No importante diálogo «Timeu» Platão expõe a sua tese sobre o espaço vazio («Chora») da seguinte maneira:
« Há primeiro a forma imutável que não nasceu e que não perecerá, que não recebe nela, nada de estranho (...) Há uma segunda espécie, que tem o mesmo nome que a primeira e é semelhante à primeira mas sensível; que é gerada, sempre em movimento, que nasce num lugar determinado para depois o abandonar e perecer, e que é acessível à opinião acompanhada de sensação. Enfim, há sempre uma terceira espécie, a do lugar (chora), que não admite destruição e que fornece um lugar a todos os objectos que nascem. Só é perceptível através de um raciocínio bastardo, onde a percepção não entra; dificilmente podemos acreditar nela. Entrevemo-la como num sonho, dizendo que é necessário que tudo aquilo que é esteja num lugar determinado, ocupe um certo sítio, e que aquilo que não está nem sobre a terra nem em algum lugar debaixo do céu não é nada.» (Platão, Timeu, Publicações Europa-América, pag 277).
Platão fala, pois, de três níveis: o da forma imutável ou arquétipo, situada acima do céu visível, no hiperurânio; o das formas mutáveis e corruptíveis, porque imersas na matéria em devir, no mundo terrestre; o do espaço, como imenso lugar vazio, receptáculo das formas e da matéria caótica. Omite aqui um nível que refere noutros textos: o dos astros incorruptíveis em movimento eterno tecendo o tempo, que constitui o Mundo do Semelhante.
Aristóteles acusa, injustamente, em certa medida, Platão de confundir o espaço com a matéria:
«Daí que Platão diga no Timeu que a matéria e o espaço são o mesmo, pois que o participável (metaléptikon) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de maneira diferente nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer o que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209 a; a letra negrita é posta por mim).
Há algo de aparentemente incompreensível neste texto: a afirmação de que Platão identificou o lugar com o espaço. Mas então o lugar não é uma porção de espaço? Parece que não, na concepção aristotélica.
Platão identificou de facto o espaço puro com uma espécie invisível, extensa e passiva, que traduz a hylé ou matéria-prima de Aristóteles. Não identificou, no entanto, este espaço puro ou mãe de todas as coisas ou receptáculo vazio universal com água, terra, fogo ou ar ou alguma matéria qualitativamente determinada. Escreveu:
«O mesmo se passa com aquilo que deve receber, frequentemente, em boas condições e em toda a sua extensão, as imagens de todos os seres eternos: convém que seja, por natureza, alheia a todas as formas. É por isso que não se deve dizer que a mãe e o receptáculo de tudo o que nasceu visível ou sensível de uma maneira ou doutra é a terra,ou o ar, ou o fogo, ou a água, ou alguma das coisas que delas se formaram ou que lhes deram orgem. Mas se dissermos que é uma espécie invisível e sem forma que recebe tudo, e que participa do inteligível de uma maneira bastante obscura e muito difícil de compreender, não mentiremos. (...) A parte dela que está em ignição parece ser fogo, a parte liquefeita água, e terra e ar na medida em que recebe imagens destes elementos.» ( Platão, Timeu, Diálogos, PEA, Pag. 276)
Eis como Aristóteles dissocia lugar de espaço abstracto ou vazio:
«Ora bem, se o lugar não é nenhuma de estas três coisas, quer dizer, nem a forma, nem a matéria, nem uma extensão que esteja sempre presente e seja diferente da extensão da coisa deslocada, o lugar terá que ser então a última das quatro, a saber: o limite do corpo continente que está em contacto com o corpo contido. (...)»
«O lugar, ao contrário, quer ser imóvel, por isso o lugar é mais precisamente o rio total, porque como totalidade é imóvel. Por conseguinte, o lugar de uma coisa é o primeiro limite imóvel de o que a contém.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 212 a; a letra negrita é posta por mim).
Lugar, é, pois, para Aristóteles um corpo estar contido noutro (exemplo: a planície é um lugar que contêm os sobreiros). Não é o mesmo que espaço (chora) ou extensão que está sempre presente e que transcende a extensão do movimento dos corpos e da presença deste.
