O exame final nacional de filosofia do ensino secundário em Portugal, 11º ano de escolaridade, prova 714/ 1ª fase, realizado em 15 de Junho de 2015, enferma de erros teóricos. Eis alguns desses erros na versão 2 da Prova 714/1ª fase, nas questões de escolha múltipla em que só se dá como correcta uma das quatro opções.
GRUPO I
«2. Em qual das seguintes opções é referida, de forma inequívoca, uma acção:
(A) A Mariana foi picada por um mosquito.
(B) O Rui esqueceu-se de tirar o boné da cabeça.
(C) Um mosquito picou a Mariana.
(D) A professora mandou o Rui tirar o boné.»
Crítica minha: Os critérios de correção apontam que a resposta D é a única certa. Mas a resposta C está igualmente certa: picar uma pessoa é uma acção... de um animal, um mosquito. Há três tipos de acções: da natureza geofísica (exemplo: a erupção de um vulcão), dos animais inumanos (exemplo: o leão persegue e mata a gazela) do homem (exemplo: um condutor atropela involuntariamente uma pessoa). Se o autor do exame queria que só a resposta D fosse certa, a pergunta devia falar de acção humana e não somente de acção. Não é ridículo considerar acção o facto de um homem comer frango e não considerar acção o facto de um leão comer uma gazela? É assim o espírito minucioso e míope, sem visão global, dos analíticos...
«6. Segundo a UNICEF, devido à epidemia de ébola que, em 2014, atingiu o continente africano, 4 000 crianças perderam ambos os pais e 13 000 crianças perderam um dos pais. Portanto, a epidemia de ébola causou 17 000 orfãos em África.»
O argumento anterior é:
(A) um mau argumento de autoridade.
(B) um bom argumento de autoridade.
(C) uma indução a partir de um número insuficiente de casos.
(D) uma indução a partir de uma amostra representativa.»
Segundo os critérios de correção a resposta correcta é a opção B: é um bom argumento da autoridade já que a Unicef tem prestígio na matéria.
Crítica minha: nenhuma das respostas está correcta. Embora a Unicef invocada seja uma autoridade mundial no problema das crianças, e pareça que se trata de um bom argumento de autoridade, o essencial do argumento está na correção da operação matemática referente aos meninos e meninas que ficaram orfãos ou duplamente orfãos de África em 2014. Trata-se de uma indução completa, sem salto no vazio, isto é, de uma inferência que consiste em chegar ao resultado por enumeração, contando a totalidade dos casos singulares. Ou, se se quiser, trata-se de uma dedução - a operação matemática 4 000 + 13 000= 17 000 é uma dedução, não necessita de uma amostra empírica- fundada numa indução completa ou contagem exaustiva de todos os elementos de um conjunto. Se o autor da prova queria que a opção B fosse a resposta correta devia te-la formulado assim: «um argumento de autoridade e uma dedução fundada numa indução completa».
«7. Considere os textos seguintes:
1. A ciência está na base das tecnologias que mudaram as nossas vidas. Por conseguinte, para que o avanço tecnológico não abrande, os investimentos da ciência não devem ser reduzidos.
2. Após a Segunda Guerra Mundial, importava assegurar a recuperação económica dos países europeus envolvidos. Além disso, os líderes das principais nações europeias pretendiam impedir um novo conflito armado. Foi esta dupla ambição que esteve na origem da União Europeia.
(A) 1 e 2 são textos argumentativos.
(B) 1 e 2 não são textos argumentativos.
(C) 2 é um texto argumentativo; 1 não é um texto argumentativo.
(D) 1 é um texto argumentativo; 2 não é um texto argumentativo.»
A resposta considerada correcta nos critérios de correção é a (D).
