Há teses de Hegel que são notáveis e compreensíveis na Fenomenologia do Espírito, como por exemplo a seguinte:
«O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se completa mediante o seu desenvolvimento. Do absoluto, há que dizer que é essencialmente resultado, que só no final é o que é de verdade, e em isso precisamente estriba a sua natureza, que é a de ser real, sujeito ou devir de si mesmo. »
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 16; o destaque a negrito é colocado por nós).
Hegel sustenta que no princípio está o Espírito, o mais universal de tudo. Adiciona ao teísmo da primeira fase do Espírito, o panteísmo da segunda fase (Deus é as árvores, os rios, as plantas e os animais «irracionais») e o panenteísmo da terceira fase (Deus é a humanidade nos seus diferentes povos e tipos de estado, de arte, de religião e de filosofia, evoluindo para a liberdade e ao mesmo tempo Deus é espírito puro, transcendente, no Além). O resultado acima referido é a terceira fase, a da humanidade, que resulta da união e síntese entre a fase de Deus pensante e a fase de Deus impensante, alienado em natureza física em corpos físicos.
Hegel fala de quatro etapas na fenomenologia do Espírito, isto é, nas sucessivas formas que este vai assumindo: consciência, autoconsciência, razão e espírito. Ponho reservas a esta divisão: a autoconsciência já é, em si mesma, razão. Hegel dá a seguinte definição de autoconsciência:
«Mas de facto, a autoconsciência é a reflexão, que desde o ser do mundo sensível e percebido, é essencialmente o retorno a partir do ser outro. Como autonsciência é movimento(....) A diferença não é, e a autoconsciência é somente a tautologia sem movimento do eu sou eu.»
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).
Fixemo-nos: quando Descartes intui «eu penso logo existo» isso é autoconsciência; quando Albert Camus infere que a vida humana é destituída de sentido pois não há Deus nem é possível garantir o triunfo perene da verdade e da justiça para toda a humanidade isso é autoconsciência.
Mas há numerosos parágrafos da Fenomenologia que são ambíguos devido às múltiplas divisões que ele introduz no mesmo conceito tipo bonecas russas Matrioska, umas dentro das outras. Veja-se por exemplo, esta passagem em que se refere à substância ética:
«A substância é, deste modo, espírito, unidade autoconsciente do si mesmo e da essência; mas ambos têm também o significado da estranheza de um face ao outro. O espírito é consciência de uma realidade objectiva para si livre; mas a esta consciência se enfrenta àquela unidade do si mesmo e da essência, à consciência real se enfrenta a consciência pura. Por um lado, mediante a sua alienação, a autoconsciência real passa ao mundo real e este retorna àquela; mas, por outro lado, superou-se precisamente esta realidade, a pessoa e a objectividade. Esta estranheza é a pura consciência ou essência.»
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 287; o destaque a negrito é colocado por nós).
Na primeira frase da citação acima a substância aparece como a unidade entre o si mesmo e a essência. Ora o que é o si mesmo senão o espírito do indivíduo? Neste caso, a essência terá de ser a objectividade, a realidade, o bem e o mal que se encontram fora da consciência. Mas na última frase da citação Hegel muda o significado de essência, que no início era lei exterior, realidade exterior para... consciência pura. Não bate certo.
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 108; o destaque a negrito é colocado por nós).
Estamos pois perante um exercício de sofística em que Hegel, sem embargo do seu brilhantismo, é pródigo.