Platão não usa o termo hylé, segundo Ivan Gobry, termo que é usado frequentemente por Aristóteles e designa a matéria-prima, indiferenciada, fonte monoelementar de todos os objectos. Na verdade, uma árvore, uma rocha, a água de um rio ou o fogo são feitos da mesma matéria-prima universal que é moldada pelas formas madeira, pedra, água e fogo.
Ora qual é a diferença entre a chora de Platão e a hyle de Aristóteles? Aparentemente, a chora é um lugar, é tridimensional - possui comprimento, largura e altura indeterminados - ao passo que a hylé não é um lugar, não ocupa lugar e não é senão uma "massa" informe que não existe mas, de algum modo, é. Aristóteles retirou a extensão à chora de Platão mas conservou-lhe o carácter de matéria sem forma, moldável, receptáculo universal das formas. Ao desespacializar a matéria-prima, Aristóteles abriu caminho à metafísica cristã da criação do mundo a partir do Nada ("ex nihil"), ainda que no Estagirita as formas não estejam no seio de Deus mas sejam eternamente subsistentes ao lado da hylé, plástica e moldável.
A teologia cristã foi, por conseguinte, inspirar-se em Aristóteles e em Plotino - para este, as essências das coisas repousam, como modelos exemplares, no seio da mente divina, ao passo que Platão separava Deus das Ideias eternas e autosubsistentes - para construir o seu sistema.
Com a diferença de que o espaço segundo Kant é subjectivo ou intersubjectivo e em Platão não, Kant equipara-se a Platão na maneira de conceber o espaço: é uma estrutura formal, vazia, destituída de matéria, feita de figuras geométricas. É evidente que Platão não refere a essência do espaço como infinitas figuras geométricas mas como o receptáculo dessas formas porque os modelos destas estão no mundo inteligível, suprafísico. Mas o espaço, apesar do seu vazio formal, não é o nada: é o recipiente eterno que faz frente ao inteligível. www.filosofar.blogs.sapo.pt
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Aristóteles distinguiu o não-ser por acidente e o não-ser por essência ou natureza:
«Afirmamos que a matéria é distinta da privação, e que uma delas, a matéria, é um não-ser por acidente, enquanto a privação é em si mesma um não ser, e também que a matéria é de alguma maneira quase uma substância, enquanto que a privação não o é em absoluto.» (Aristóteles, Física, Livro I, 192a).
A matéria-prima universal, segundo Aristóteles, é ser em potência, ou seja, ainda não é. Esta é uma das noções mais profundas da teoria aristotélica: a de uma matéria prima universal ou substrato que, uma vez que é informe, não possui textura, peso, figura, não é ar, nem terra, nem água, nem fogo, nem éter, nem coisa nenhuma determinada. É algo indeterminado, privado de forma, mas não se confunde com a privação. Areia, ferro, madeira ou água são formas adicionadas ao substrato original: a areia é a matéria prima universal (hylé) adicionada da forma «areia», o ferro é a mesma matéria prima universal (hylé) adicionada da forma «ferro», a madeira é a matéria-prima universal (hylé) adicionada da forma «madeira», a água é a matéria-prima universal (hylé) moldada pela forma «água».
Assim, uma cadeira de madeira é duplamente informada, isto é, dotada de forma: a madeira em si já é uma forma primitiva - Aristóteles chamou-lhe causa material - e o assento, espalda e pernas da cadeira são formas derivadas - constituem a causa formal ou modelo da cadeira - criadas na matéria pelo operário e pela máquina - o agente produtor, que Aristóteles designa como causa eficiente.
A matéria-prima é quase substância (ousía), diz Aristóteles. Falta-lhe a forma, embora possua o substrato.
Ao contrário, a privação é o nada absoluto. Assim postula-se a tese da seguinte tríade: forma, matéria-prima informe, privação (absoluta). A matéria prima ou não ser por acidente é um intermédio entre a forma e a privação absoluta. Não detectamos aqui o pensamento de Hegel da identidade dos contrários absolutos, segundo o qual o ser absolutamente indeterminado (ex: algo que é... não matéria, não espírito, não energia, não mundo, não antimundo, etc) e o não-ser (absolutamente indeterminado) são um e o mesmo.
