A prova escrita 714 /2ª Fase, exame nacional de Filosofia, de 19 de Julho de 2016, contém, como as de anos anteriores, diversos erros na construção das perguntas da escolha múltipla, que prevêem uma só resposta certa entre quatro hipóteses. Eis exemplos na versão 1 da prova, de como a mentalidade hiper-analítica dos autores, que vê a árvore e não vê a floresta, produz a má filosofia e sujeita os alunos a perguntas deficientes.
Grupo I
4) «Não temos livre-arbítrio, porque ter livre.arbítrio é ter o poder de escolher algo, e nós apenas temos a ilusão de que podemos escolher».
O orador que apresenta o argumento anterior incorre na falácia
A) da petição de princípio.
B) da derrapagem.
C) do falso dilema.
D) do boneco de palha.
Crítica minha: não há qualquer falácia na frase acima. Schopenhauer e Nietzsche, além de outros filósofos, subscreveriam perfeitamente essa frase porque não acreditavam no livre.arbítrio. Petição de princípio seria dizer o seguinte «O livre-arbítrio existe porque eu sinto que posso escolher livremente».
Vejamos outra questão.
8. Segundo Kant, o imperativo categórico pode ser formulado do seguinte modo: age apenas segundo uma máxima tal que
(A) ela se torne uma lei universal.
(B) ela se torne um hábito para ti.
(C) possas ao mesmo tempo querer que ela se torne um hábito para ti.
(D) possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal.
Crítica minha: há duas respostas corretas, A e D, e não apenas uma como proclamam os critérios de correção. A diferença de conteúdo entre A e D é insignificante: os hiper-analíticos são formalistas até ao ridículo, para eles, ao contrário do que dizia Heráclito, «o caminho que sobe e o (mesmo) caminho que desce não são um e o mesmo».
Analisemos outra questão.
9. Kant consideraria que uma pessoa que, motivada unicamente por um sentimento de pena, ajudasse uma criança perdida na praia a encontrar os seus pais:
(A) Praticaria uma ação com valor moral.
(B) agiria em conformidade com o dever.
(C) praticaria uma ação imoral.
(D) agiria por dever.
Crítica minha: há três respostas certas, embora pressupondo dois ou três cenários diferentes, A, B e D. A acção de ajudar a criança teria sempre valor moral (hipótese A) - se Kant achava que mentir ou matar violava o dever então também abandonar a criança perdida na praia violaria o dever - e poderia constituir um agir por dever (hipótese D) já que a criança seria uma qualquer criança, sem distinção de sexo, classe social, raça ou idade, e, a ação se faria segundo a máxima sentimental «Restitui sempre aos pais qualquer criança perdida pois é uma coitadinha» - o sentimento se for universalizável não constitui lei moral? - e noutro cenário, poderia ser um agir em conformidade com o dever (hipótese D) porque a lei social impõe que se devolvam as crianças perdidas aos pais e a pessoa que o faz quer ficar bem vista, age por interesse egoísta. Não é uma ação imoral (hipótese C) se por imoral se entende «contra o dever».
10. Descartes considera que o cogito é um conhecimento especialmente seguro, porque é:
(A) obtido por um processo a priori.
(B) imune ao próprio processo de dúvida.
(C) confirmado pela experiência .
(D) o fundamento do conhecimento.
Crítica minha: há três respostas corretas, A,B, D, e não apenas uma. De facto, o cogito é pensado a priori, fora da experiência sensorial e isso torna-o uma certeza (hipótese A). Também o pensamento do cogito é imune à dúvida: «Eu penso, logo existo» (hipótese B). E o «eu penso, existo como mente» é o fundamento de todo o edifício do conhecimento (hipótese D).
É a esta lotaria, mais ou menos arbitrária, de respostas a que são sujeitos os estudantes de filosofia. Provas de exame deste teor envergonham a clareza que é apanágio da autêntica filosofia. Senhor ministro da Educação , faça o favor de mudar a equipa de autores desta prova de exame e de não ceder à pressão do desastroso lobby da filosofia analítica, um grupo de incompetentes que hoje domina a Sociedade Portuguesa de Filosofia e certas editoras de manuais escolares.
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© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Eduardo Lourenço, filósofo universitário e prémio Pessoa em 2011, debateu-se, em parceria com a generalidade dos filósofos e catedráticos de filosofia, numa maré turva de incompreensões sobre a ontognosiologia de Kant. Escreveu àcerca do cogito (eu pensante) em Kant:
«Afastada a hipótese do cogito como númeno põe-se o problema: como Kant não conhece intermediário entre o númeno e o fenómeno, é o cogito um fenómeno? Isso seria confundir o conhecimento psicológico com o transcendental - o cogito é a própria condição dos fenómenos e não um entre eles. A sua maneira de existir será então a duma pura forma de ligação dos conceitos com as intuições, a ação de subsumir o singular no universal.»
(Eduardo Lourenço, Heterodoxias I, página 117, Gradiva; o negrito é colocado por mim).
Não há intermediário entre fenómeno e númeno na gnoseologia de Kant e este desconhecia um tal intermediário, como garante Lourenço? É óbvio que há: é a própria sensibilidade que é cega para o exterior do espírito humano, ou seja, está «às escuras» em relação aos númenos que flutuam ou subsistem fora dela, como Deus e mundo como totalidade, mas recebe um difuso e imperceptível «contacto» destes. Na Crítica da Razão Pura, Kant afirma que o númeno afecta de alguma maneira a sensibilidade e em consequência disso esta fabrica o fenómeno. Portanto, a sensibilidade, na qual vivem os fenómenos como as ilhas no mar, é o intermediário entre estes e os númenos.