AUTOCONSCIÊNCIA EM GERAL E AUTOCONSCIÊNCIA LIVRE, O PARADOXO DE "O SER SÓ PARA A CONSCIÊNCIA" SER SIMULTÂNEAMENTE "REAL EM SI MESMO"
Vejamos um entre muitos exemplos da falta de clareza, ou pelo menos da falta de concreção do pensamento de Hegel:
«A razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade; de este modo exprime o idealismo o conceito da razão. Do mesmo modo que a consciência que surge como razão abriga de um modo geral imediato esta certeza, assim também o idealismo a exprime de modo imediato; eu sou eu, no sentido, no sentido de que o eu que é o meu objecto, é objecto com a consciência do não ser de qualquer outro objecto, é objecto único, é toda a realidade e toda a presença, e não como na autoconsciência em geral, nem tão pouco como na autoconsciência livre, já que ali é só um objecto vazio em geral e aqui somente um objecto que se retira dos outros que continuam a governar junto dele. Mas a autoconsciência só é toda a realidade não somente para si mas também em si ao devir esta realidade ou mais exactamente ao demonstrar-se como tal. E se demonstra assim no caminho pelo qual, primeiro no movimento dialétco da suposição, da percepção e do entendimento , o ser outro desaparece como em si, e logo no movimento que passa pela independência da consciência no senhorio e na servidão, pelo pensamento da liberdade, a libertação céptica e a luta da libertação absoluta da consciência desdobrada dentro de si, o ser outro enquanto é para ela, desaparece para ela mesma. Apareceriam sucessivamente dois lados, um em que a essência ou o verdadeiro tinha para a consciência a determinabilidade do ser e outro em que a sua determinabilidade era ser somente para ela. Mas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si.»
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 144; o destaque a negrito é colocado por nós.)
Percebe-se neste texto o que significa a tese de Hegel de que no idealismo «o ser outro desaparece como em si»: no idealismo material ou ontológico, a árvore, a casa ou o cão que em relação a mim são ser outro que desaparecem em si, isto é, desaparecem como realidades independentes de mim, reduzem-se a simples ideias na minha mente que é o universo inteiro. Mas Hegel não define o que é a autoconsciência livre - é o pensamento de alguns filósofos destacados do vulgo?- e em que se distingue da autoconsciência em geral - esta já sabemos ser reflexão e não absorção acrítica das percepções do mundo exterior.
A última frase do texto «Mas ambos os lados se reduziam a uma verdade, a de que o que é ou o em si só é enquanto é para a consciência e o que é para ela é também em si.» é em si mesma um paradoxo: Hegel começa por dizer que o que é ou existe só é para a consciência - posição do idealismo e da fenomenologia: a árvore que vejo só é real para a minha consciência - e depois contradiz-se ao dizer que o que existe para a consciência existe também em si mesmo, como realidade independente - posição do realismo: a árvore está fora da minha mente e subsiste quer eu a veja e pense ou não.
O ESPÍRITO, SUBSTÂNCIA ÉTICA, VERSUS A SUBSTÂNCIA QUE SÓ SURGE NELE QUANDO O ESPÍRITO AGE
Ideias que Hegel repete são a do desdobramento da consciência e a da luta entre a essência e a autoconsciência, entre o universal e o singular. Hegel define o espírito assim, ora identificando-o como substância ora diferenciando-o desta:
«Mas a essência que é em si e para si e que ao mesmo tempo é ela mesma real como consciência e se representa a si mesma é o espírito.»
«A sua essência espiritual já foi definida como a substância ética; mas o espírito é a realidade ética. É o si mesmo da consciência real, à qual se enfrenta, ou que mais precisamente se enfrenta a si mesma, como mundo real objectivo, o qual, sem embargo, perdeu para si mesmo toda a significação de algo estranho, do mesmo modo que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si, separado, dependente ou independente de aquele. O espírito é a substância e a essência universal, igual a si mesma e permanente - o inabalável e irredutível fundamento e ponto de partida do agir de todos - e o seu fim e a sua meta, como o em si pensado de toda a autoconsciência».
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pp. 259-260; o destaque a negrito é colocado por nós.)
Esta passagem, relativamente obscura - Como é que o si mesmo perdeu toda a significação de um ser para si? Refere-se a quando Deus se alienou em natureza física e deixou de pensar? - está em contradição com a seguinte:
«Na sua verdade simples, o espírito é consciência e desdobra os seus momentos. A ação cinde-o em substância e em consciência da mesma, e cinde tanto a substância como a consciência. A substância, como essência universal e como fim, enfrenta-se consigo mesma como a realidade singularizada...»
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 261; o destaque a negrito é colocado por nós.)
A incoerência está em considerar o espírito como substância ética, depois como realidade ética e por último dizer que o espírito é apenas consciência e só a ação o cinde em substância e consciência de esta. Substância era qualidade do espírito, eterno e imóvel, tese primeira, mas só surge quando o espírito se põe em ação e divide em substância e consciência, tese segunda. Há aqui imprecisão conceptual.
