Aristóteles classificou a virtude de modo muito semelhante ao que Kant viria a fazer séculos depois: não como um sentimento espontâneo, nem um talento natural, mas como um hábito de acção. Escreveu:
«E posto que na alma há três géneros de coisas somente: afectos, faculdades e hábitos, a virtude há-de ser, necessariamente, algum destes três géneros de coisas. Chamo afectos a avareza, a ira, a sanha, o temor, o atrevimento, a inveja, o regozijo, o amor, o ódio, o desejo, os ciúmes, a compaixão, e geralmente tudo aquilo a que é anexa tristeza ou alegria. E faculdades, aquelas por cujas causas somos nomeados ser capazes destas coisas, como aquelas que nos tornam aptos para nos zangarmos, nos entristecermos ou nos doermos. (...) De maneira que nem as virtudes nem os vícios são afectos, porque, por razão dos afectos, não nos chamamos bons nem maus, como nos chamamos por causa das virtudes e vícios.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo V, pag 81 do volume I da edição espanhola de Folio)
«É, pois, a virtude hábito voluntário, que no que nos diz respeito consiste em uma mediania estabelecida pela razão e como a estabeleceria um homem dotado de prudência; e é a mediania de dois extremos maus, um por excesso e outro por defeito.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro II, Capítulo VI, pag 84 do volume I da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)
Aristóteles diz, pois, que a nossa bondade ou maldade não reside nos instintos - de que os afectos são expressão- nem nas predisposições genéticas orgânicas - as faculdades: a inteligência, a acuidade visual, auditiva, táctil, etc - mas nos hábitos bons (virtudes) ou maus (vícios) que desenvolvemos. Assim ser bom ou mau tem a marca da vontade, do livre arbítrio. Note-se que o termo "virtude" (areté em grego) é, em Aristóteles, um exercício da vontade. Em outros pensadores, a virtude poderá designar o talento inato - a beleza física, a capacidade atlética, a inteligência - mas em Aristóteles não. A diferença entre a "virtude" em Aristóteles e a boa vontade, em Kant, está em que a primeira é uma mediania especificada, - divide-se em espécies: sabedoria, prudência, liberalidade, temperança, etc - substancial, entre o «eu» e os outros «eus» ou entre o «eu» e o seu modelo ideal e a segunda não, é uma mediania formal, simétrica, entre o «eu» e a totalidade dos «eu» dos outros.
Se a ética de Aristóteles se designa por «ética da virtudes» não há razão para não designar a ética de Kant por «ética da virtude da equidade». A equidade é a igualdade de tratamento e benefício para com todos os seres humanos, qualidade que Kant considera ser o pilar da lei moral autêntica de cada um. Ambas as éticas são deontológicas (deón significa dever, corrente, em grego), isto é, assentam no dever, fornecem descrições das situações morais e dos meios ao alcance de cada homem (descritivismo) e prescrevem normas de conduta (prescritivismo). Não pode haver dúvida de que a ética de Aristóteles é deontológica. Na "Ética a Nicómaco" Aristóteles prescreve o dever de obedecer às leis, em particular de ser temperado, não cometer adultério, não fugir, não ofender ninguém, não levantar armas contra outrém:
«Porque também manda a lei que se façam as obras próprias do homem valoroso, como não desamparar a ordem, não fugir, não lançar as armas. E também as que são do varão temperado, como não cometer adultério, não fazer afronta a ninguém: do mesmo modo a do varão manso, como não ferir ninguém, não injuriar, e da mesma maneira nos demais géneros de virtudes e vícios, mandando umas coisas e proibindo outras, o que a lei que está bem feita faz bem, e faz mal a que está forjada de forma repentina e sem conselho amadurecido.» (Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro V, Capítulo I, pags 154-155 do 1º tomo da da edição espanhola de Folio; a letra a negrito é por mim colocada.)
Classificar a ética de Aristóteles de "deontológica" não é consensual. Esta encontra-se a meio caminho entre a ética estóica, racionalista ascética, deontológica por excelência (porque razão se considera Kant como o modelo da deontologia e não os estóicos?) e a ética hedonista, sensualista de Aristipo de Cirene.
Aristóteles definiu a boa vontade como um "amor sem desejo", que abarca até os desconhecidos:´
«A boa vontade parece-se algo à amizade, mas não o é, porque a boa vontade pode-se ter para com os que não são conhecidos, e pode ser sem que se entenda, mas a amizade não. Mas isto já foi dito. Mas tampouco é aficção, porque a boa vontade não tem porfia nem desejo, mas na aficção ambas estas coisas se acham. Do mesmo modo a aficção vai acompanhada de conversação, mas a boa vontade emerge repentinamente, como acontece entre os que se combatem, aos quais outros se aficcionam e com eles desejam a vitória, mas nem por isso se põem a ajudá-los. Mas, como dissemos, a boa vontade ocorre repentinamente, e os que a têm, amam assim simplesmente, sem afecto. Mas parece que esta boa vontade é princípio da amizade, da mesma maneira que dos amores o é o deleite da vista, porque ninguém ama sem que primeiro se agrade com a vista, e ainda que um se agrade pela visão, nem por isso ama, a não ser quando chega a sentir a ausência, e deseja gozar a presença. (...) E assim, falando como que por metáfora, poderia alguém dizer que a boa vontade é uma amizade remissiva ou tíbia, a qual, se persevera e vem a confirmar-se como conversação, converte-se em amizade, mas não das que se fundam em utilidade e deleite, porque nestes não há boa vontade. »(Aristóteles, Ética a Nicómaco, Livro IX, Capítulo V, pag 190-191 do volume 2 da edição espanhola de Folio; o negrito é colocado por mim)
A boa vontade em Aristóteles é pois uma atitude benévola, não interesseira, para com qualquer pessoa . Em sintonia com esta noção, Kant escreveu:
«Como a própria lei moral há-de ser o móbil numa vontade moralmente boa, o interesse moral supõe o interesse de uma razão prática simples que seja puro e independente dos sentidos.» (Immanuel Kant, Crítica de la Razón práctica, pag 172, Alianza Editorial; o negrito é de minha autoria).
Poderá objectar-se que a boa vontade ou vontade autónoma, isto é, a vontade de fazer o bem ou de fazer justiça sem olhar a quem, na doutrina de Kant, conduz, em certas condições, a atitudes de punição física ou moral de um certo número de indivíduos, incluindo a prisão e a execução. É o caso por exemplo das execuções de colaboracionistas com o nazismo, ocorridas em França em 1944-1946, sob a égide do governo provisório de libertação nacional presidido por De Gaulle: havia que condenar a longas penas de prisão ou fuzilar os que trairam a pátria francesa, colaborando vergonhosamente com a ocupação militar hitleriana. Mas, mesmo nesse gesto punitivo, há benevolência para com os cidadãos em geral, sem discriminações. A punição dos traidores e criminosos publicamente reconhecidos produz bem-estar e tranquilidade nos restantes cidadãos.
www.filosofar.blogs.sapo.pt
f.limpo.queiroz@sapo.pt
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Livraria online de Filosofia e Astrologia Histórica