O manual da ASA «Reflexões, Filosofia 10º ano» de Isabel Bernardo e Catarina Vale, tendo como consultor científico Alexandre (Franco de) Sá, contém vários erros teóricos.
DETERMINISMO NÃO É HAVER CAUSA ANTERIOR A UM FACTO
Não se encontra um único manual de filosofia para o 10º ou 11º anos de escolaridade que saiba definir correctamente determinismo. Este manual não é excepção:
«A conceção segundo a qual todos os acontecimentos resultam de causas que os antecedem chama-se determinismo.» (Isabel Bernardo e Catarina Vale,«Reflexões, Filosofia 10º ano», pagina 71, ASA).
Ora o determinismo não é isto. Diariamente, a cada passo, exerço o meu livre-arbítrio que é causa de acontecimentos mas isso não é determinismo. Exemplo: escolho sentar-me numa esplanada e pedir um chocolate quente em vez de um sumo natural e o acontecimento chocolate quente num copo irrompe depois na minha mesa, por mão do empregado, mas não foi, globalmente falando, fruto do determinismo; depois acedo ao interior do bar e decido conversar um ou dois minutos com a funcionária do balcão, essa conversa (acontecimento) não resulta do determinismo mas sim do meu livre-arbítrio e do dela.
O determinismo é, nas mesmas circunstâncias, as mesmas causas produzirem sempre os mesmos efeitos mas este princípio, tão simples de entender, não é enunciado nem por Thomas Nagel, nem por Peter Singer, James Rachels ou Neil Warburton nem pela generalidade dos professores de filosofia, cujo pensamento é muito superficial.
Corrijamos, através do pensamento dialéctico, as autoras do manual e Alexandre Franco de Sá: a concepção segundo a qual todos os acontecimentos resultam de causas que os antecedem chama-se causalismo, e é género de duas espécies, o determinismo e o indeterminismo.
O MULTICULTURALISMO NÃO ASSENTA NECESSARIAMENTE NO RELATIVISMO CULTURAL?
Escrevem os autores:
«O multiculturalismo defende que, dentro de um mesmo país, as diferentes culturas têm o direito de coabitar, aceitando-se assim a possibilidade de existirem dentro de um mesmo espaço político padrões de cultura diferentes. Por exemplo, um país cuja religião dominante seja a cristã e no qual sejam aceites práticas religiosas distintas: muçulmanas, judaicas, hindus ou outras.»
«O multiculturalismo pode ter na sua base (embora não tenha necessariamente) o relativismo cultural.
«Trata-se de uma posição que defende a tese de que cada povo e cada cultura têm sistemas de valores e padrões de culturas diferentes, que não devem ser julgados como bons ou maus a partir de nenhuma outra cultura e de que não pode haver, portanto, qualquer hierarquização de culturas como mais ou menos aceitáveis ou preferíveis.»
(Isabel Bernardo e Catarina Vale,«Reflexões, Filosofia 10º ano», paginas 126-127, ASA).
A definição de multiculturalismo está, basicamente, correcta mas a de relativismo não. Desconhecendo, possívelmente, o princípio dialético «um divide-se em dois», os autores do manual ignoram que há dois tipos de relativismo, doutrina segundo a qual a verdade ética, política, religiosa, estética., etc, varia de sociedade a sociedade ou de classe a classe ou grupo a grupo social:
1) Relativismo igualitarista, nivelador. Há, no mundo ou em cada sociedade nacional, diversidade de culturas, valores, logo não é possível hierarquizá-las entre si ao compararmos os diferentes padrões.
2) Relativismo não igualitarista, diferenciador. Há, no mundo ou em cada sociedade nacional, diversidade de culturas, valores, mas é possível estabelecer uma hierarquia entre os diferentes padrões. Exemplo: o padrão laicista da Maçonaria, ao aceitar colocar em plano de igualdade os agnósticos, os ateus e os crentes, os defensores e os adversários do aborto voluntário, é superior ao padrão religioso dos católicos que proibe o aborto voluntário e este último padrão, católico, é superior ao dos fundamentalistas islâmicos que não permitem a construção de templos cristãos nos países em que reinam.
Os autores do manual apenas conhecem relativismo segundo a definição 1 e por isso, opõem-no a multiculturalismo mas a verdade é que todo o multiculturalismo é relativismo: nivelador ou diferenciador. Ao aceitar a coexistência de culturas diferentes num mesmo espaço social, o multiculturalismo relativiza a importância de cada uma das culturas, retira-lhes, em maior ou menor grau, o carácter absoluto e excludente.
UM JUÍZO ÉTICO IMPLICA UNIVERSALIDADE, COMO DIZ THOMAS NAGEL?
Após citarem Thomas Nagel na sua proposição de que «a base da moral é a crença de que o que é bom ou mau não apenas do seu ponto de vista, mas de um ponto de vista mais geral..» (Nagel, Que quer dizer tudo isto? Uma iniciação à filosofia) escrevem as autoras:
«O que Nagel quer dizer é que emitir um juízo ético, considerar uma acção boa ou má, implica passar dos interesses pessoais, e dos interesses dos que nos são mais chegados, para a consideração dos interesses de um ponto de vista universal, atribuindo-se a mesma importância aos interesses dos outros que se atribui aos nossos interesses.»
«Um juízo ético é, assim, a consideração sobre a correção ou incorreção de um acto, analisado de um ponto de vista universal.»
(Isabel Bernardo e Catarina Vale,«Reflexões, Filosofia 10º ano», paginas 145, ASA; o destaque em itálico é colocado por mim).
Há uma incorreção neste texto: o juízo ético não implica universalidade, mas sim comunidade (nacional, regional, local, de classe social ou casta). Os juízos éticos dos patrícios romanos esclavagistas eram juízos de classe, não tinham a pretensão da universalidade: «Chicoteio os meus escravos quando me apetecer, sou livre mas não concederei liberdade a nenhum deles».
O ethos implica sempre o outro, mas qual é a extensão desse outro? Pode ser a universalidade mas na maioria dos casos não é.
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
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