passagem, o númeno é definido como objecto fora de nós.

 

«Deve, portanto, haver certamente algo fora de nós a que corresponde esse fenómeno que chamamos matéria. Porém, na qualidade de fenómenos, não está fora de nós, mas simplesmente em nós, como um pensamento, se bem que esse pensamento o represente, pelo chamado sentido externo, como situado fora de nós.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 362; o bold é nosso).

 

O espaço não está fora de mim ( entendido o mim como união corpo físico-espírito): está sim, na sua quase totalidade, fora do meu corpo físico mas sempre dentro do balão infinitamente grande que é a minha sensibilidade envolvente do corpo físico, balão que engloba as nuvens, as estrelas, as galáxias, o céu e a terra:

 

«Simplesmente, o próprio espaço, com todos os seus fenómenos como representações, só existe em mim; mas, nesse espaço, contudo, é dado o real ou a matéria de todos os objectos da intuição externa, verdadeira e independentemente de toda a ficção; e é também impossível que, nesse espaço, seja dada qualquer coisa de exterior a nós (no sentido transcendental), porque o próprio espaço nada é fora da sensibilidade.» Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 354; o negrito é colocado por nós).

 

No Prefácio à Segunda Edição da "Crítica da Razão Pura" Kant refere uma coisa em si, distinta de mim, que terá de ser simultaneamente exterior a nós, ao menos em parte:

 

«A representação de algo permanente na existência não é idêntica à representação permanente, porque esta pode ser muito variável e mutável, como todas as nossas representações, mesmo as representações da matéria, e contudo refere-se a algo de permanente, que tem de ser uma coisa distinta de todas as representações e exterior a mim, cuja existência está incluída necessariamente na determinação da minha própria existência, constituindo com ela uma única experiência, que nem sequer poderia realizar-se internamente se não fosse (em parte) simultaneamente exterior. ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 33-34, nota; o bold é de nossa autoria).

 

QUANDO KANT AFIRMA QUE O NÚMENO PODE ESTAR DENTRO OU PODE ESTAR FORA, SER UM CORRELATO DA SENSIBILIDADE OU NÃO…

 

«O entendimento…pensa um objecto em si, mas apenas como um objecto transcendental que é causa do fenómeno (e por conseguinte não é, ele próprio fenómeno) mas que não pode ser pensado nem como grandeza, nem como realidade, nem como substância, etc (porque estes conceitos exigem sempre formas sensíveis em que determinam um objecto). É por isso que ignoramos totalmente se está dentro ou fora de nós e se seria anulado conjuntamente com a sensibilidade ou se, abolida esta, permaneceria. É-nos lícito, se quisermos, dar a esse objecto o nome de númeno, porque a sua representação não é sensível.» ».(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291; o bold é de nossa autoria).

 

Nesta passagem, uma vez mais se afirma o objecto númeno como causa de um fenómeno. Contudo, já não se postula categoricamente «deve existir fora de nós um objecto» mas deixa-se na indeterminação o «lugar» ideal do númeno: dentro ou fora.

 

E QUANDO KANT AFIRMA A IMPOSSIBILIDADE DE EXISTÊNCIA DO NÚMENO…

 

Do ponto de vista da sensibilidade, o númeno não existe, pura e simplesmente. Adoptando este ponto de vista, Kant produz os seguintes excertos:

 

«O conceito de um númeno é, pois, um conceito-limite para cercear a pretensão da sensibilidade e, portanto, para uso simplesmente negativo. Mas nem por isso é uma ficção arbitrária, pelo contrário, encadeia-se com a limitação da sensibilidade, sem todavia poder estabelecer algo de positivo fora do âmbito desta.»

«A divisão dos objectos em fenómenos e númenos, e do mundo em mundo dos sentidos e mundo do entendimento, não pode pois ser aceite (em sentido positivo), embora os conceitos admitam, sem dúvida, a divisão em conceitos sensíveis e conceitos intelectuais, porque não é possível determinar um objecto para os últimos, nem considerá-los objectivamente válidos

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 270-271).

 

Nesta passagem, Kant afirma a irrealidade do númeno.

