Eis um teste de filosofia do meio do primeiro período lectivo de 2012-2013 numa escola do ensino secundário, em Portugal, onde o fogo sagrado da grande filosofia, do pensamento dialético, se mantém. Contra os ventos "analíticos" e "lógico/ ametafísicos" da pequena ou mesmo da anti filosofia que sopram fortes em muitas escolas e em muitos sistemas de ensino por esse mundo fora.
Escola Secundária Diogo de Gouveia com 3º Ciclo, Beja
TESTE DE FILOSOFIA, 10º ANO TURMA C
31 de Outubro de 2012. Professor: Francisco Queiroz
I
“Filósofos como Tales de Mileto e Hipócrates de Cos compreendiam que a multiplicidade das aparências empíricas no cosmos ocultava uma só essência que se apreende através do conceito. Embora ambas sejam essencialismos, as filosofias de Aristóteles e Platão diferem entre si na questão da transcendência e imanência dos valores e das essências.”
1) Explique concretamente este texto.
II
2) Relacione, justificando:
A) Reminiscência e participação, em Platão.
B) Teoria das quatro causas em Aristóteles e acção humana de construir uma casa.
C) Hierarquia e polaridade dos valores na ética e na estética, por um lado, e lei do uno, por outro.
III
3) Disserte sobre o seguinte tema:
“ O tó tí e o tó on, a lei da luta de contrários e a lei das causas internas e causas externas na escola ou na minha vida fora da escola.”
.
CORREÇÃO DO TESTE, DE COTAÇÃO MÁXIMA DE 20 VALORES
1) Tales de Mileto postulou ser a água o princípio de tudo, (arquê), a essência primordial, eterna, incriada. Era o caos inicial. Moldada, depois por uma inteligência chamada Deus, a água deu origem ao cosmos, universo hierarquizado: as múltiplas aparências empíricas, isto é, as montanhas, os céus, as nuvens, as rochas os animais, são dotados de uma mesma essência oculta, que é água - solidificada, condensada, em estado puro ou sublimada. Isto apreende-se através do intelecto, do conceito ou ideia formada por abstração de percepções empíricas similares. Hipócrates de Cos, o pai da medicina, teorizou a unicidade de todas as (múltiplas) doenças locais: as doenças de fígado, rins, coração, articulações, etc, são apenas máscaras, manifestações locais de uma mesma doença geral, a intoxicação do sangue e da linfa (formulação dos neo-hipocráticos) que circulam por todo o corpo e depositam as partículas tóxicas (dos alimentos, medicamentos, etc) neste ou naquele orgão ou músculo (ESTA PARTE DA RESPOSTA VALE 4 VALORES). Embora as filosofias de Platão e Aristóteles sejam ambas essencialismos, isto é, doutrinas que dizem que as essências ou formas estáveis dos entes são anteriores a estes, elas diferem entre si: para Platão os valores (qualidades subjectivas ou intersubjectivas, hierarquizáveis e polarizáveis, como Bem, Belo, Justo) e outras essências (Triângulo, Número Dois, etc) são transcendentes à matéria, estão acima desta, num mundo inteligível; para Aristóteles, os valores de Bem, Belo e outras essências (Árvore, Cavalo, Mulher, etc) são imanentes, existem dentro do mundo da matéria e nas pessoas que nele vivem (NOTA: ESTA PARTE DA RESPOSTA VALE 4 VALORES).
2) A) Reminiscência é a recordação vaga dos arquétipos de Bem, Belo, Justo, Igual, Número, Círculo, etc, que a alma humana guarda depois de se encerrar num corpo físico, uma vez descida do mundo Inteligível, que é metafísico, espiritual, invisível e impalpável. Participação é a imitação dos arquétipos ou formas puras operada no mundo do Outro, ou mundo sensível da matéria: as árvores participam (imitam) no arquétipo de árvore que existe acima do céu visível, etc. A reminiscência é uma forma de participação mental porque, como «fotografia» dos arquétipos liga o homem físico do mundo terreno aos arquétipos do mundo superior ( NOTA: VALE DOIS VALORES).