O espírito é o quarto degrau mas engloba os outros três degraus. Há aqui uma visão eclética, algo confusa: espírito é tomado em dois sentidos diferentes, ora como consciência em geral, mesmo não ética, ora como essência ética:
«Aqui, onde se põem o espírito ou a reflexão de estes momentos em si mesmos, a nossa reflexão a respeito deles pode recordá-los brevemente conforme a este lado; os ditos momentos eram a consciência, a autoconsciência e a razão. O espírito é pois consciência em geral, que abarca em si a certeza sensível, a percepção e o entendimento»
(G.W.F. Hegel, Fenomenología del espíritu, Fondo de Cultura Económica, México, 2007, pág. 26o; o destaque a negrito é colocado por nós.)
Há falta de concreção no pensamento hegeliano, oscilações de vagueza em conceitos como essência, substância, ser em si, ser para si. Talvez por isso Schopenhauer classificasse Hegel de «charlatão», do mesmo modo que nós acusamos Heidegger de um certo grau de charlatanismo retórico em O Ser e o Tempo.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Heidegger fala do «ser no mundo» como uma das divisões do ser. Mas a expressão é equívoca: pressupõe que o ser é uma coisa e o mundo é outra, totalmente independente. Ora o mundo desabrocha a partir do ser, e não o inverso como sugere a expressão «ser no mundo», isto é, ser situado ou colocado no mundo. E ser tem, obviamente – o que Heidegger não esclarece - o sentido de o grande Ente, isto é, a essência geral e universal como, por exemplo, o «Eu» em Kant, portador do espaço e do tempo, e gerador dos objectos materiais que são percepções objectivas suas, ou a «Ideia absoluta» de Hegel, isto é, Deus que, ora está em si como Espírito puro, ora devém transformado em árvores e natureza biofísica ou em humanidade, espírito de cada povo, formas de Estado, religião, etc.
Acresce a isto que «mundo» não é, na terminologia heidegeriana, uma região de entes (uma planície com árvores e campos de trigo, um planeta com continentes e oceanos, uma ou várias galáxias) independente do sujeito mas sim uma parte do ser humano, uma ponte, uma abertura entre o sujeito humano (o ser-aí, o Dasein) e os objectos situados no espaço à sua volta (o ser diante dos olhos).
«O "mundo" não é ontologicamente uma determinação de aqueles entes que o "ser aí", por essência, não é, mas um carácter do próprio «ser aí» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 77, Fondo de Cultura Económica).
Só o homem tem mundo. Os animais e as plantas não têm mundo. Assim o mundo é uma correlação entre substâncias - a substância do «eu» Da-sein e as substâncias exteriores como montanha, planície, rebanho de ovelhas, casas, nuvens, rios, etc - e não uma colecção de substâncias.
«A analítica existenciária do "ser aí" tem por tema directivo no seu estado preparatório a constituição fundamental de este ente, o "ser no mundo". (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 147, Fondo de Cultura Económica).
«O "ser junto" ao mundo, no sentido de absorver-se no mundo, sentido que haverá que interpretar de modo ainda melhor, é um existenciário fundado no ser em. (...)
«O "ser junto" ao mundo em sentido existenciário não significa nunca nada de semelhante ao "ser diante dos olhos junto" às coisas que vêm a estar diante dentro do mundo. Não há nada semelhante a uma "contiguidade" de um ente chamado "ser aí" a outro ente chamado "mundo". (pag.67)
A contradição do pensamento heideggeriano é usar a expressão "junto de" para dizer, depois, que ela não significa "junto de", contiguidade. Esta desapropriação da linguagem dos seus referentes é uma técnica surrealista, uma subversão do sentido que transcende por vezes a fronteira do conhecimento filosófico. Heidegger considera inacessível a estrutura do "ser em", ou seja, não dá uma definição clara desta:
«O conhecimento (noein) do mundo ou o dizer (lógos) do "mundo" funciona, portanto, como o modo primário do "ser no mundo", sem que se conceba este "ser no mundo" enquanto tal. Esta "estrutura de ser" permanece ontologicamente inacessível, enquanto que onticamente se experimenta como a "relação" entre um ente (o mundo) e outro ente (a alma), e ao mesmo tempo se compreende imediatamente o ser apoiando-se ontologicamente nos entes intramundanos...» (Heidegger, El Ser y el Tiempo, pagina 71).