Surpreendente é que o laureado Eduardo Lourenço não se aperceba que o cogito em Kant é o conjunto do entendimento - intelecto que pensa os fenómenos, o mundo da natureza física- e da razão - intelecto que pensa a metafísica, o ilógico, os númenos. E se admite que a função do cogito é «subsumir o singular no universal» como não detecta que quem faz isso é o entendimento e que este é cogito?
São estes intelectuais de segunda água, de pensamento fragmentado, antidialético, confusos e pomposos nos seus doutoramentos, como Eduardo Lourenço, que dominam a filosofia institucional, os grandes media.
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Eduardo Lourenço, filósofo universitário e prémio Pessoa em 2011, não compreendeu a ontologia de Kant em alguns pontos essenciais. Escreveu a propósito da síntese que é o conhecimento forjado no entendimento (Verstand), uma das divisões do espírito humano segundo Kant:
«Qual é então o fundamento da síntese? É o cogito, não no sentido cartesiano de algo subsistente e real, mas de consciência que acompanha todos os conceitos e representações, pura condição a priori do conhecimento. »
"O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações; porque de outro modo haveria em mim qualquer coisa de representado que não poderia ser pensado, o que equivaleria a dizer que ou a representação seria impossível ou pelo menos não seria nada para mim...Designo ainda a unidade desta representação sob o nome de unidade transcendental da consciência de si" (Nota 79: Kant, Crítica da Razão Pura, pag.138)".
«Detenhamo-nos na concepção kantiana da unidade da apercepção transcendental. Ela marca toda a distância que separa a filosofia crítica da metafísica de Fichte, Schelling, Reinold e Hegel. O seu tipo de existência é puramente lógico e não ontológico como o cogito cartesiano ou husserliano cuja realidade indubitável e concreta é apreendida numa intuição original. Ora, para Kant, a única espécie de intuição que existe é a intuição sensível e essa é uma representação que é dada anteriormente a todo o pensamento. O cogito, pelo contrário é um "acto de espontaneidade , quer dizer que não se poderá olhá-lo como pertencente à sensibilidade." (Crítica da Razão Pura, ibid, pag 138).
«Chama-se por isso apercepção pura distinguindo-a da apercepção empírica que caracteriza o acto de apreensão de um eu empírico, coleção de sensações e representações, contraditórias com a unidade que caracteriza o eu transcendental.»
(Eduardo Lourenço, Heterodoxias I, página 115-116, Gradiva; o negrito é colocado ).
Isto revela uma grande confusão do laureado com o prémio Pessoa 2011 sobre a ontognosiologia de Kant. O cogito de Descartes é uma estrutura a priori do espírito humano, ontológica, e a apercepção pura da consciência em Kant não é senão esse mesmo cogito, porque é anterior ao representado, é a priori. Mas Eduardo Lourenço não se apercebe dessa identidade. A lógica é inseparável da ontologia não pode haver uma estrutura lógica que não seja ontológica, a lógica é a radiografia óssea do corpo no qual se inserem os nexos lógicos, os «ossos». Dizer que a apercepção transcendental pura é lógica e não ontológica é não compreender que o entendimento e a razão - molas ou constituintes da apercepção pura - são ontológicos, sendo o entendimento a estrutura e função lógica e a razão a estrutura e função ilógica e supra-lógica.
Para diferenciar o cogito da apercepção pura Eduardo Lourenço usa, confusamente o argumento de que Kant nega haver outra intuição além da sensível, esquecendo que Descartes e Husserl deram ao termo intuição um sentido diferente, o de apreensão intelectual e instantânea da verdade.
Aliás como se chegaria à certeza de que o entendimento segundo Kant possui as categorias (formas lógicas) a não ser por apreensão intelectual que é a própria apercepção transcendental? Chamar a esta apreensão intuição é o que Husserl fez e Kant não, mas não é motivo para dizer que cogito e apercepção transcendental sejam distintos...Não é a lógica que descobre a lógica, mas a estrutura ontológica, material ou espiritual, que descobre a lógica. As categorias do entendimento são estruturas ontológicas, e lógicas, de carácter imaterial inerentes ao eu humano.
Se Eduardo Lourenço argumentar que é o próprio Kant que postula ser a apercepção transcendental, etérea e formal, diferente de um cogito cartesiano substancial, contraporei o seguinte: a opinião de Kant em várias matérias é incoerente, não é de fiar, como no caso do seu falacioso ataque ao "idealismo dogmático" de Berkeley que é, na essência, o mesmo que o idealismo transcendental de Kant.
Mas isto nem Eduardo Lourenço nem os mais famosos catedráticos de filosofia, perdidos na hiper-análise fragmentária (exemplificando o que é hiper-análise: o não reconhecer que uma moeda de prata é, no essencial geral, o mesmo que uma moeda de cobre, ou que um gato preto e um grato branco são da mesma classe) não são capazes de ver.
Estou, pois, com Schopenhauer contra a falsidade das cátedras universitárias em filosofia e o sistema de favores mútuos de carreira entre a camada dos professores de filosofia de cátedra- ainda que eu não acompanhe as críticas de «charlatanismo» com que ele mimoseou Hegel e Schelling.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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