CRÍTICA DE ARISTÓTELES À TRÍADE PLATÓNICA
Platão sustentou uma tríade como fonte de todas as coisas: o Uno, fonte das ideias do mundo inteligível, isto é, do ser das formas puras; o Grande e o Pequeno (isto é, a Díade) como fonte da matéria que, em sentido absoluto, é não ser. Aristóteles explana, do seguinte modo, a sua crítica à teoria da matéria de Platão exposta no Timeu:
«Eles ( nota nossa: os platónicos), ao contrário, afirmam que o Grande e o Pequeno são por igual não ser, tomados conjuntamente ou cada um por separado. A sua tríade é, então, inteiramente distinta da nossa. Certamente chegaram a ver a necessidade de que haja uma natureza subjacente, mas concebem-na como una; pois ainda que algum faça dela uma díade e a chame o Grande e o Pequeno, entendem-na como uma só e mesma coisa, já que não se aperceberam da outra natureza.
«Uma delas permanece, sendo junto com a forma uma concausa das coisas que chegam a ser, como se fosse uma mãe. A outra parte da contrariedade pode parecer, frequentemente, como inteiramente inexistente para os que só pensam no seu carácter negativo. Porque, admitindo com eles que há algo divino, bom e desejável, afirmamos que há, por um lado, algo que é o seu contrário e, por outro lado, algo que naturalmente tende para ele e o deseja de acordo com a sua própria natureza. Mas para eles seguir-se-ia que o contrário desejaria a sua própria destruição. Sem embargo, a forma não pode desejar-se a si mesma, pois nada lhe falta, nem tampouco pode desejá-la o contrário, pois os contrários são mutuamente destrutivos; o que a deseja é a matéria, como a fêmea deseja o macho e o feio ao belo, salvo se não fôr feio por si a não ser por acidente, nem fêmea por si senão por acidente.»
«Em certo sentido a matéria destrói-se e gera-se, em outro não. Porque, considerada como aquilo «no que», em si mesma se destrói (pois o que se destrói, a privação, está nela); mas considerada como potência, em si mesma não se destrói, mas necessariamente é indestrutível e inengendrável. Porque se chegasse a ser, teria que haver primeiro algo subjacente do qual, como seu constituinte, chegasse a ser; mas justamente essa é a natureza da matéria, pois chamo «matéria» ao substrato primeiro em cada coisa, aquele constitutivo interno e não acidental do qual algo chega a ser; portanto teria que ser antes de chegar a ser. E se se destruísse, chegaria finalmente a isso, de tal maneira que se teria destruído antes que fosse destruída.»
(Aristóteles, Física, Livro I, 192a; o bold é de nossa autoria)
É óbvio que importa ler cuidadosamente os textos de Platão para dissipar dúvidas sobre se a crítica aristotélica distorceu ou reproduziu exactamente o pensamento deste: segundo Aristóteles, Platão defendeu «no Timeu que a matéria e o espaço (chora) são o mesmo, pois o participável (metalêptikón) e o espaço são uma e a mesma coisa - ainda que fale de diferente maneira sobre o «participável» nos chamados Ensinamentos não escritos, identificou sem embargo o lugar e o espaço. Todos dizem que o lugar é algo, mas só ele tentou dizer que é.» (Aristóteles, Física, Livro IV, 209b).
A.E.Taylor sustenta que Aristóteles deformou o pensamento platónico expresso no Timeu:
«Não há um substrato da mudança no esquema do Timeu...Aristóteles estava tão imbuído da visão de que o permanente implicado na mudança só pode ser pensado como «matéria» ou «substrato» que porventura não estava consciente de estar a falsear a teoria do Timeu ao introduzir neste a sua própria terminologia» (A.E.Taylor, A Comm. on P.´s Timaeus, pag 347., cf. páginas 401-403).
Ainda que com imperfeições, como todo o pensamento humano, a par de uma grandeza intelectual notável, Aristóteles lavrou proficuamente o pensamento na área da ontologia (doutrina do ser, que se estende da física à metafísica). Com Aristóteles, aprende-se, repensa-se, redescobrem-se ou descobrem-se novas pistas do pensamento filosófico -ao contrário do que sustentam alguns adeptos de alguma filosofia analítica enviesada, apologistas da abolição da filosofia na sua história, mentes medíocres que troçam da hermenêutica dos textos de Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger e outros justamente porque são incapazes de compreender na sua integridade os textos de Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger e outros.
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