Afinal, aqui, Heidegger acaba por postular que o ser no mundo é incognoscível. Sabe o que não é mas não sabe o que é - numa espécie de ontologia ou teologia negativa, na linha dos místicos cristãos alemães. Não faz sentido dizer que «o ser junto a se funda no ser em» se não se define este último.
«A LONJURA NÃO SE TOMA COMO DISTÃNCIA» E OUTRAS SUBVERSÕES DA LINGUAGEM
Uma das estratégias surrealistas de Heidegger em «O ser e o tempo» - porque se trata, de um livro com traços surrealistas coberto de uma camada de açúcar de racionalismo e vocabulário clássico- é levar o leitor a reflectir com uma dada terminologia e depois negar ou inverter essa terminologia usada. Eis um exemplo:
«O des-afastar não implica necessariamente uma expressa estimativa da lonjura de algo "à mão" em relação ao "ser aí". Antes de tudo, a lonjura não se toma nunca como distância. Se houvesse de se calcular o afastamento, far-se-ia relativamente a des-afastamentos em que se mantèm o "ser aí" quotidiano. »(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 121, Fondo de Cultura Económica).
A lonjura não se toma nunca como distância? É verdadeiramente ridículo. A lonjura interpreta-se sempre como distância, seja esta física, real, ou ideal, imaginada. A espacialização empírica corresponde, de certo modo, não mecânico, à espacialização mental e um dos traços comuns às duas é as noções de lonjura, de desafastamento, de aproximação.
«O ocupar um sítio tem de conceber-se como um des-afastar o "à mão" no mundo circundante dentro de um lugar previamente descoberto pelo "ver em torno". O "ser aí" compreende o seu "aqui" pelo "ali" do mundo circundante. O "aqui" não significa o "onde" de algo "diante dos olhos" mas o junto a um «quê» de um ser "desafastador" junto a, em uníssono com esse desafastamento.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 123, Fondo de Cultura Económica).
"O permitir que entes estejam frente a frente dentro do mundo, constitutivo do "ser no mundo", é um "dar espaço". Este dar espaço, que também chamamos "espacializar", é dar liberdade ao "à mão" na sua espacialidade. Este "espacializar" é o prévio descobrimento de uma possível totalidade de sítios determinada pela conformidade que torna possível a orientação fáctica do caso.»(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 127, Fondo de Cultura Económica).
Eis, pois, a ontologia desenhada com base na espacialidade: o "ser aí" está aqui - espaço mais próximo, interior - é o «eu» de cada um, e tem fora de si ou diante de si os entes "à mão" (os automóveis, as casas, as ruas, as ferramentas, etc). E como o espacializar é obra do sujeito que cria o espaço temos um decalque da doutrina de Kant da estética transcendental, - o espaço é uma forma a priori do sujeito, não é real em si mesmo - com a diferença de que, em Kant, o espaço, enquanto depósito de formas, cria os objectos materiais e em Heidegger não cria mas separa os objectos materiais que estariam como que num estado de caos ou promiscuidade. E Heidegger prossegue:
«Nem o espaço está no sujeito, nem o mundo está no espaço. O espaço está, mais precisamente, "no mundo" , enquanto o "ser no mundo", constitutivo do "ser aí" , abriu um espaço. O espaço não se encontra no sujeito, nem este contempla o mundo "como se" estivesse em um espaço, mas o "sujeito" ontologicamente bem compreendido, o "ser aí", é espacial.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 127, Fondo de Cultura Económica).
Ora este pensamento é incoerente: o ser-aí é o sujeito, é cada pessoa, e uma vez que a sua dimensão de ser no mundo abriu um espaço e o sujeito é espacial não tem sentido dizer que o espaço não está no sujeito: está, ao menos em parte, no sujeito. Por outro lado, o mundo não está no espaço mas o espaço está no mundo. É, ao menos à primeira vista, o absurdo elevado ao estatuto de "grande filosofia". O espaço aparece como a forma estruturadora, o sopro de ar emitido pelo sujeito que levanta do chão o balão vazio dobrado sobre si mesmo que é o mundo e faz aparecer os entes deste, como pseudópodes de um balão não esférico, diferenciados e distantes entre si. Eis um exemplo da retórica sofística de Heidegger:
«No fenómeno do espaço não pode encontrar-se nem a única determinação ontológica do ser dos entes intramundanos, nem sequer a primária. Ainda menos constitui o fenómeno do mundo. O espaço unicamente pode conceber-se retrocedendo para o mundo. »(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 129, Fondo de Cultura Económica).