Crítica minha: A resposta correcta é a A: ambos os textos, um e dois, são (parcialmente) argumentativos, se por argumentativo se entende uma afirmação ideológica, que exprime o ponto de vista de uma classe social, de um grupo cultural, político ou religioso, ou de um povo, não sendo absolutamente neutra ou isenta. Ao dizer «para que o avanço tecnológico não abrande, os investimentos da ciência não devem ser reduzidos» está-se a argumentar, no texto 1, a favor do investimento com dinheiro nos programas científicos e tecnológicos, e isto é ideologia do capitalismo, privado ou estatal, posição que não merece o acordo dos grupos ecologistas defensores do «crescimento zero», da paralisação do fabrico de automóveis, barcos, aviões, telemóveis, postes de energia eléctrica, etc. Ao dizer no texto dois que «Após a Segunda Guerra Mundial, importava assegurar a recuperação económica dos países europeus envolvidos. Além disso, os líderes das principais nações europeias pretendiam impedir um novo conflito armado» está-se a argumentar com as intenções supostamente pacifistas dos líderes europeus como base da criação do Mercado Comum Europeu, o que é discutível, isto é, argumentativo. Alguns dirão que as burguesias francesa e alemã tinham por objectivo não uma recuperação económica dos países comunitários mas um aumento da sua hegemonia no mundo e a realização do máximo lucro..
«8. Em qual das opções seguintes se apresenta um exemplo do conhecimento a priori?
(A) Sei que nenhum irmão é filho único.
(B) Sei qual é o meu nome.
(C) Sei que alguns pais não são casados.
(D) Sei que idade tenho.»
Os critérios de correção apontam como resposta «certa» a opção A
Crítica minha: nenhuma das respostas é correcta. O que é o conhecimento a priori? É aquele que se opera independentemente das sensações, das percepções de objectos do mundo empírico. Segundo Kant só os conceitos matemáticos e alguns da física pura são a priori: os conceito de números Dois, Três, Quatro, etc., são a priori e os juízos «Três mais Quatro é igual a Sete» ou «Dois Vezes Dois é igual a Quatro» são a priori, mas os conceitos de «Irmão» de «Filho Único», de «Pai», de «Idade» , de «Casado», de «Nome» e o juízo «Ter irmãos implica não ser filho único» são a posteriori, isto é, derivam da experiência sensorial, de pessoas e situações qiue vemos e ouvimos. Ora, em todas as quatro frases acima citadas há conceitos a posteriori.
Os critérios de correção apontam como resposta «certa» a opção A. Mas a frase «Sei que nenhum irmão é filho único» é tão a priori - se assim me posso exprimir; em rigor não é a priori - como a frase C «Sei que alguns pais não são casados». Ser irmão implica não ser filho único e ser pai, em muitos casos, implica não ser casado.
«9. Identifique o par de termos que permite completar a afirmação seguinte.
A dúvida cartesiana é_________; por isso, Descartes não é um filósofo____________
(A) metódica...racionalista
(B) metódica.....cético
(C) hiperbólica....empirista
(D) cética..... empirista.»
Os critérios de correção da prova apontam como única opção correcta a resposta B: A dúvida cartesiana é metódica por isso, Descartes não é um filósofo cético.
Crítica minha: há duas respostas certas, as opções B e C, e não apenas uma. A opção C diz o seguinte: «A dúvida cartesiana é hiperbólica por isso, Descartes não é um filósofo empirista». Isto está correto. O que é a dúvida hiperbólica? É aquela que se estende a tudo e duvida mesmo do próprio corpo físico do sujeito e do eu pensante. Formula-se assim: «Os sentidos , fonte da verdade segundo o emprismo, enganam-me e é possível que tudo o que vejo, toco e penso não exista, duvido da existência das árvores, das casas e cidades, da paisagem , da realidade dos animais, dos homens, dos céus e da terra, de Deus, das verdades matemáticas e outras e do meu próprio eu. Ora esta dúvida hiperbólica faz com que Descartes não seja um filósofo empirista já que estes dão crédito às percepções empíricas e tomam-nas como a base, ao contrário de Descartes.