 

«Não se pode também considerar que esse objecto seria o númeno, pois este significa afinal, o conceito problemático de um objecto para uma intuição e um entendimento totalmente diferente dos nossos e é, por conseguinte, ele próprio um problema. O conceito de um númeno não é, pois, o conceito de um objecto, mas uma tarefa inevitavelmente vinculada à limitação da nossa sensibilidade: a de saber se não haverá objectos completamente independentes desta intuição da sensibilidade, questão esta que só pode ter resposta indeterminada…» (Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 291).

 

Há aqui uma contradição com as passagens citadas acima que descrevem o númeno como objecto.

O problema de Kant é o da sua oscilação permanente, ambígua, entre a realidade e a irrealidade dos númenos, entre a intuição inteligível do entendimento, que situa o númeno fora de nós (e às vezes dentro) e a intuição sensível que situa o númeno em parte nenhuma, isto é, suprime-o. Assim, há dois centros de gravidade na definição problemática de númeno: o entendimento-razão e a sensibilidade. A definição não sai clara nos seus contornos, mas algo confusa como as imagens de duas fotografias de objectos diferentes sobrepostas.

 

IDEALISMO DOGMÁTICO E IDEALISMO CÉPTICO, UMA CONFUSÃO DE KANT

 

As confusões de Kant, a par do brilhantismo de várias das suas definições e conceitos, abundam na "Crítica da Razão Pura" .

 

«O idealista dogmático seria aquele que nega a existência da matéria, o idealista céptico aquele que a põe em dúvida. O primeiro pode apenas ser idealista, porque julga encontrar contradições na possibilidade de uma matéria em geral, e com este não temos por agora nada a fazer. (...…) O idealista céptico, porém, que ataca o princípio da nossa afirmação e considera insuficiente a nossa convicção da existência da matéria, que nós julgamos fundar sobre a percepção imediata, é um benfeitor da razão humana, na medida em que nos obriga a abrir bem os olhos nos mais pequenos passos da experiência comum e a não aceitar imediatamente, como posse bem adquirida, aquilo que talvez tenhamos apenas obtido por surpresa. (...…) Portanto, o idealismo céptico obriga-nos a recorrer ao único refúgio que nos resta, a saber, à idealidade de todos os fenómenos, idealidade que tínhamos demonstrado na Estética Transcendental, independentemente destas consequências que então não podíamos prever».

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 355-357, nota).

 

Há nestas definições um erro de Kant: um céptico é um céptico, um idealista é um idealista. Não existe idealismo céptico. Todo o idealismo é dogmático, ainda que na sua génese haja um cepticismo instantâneo ("Duvido da realidade da matéria em si mesma") que se dilui na passagem ao dogma da idealidade/irrealidade da matéria. A definição correcta de idealismo é: teoria que reduz toda a realidade a ideias e percepções sensíveis, existentes quer dentro quer fora das consciências humanas. E o que Kant pretende designar por idealismo céptico não é mais que o fenomenismo de Hume ou seja, idealismo, porque nega a materialidade do mundo exterior .

 

Idealismo dogmático e idealismo céptico são expressões que designam a mesma coisa. Falta a Kant a clareza absoluta na distinção.

 

O OBJECTO TRANSCENDENTAL QUE, ORA É NÚMENO, ORA DEIXA DE SER…

 

De um modo geral, Kant identifica númeno e objecto transcendental.

 

«O objecto transcendental, que está na base dos fenómenos externos, tanto como aquele que serve de fundamento à intuição interna, não é, em si, nem matéria, nem um ser pensante, mas um fundamento que nos é desconhecido, dos fenómenos que nos fornecem o conceito empírico, tanto da primeira como da segunda espécie.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Fundação Calouste Gulbenkian,pag 357, nota).

 

Mas, numa das suas inflexões para os gelos da confusão de conceitos, distingue-os:

 

«O objecto a que reporto o fenómeno em geral é o objecto transcendental, isto é, o pensamento completamente indeterminado de algo em geral. Este objecto não se pode chamar o númeno pois dele não sei nada do que é em si e dele não possuo nenhum conceito, que não seja o de um objecto de uma intuição sensível em geral, que, portanto, é idêntico para todos os fenómenos. Não posso pensá-lo mediante categorias, pois estas só valem para a intuição empírica a fim de reconduzirem a um conceito do objecto em geral.»

 

É mais um erro de Kant.

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publicado por Francisco Limpo Queiroz às 19:54
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