O mundo é ontologicamente anterior ao espaço - é a tese de Heidegger. Imaginemos que casa, esfera, montanha são seres intramundanos primordiais. São, primitivamente, isentos de espaço, na visão heideggeriana. Mas como poderiam sê-lo, se não forem mónadas, isto é, pontos sem localização? As formas implicam espaço, não são anteriores a este. Logo, não poderia existir um mundo feito de objectos, sem espaço.
Outro exemplo da subversão da terminologia filosófica que Heidegger leva a cabo - legítima, até certo ponto - é o de interpretar o termo fenómeno como númeno ou estrutura existenciária, oculta e profunda, que os sentidos e o realismo natural não conseguem apreender :
«"Fenómeno" em sentido definiu-se formalmente assim: o que se mostra como ser e estrutura do ser.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 76, Fondo de Cultura Económica).
«A forma de estar diante do ser e das suas estruturas no modo de fenómeno tem de começar por ser arrancada aos objectos da fenomenologia. Portanto o ponto de partida da análise tal como o acesso ao fenómeno e a passagem através dos encobrimentos dominantes exigem ser assegurados sob um ponto de vista metódico. Na ideia de apreensão e explanação "intuitiva" e "original" dos fenómenos está implícito o contrário da ingenuidade de uma acidental "visão" "directa" e irreflexiva.» (Martin Heidegger, ibid, pag. 47; o destaque a bold é posto por mim).
A INTUIÇÃO E O PENSAMENTO SÃO DERIVADOS LONGÍNQUOS DO COMPREENDER?
Heidegger abusa das roupagens barrocas de uma retórica sofística, isto é, enganosa. Sustenta que o compreender é o existenciário -o alicerce oculto mais fundo - do "ser no mundo" e que consiste no "estado de aberto", isto é, de correlação entre o sujeito e outros entes:
«Posto que o compreender e a interpretação constituem a estrutura existenciária do "ser aí" , tem de conceber-se o sentido como a armação existenciário-formal do "estado de aberto" inerente ao compreender.» (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 170, Fondo de Cultura Económica; o bold é posto por mim).
«"Intuição" e "pensamento" são ambos derivados já longínquos do compreender. ». (ibid, pag 165)
Eis uma contradição flagrante: como pode o compreender, que implica sempre pensamento e intuição sensível-inteligível, estar isento destes que seriam «derivados longínquos» daquele? Heidegger não explica como pode o compreender não incluir pensamento nem intuição. É surrealismo puro: compreender... sem pensar nem intuir.
O COMPREENDER É UM "VER" E... ESTE FUNDA-SE NO COMPREENDER?
Em passagens de "O Ser e o Tempo" Heidegger identifica o compreender com o "ver":
«Em seu carácter de projecção, o compreender constitui existenciariamente aquilo que chamamos o "ver do "ser aí". (Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 164, Fondo de Cultura Económica; o bold é posto por mim).
Mas, em outras passagens, o "ver" aparece fundado no compreender, derivado de este:
«Mostrando como todo o "ver" se funda primariamente no compreender - e o "ver em torno" do "cuidar de" é o compreender no sentido do que se chama "compreender do que se trata" - despoja-se o puro intuir da sua primazia, que responde noeticamente à tradicional primazia do "diante dos olhos" (...) Também a "intuição eidética" da fenomenologia se funda no compreender existenciário. Sobre esta forma do ver só cabe decidir depois de ter obtido os conceitos explícitos de ser e estrutura do ser, que são as únicas coisas que podem chegar a ser fenómenos em sentido fenomenológico. »(Heidegger, ibid, pag. 165).
Uma coisa é "ser" algo, outra é "fundar-se em" esse algo. Um filho não é o seu pai: funda-se, geneticamente, no seu pai. Heidegger oscila: o "ver" ora é um compreender, ora não é mas funda-se neste.