A existência de tantos erros neste exame nacional é a prova da incompetência da universidade portuguesa na área da filosofia, porque a tutela da comissão que fabrica a prova nacional de filosofia é, tanto quanto se sabe, da universidade portuguesa. Fechem-se as faculdades de filosofia porque os doutoramentos e as cátedras - dignidades «clericais» que não existiam no tempo de Platão e Aristóteles - são centros de poder pessoal onde reinam incompetentes adeptos da filosofia analítica, do positivismo lógico ou da fenomenologia que distorcem, em regra, a verdade da qual julgam ser donos. Precisa-se de uma revolução estudantil-operária como a de Maio de 1968 em França, em que os estudantes destituem os catedráticos da burguesia, os papas da igreja laica que é a universidade das humanísticas (filosofia, história, sociologia, antropologia, etc.), carregados de ideologia contra a dialética, a ciência da astrologia histórica, as medicinas naturais, etc.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Richard Rorty proclamou ser necessário renunciar definitivamente «à ideia de correspondência entre as orações e os pensamentos e ver as orações como se estivessem ligadas entre si em vez de com o mundo» (R.Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton, Pág. 359).
Há aqui uma confusão de Rorty: a linguagem é o vestuário, a casa que transporta o pensamento, a pele do pensamento, por assim dizer. Excepto no caso circunstancial de ouvirmos ou lermos um discurso incompreensível numa língua estranha para nós, a linguagem é indissociável do pensamento, suscita, exprime sempre um ou múltiplos pensamentos. Portanto há sempre correspondência entre linguagem e pensamento, nos humanos: a linguagem associa-se sempre ao pensamento mas o inverso nem sempre acontece. Essa correspondência assume formas concretas muito diversas, expressas antes de mais nas línguas de cada povo: por exemplo, em francês, a frase «l ´homme est à la table» é uma expressão linguística equivalente à portuguesa «o homem está à mesa» e à inglesa «the man is at the table» mas nos três casos as palavras diferentes entre si (jogos de linguagem) designam pensamentos similares e uma mesma realidade objectiva exterior.
O que Rorty sugere - desfazer a correspondência da linguagem com o pensamento - é absurdo. É possível desfazer a correspondência entre uma dada linguagem e um dado pensamento e o correspondente objecto físico - ou seja, é possível mudar de jogo de linguagem, como no caso da palavra «sujeito» que na filosofia medieval designava,por exemplo, a árvore, a catedral, isto é o objecto exterior a nós e, posteriormente, passou a designar o eu, a entidade interior a mim ou a cada humano - , mas não é possível abolir a correspondência entre a linguagem em geral e o pensamento em geral. A natureza da linguagem humana é ser pensamento e revestimento do pensamento.
Ao contrário do que sustentam Rorty e os seguidores da «hermenêutica solidária» que entendem por representacionalismo unicamente a descrição pela linguagem de um mundo exterior objectivo, toda a linguagem é representacionalista - ou de um mundo exterior, biofísico ou social, ou de um mundo interior, psíquico e simbólico, ou de um mundo misto, interior-exterior. Linguagem é representação gráfica, verbal, táctil, mental de um objecto, situação ou qualidade, real ou irreal.
O coerentismo - teoria segundo a qual a verdade é não dogmática, absolutamente segura, mas plausível, definindo-se em função da coerência entre si das diversas teses sobre o incerto ou problemático mundo exterior ou interior - de que Rorty participa, desliga a verdade da correspondência com o mundo exterior mas mantém um mundo interior de conceitos e teses, fixas ou mutáveis, onde há altos e baixos relevos da verdade em graus de plausibilidade, isto é, onde a noção de correspondência palavra-ideia-objecto se mantém fora do campo físico real. .Portanto, no coerentismo mantem-se a relação de correspondência entre orações (proposições) e pensamentos que, neste caso, se reportam a objectos ideais.
Em Rorty, há o mesmo erro que em Popper: nivelar todas as teorias num pirronismo conjectural o que é correcto apenas como uma precaução, como um método de abordagem livre, a priori, mas não pode ser a posição definitiva. Esta terá de ser o probabilismo - a posição céptica já enunciada na antiguidade grega por Carnéades e que Popper adopta embora o negue formalmente - ou o dogmatismo. Posicionalmente, ou seja no que respeita à posição definitiva, há teorias integralmente verdadeiras, outras parcialmente verdadeiras, em graus diversos, e outras integralmente falsas.
Metodologicamente - método como caminho para a verdade - a posição de Rorty parece correcta: ela é a ironia de Sócrates, mas não a maiêutica. Não dá à luz nada: é um cepticismo, um ironismo.
Rorty escreveu:
«Definirei como ironista todo aquele que cumpra três condições: (1) tem dúvidas radicais e contínuas sobre o vocabulário final que usa porque ficou impressionado com outros vocabulários, vocabulários tidos como finais pela gente ou pelos livros com que se deparou; (2) dá-se conta de que os argumentos expressos no seu actual vocabulário não podem nem reforçar nem dissolver aquelas dúvidas: (3) ao filosofar sobre a sua situação, não crê que o seu vocabulário esteja mais perto da realidade do que outros, nem que esteja em contacto com algo que não seja ela mesma. ( )»
«O ironista, pelo contrário, é um nominalista e um historicista. Pensa que nada tem uma natureza intrínseca, uma essência real e crê, por isso, que a aparição de um termo como justo ou científico ou racional no vocabulário final do presente não é razão para pensar que a investigação socrática sobre a essência da justiça ou sobre a essência da racionalidade levará muito mais além dos jogos de linguagem do próprio tempo. O ironista gasta o seu tempo a preocupar-se com a possibilidade de haver sido iniciado na tribo equivocada e de que lhe tivessem ensinado a jogar o jogo equivocado. (...) Sem embargo, não pode fornecer critério nenhum sobre o que consiste em estar equivocado.» (Richard Rorty, Contingency, Irony and Solildarity, II, 4, Cambridge; a letra negrita é posta por mim).
O erro de Rorty, na sua apologia do ironista, é de dupla face: por um lado, consiste em proclamar a impossibilidade de fornecer um critério de verdade sobre as teorias e o mundo, isto é, a impossibilidade de abandonar o cepticismo pirrónico; por outro lado, reside no facto de proclamar a inconvertibilidade mútua entre os vários vocabulários filosóficos. Isso não é verdade: o termo idealismo em Kant não corresponde ao termo idealismo em Hegel mas é possível explicar cada um deles e convertê-lo num determinado termo do outro vocabulário. Para Kant, por exemplo, a doutrina do «idealismo» de Hegel seria classificada como um «realismo transcendental» de carácter metafísico. Os jogos de linguagem representam apenas o relativismo da linguagem, da relação desta com as essências e coisas que designa, mas não traduzem o "relativismo" dessas essências e coisas.
Estas têm uma consistência estável, por assim dizer absoluta, apesar de poderem ser relativizadas, conexionadas de diferentes modos com diferentes coisas ou circunstâncias. Exemplo: embora o peso de um corpo, definido como a força de atracção gravítica que sofre em relação à Terra, varie com a distância do corpo ao centro da Terra, podendo ser nulo quando o corpo se encontra em órbita no espaço (relativismo do peso) a essência "peso" é absoluta, isto é, a definição do que é peso é inalterável (absolutismo ou não relativismo de peso). Em suma: em meu entender, é aceitável ser ironista provisoriamente, numa atitude propedêutica inicial, mas há que passar ao probabilismo ou ao dogmatismo ao entrar em cada jogo de linguagem porque se descobre uma arquitectura coerente nele.
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