O SENTIDO É POSTERIOR AO COMPREENDER?
Heidegger sustentou que o sentido é posterior ao compreender e sustentou o contrário disso:
«Quando os entes intramundanos são descobertos ao mesmo tempo que o ser do "ser aí", quer dizer, chegaram a ser compreendidos, dizemos que têm sentido. Mas o compreendido não é, tomadas as coisas com rigor, o sentido, mas os entes e o ser. Sentido é aquilo em que se apoia o "estado de compreensível" de algo. O articulável no abrir compreensor é o que chamamos sentido.»(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 169, Fondo de Cultura Económica; o bold é posto por mim).
Neste fragmento, Heidegger teoriza que os entes e o ser podem ser compreendidos mas isso não implica descobrir sentido ou haver neles sentido. Questão: compreender não será atribuir sentido? E na frase seguinte estabelece o paradoxo: o "estado de compreensível", isto é, um dos polos do acto de compreensão repousa no sentido. Este seria, pois, prévio à compreensão e não posterior a ela. São estas guinadas teóricas incoerentes, - entre um sentido ou nexo objectivo das coisas, anterior ao pensar, e um sentido subjectivo, interpretativo, distinção que Heidegger não faz - blindadas num discurso difícil, que passam despercebidas ao grande público e à canalha filosófica institucional (os licenciados, os mestres e os doutores que carecem de pensamento profundo mas não de vaidade..).
O PROJECTAR DO COMPREENDER GERA OS ENTES INTRAMUNDANOS?
A obscuridade heideggeriana na ontologia atravessa «O ser e o tempo». Heidegger tem derivas idealistas (redução do mundo ao sujeito) no meio da teoria fenomenológica da intercorporeidade (o eu e os entes externos são coetâneos e indissociáveis):
«No projectar do compreender está aberta a possibilidade dos entes. O carácter de possibilidade responde em todos os casos à forma de ser dos entes compreendidos. Os entes intramundanos são projectados sem excepção sobre o fundo do mundo, isto é, sobre um todo de significação a cujas relações de referência se fixou previamente o «curar de » («cuidar de») enquanto "ser no mundo". (Heidegger, ibid, pag. 169; o bold é colocado por mim)
Quem projecta os entes intramundanos? O ser-aí ? O ser ? Ou eles mesmos, os entes? Heidegger não esclarece.
A SUPOSTA PROVA DA EXISTÊNCIA DE UM MUNDO "FORA DE MIM" PELO TEMPO, ATRIBUÍDA A KANT
Heidegger interpreta erroneamente Kant ao sustentar que este faz do tempo, uma forma a priori da sensibilidade, uma dimensão subjectiva, a alavanca da prova da existência de um mundo real exterior:
«O tempo é quem dá o ponto de apoio para o salto demonstrativo ao "fora de mim".».»(Martin Heidegger, El Ser y el Tiempo, pag 225, Fondo de Cultura Económica; o bold é posto por mim).
Ora Kant nega isso:
«Não querendo considerar o espaço e o tempo formas objectivas de todas as coisas, resta apenas convertê-las em formas subjectivas do nosso modo de intuição, tanto externa como interna; modo que se denomina sensível, porque não é originário, quer dizer, não é um modo de intuição tal que por ele nos seja dada a própria existência do objecto da intuição (modo que se nos afigura só poder pertencer ao Ser supremo)..» (Kant, Crítica da Razão Pura, pag. 86, Fundação Calouste Gulbenkian; o bold é colocado por mim).
Em Kant, o tempo é apenas idealidade transcendental, fluxo mutável de aparências e fenómenos, sentido interno, sucessão, duração e simultaneidade. Ver o nascer e o põr do sol no tempo de doze horas, ver um rio a correr durante uma hora ou todos os dias não prova que sol, céu, rio e demais objectos materiais existam fora da nossa mente. Ao contrário do que Heidegger diz, em Kant o tempo não prova a existência de mundo exterior ao ser humano.
Heidegger foi um filósofo em que o talento elevado se misturou com charlatanismo retórico que não resiste a uma análise cuidada da sua teoria. Bertrand Russell e a filosofia analítica não foram capazes de fazer esta crítica a Heidegger porque viveram sempre no fascínio do paradoxo e careceram de alguma visualização intelectual ontológica.
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