2) B) Aristóteles definiu quatro causas de um ente: formal (exemplo: a forma da casa), material (no mesmo exemplo: tijolos, cimento, ferro, areia), eficiente (exemplo: quem fez a casa , isto é, os pedreiros e o arquitecto) e final (exemplo: para que serve a casa, isto é, para habitação e trabalho abrigado do homem).No caso da acção humana de construir uma casa a resposta, algo complexa, pode ser a seguinte: causa formal - a forma dos braços e da mão humana no movimento de assentar os tijolos, a placa da casa; causa material - os músculos do braço e da mão, a colher e a talocha, o cimento, na medida em que são a "matéria-prima" da acção; causa eficiente - o homem, porque é o agente da acção; causa final, a casa como lugar para o homem habitar e trabalhar abrigado. (NOTA: VALE TRÊS VALORES; OUTRAS RESPOSTAS CERTAS DE TEOR ALGO DISTINTO DESTA SÃO POSSÍVEIS).
2) C) Hierarquia de valores é a ordem, do superior ao inferior, dos valores. Polaridade dos valores é a contrariedade de valores, como polos opostos, em cada tema ou área. Na ética, o Bem (no comportamento humano) é o valor mais alto e o Mal o valor mais baixo (hierarquia) sendo entre si polos antagónicos (polaridade). Na estética, o Belo e o Sublime são os valores mais altos e o Feio e o Horrível os valores mais baixos (hierarquia) existindo antagonismos ente sublime e horrível e entre belo e feio (polaridade). A lei do uno diz que tudo se relaciona no universo e no pensamento, por isso ética e estética formam um uno, o reino dos valores humanos. (NOTA: VALE TRÊS VALORES; OUTRAS RESPOSTAS CERTAS DE TEOR ALGO DISTINTO DESTA SÃO POSSÍVEIS).
3) Tó ón significa o ente, algo indeterminado que existe. Tó tí significa o quê é, a característica ou forma de algo, a essência (neste último caso é tó tí en einai, o quê é o se r). O tó on da escola é a sua existência. O tó tí é a arquitectura dos edifícios e os espaços exteriores, a forma das salas, das carteiras, do pátio dos alunos, da cantina, etc. A lei da luta de contrários ensina que em cada coisa ou ente há uma luta de contrários que constitui a essência e o motor de de desenvolvimento dessa coisa ou ente. A escola é, na sua essência, uma luta de contrários: entre o conhecimento (de que professores e alunos são portadores) e a ignorância; entre os tempos de aula e os tempos de recreio, etc. A lei das causas internas e externas postula que há dois tipos de causas de um fenómeno ou ente, as internas, que são determinantes, e as externas, secundárias, sendo, embora, ambas indispensáveis. Exemplos: nas aulas as consciências dos alunos (causas internas) são mais importantes que o discurso explanativo do professsor (causa externa), se o aluno quiser estar desatento invalida a eficácia da transmissão do conhecimento pelo professor; um aluno bem alimentado com proteínas, frutas e verduras em boa quantidade purifica o sangue (causa interna) e assim os vírus e toxinas vindos do exterior (causa externa) não podem instalar a doença no corpo, excepção feita às vacinas, caldos muito agressivos que violam a parede da pele e dos vasos sanguíneos ao ser inoculadas artificialmente, o que coloca novas causas internas artificiais e temporárias. (NOTA: VALE QUATRO VALORES; OUTRAS RESPOSTAS CERTAS, DE TEOR ALGO DISTINTO DESTA, SÃO POSSÍVEIS).
© (Direitos de autor para Francisco Limpo de Faria Queiroz)
Kant distinguiu o belo do sublime. Parece-me correcto definir o sublime como algo grandioso e perfeito do ponto de vista metafísico e intelectual e o belo como algo pequeno, limitado, perfeito do ponto de vista físico-visual. Convém dizer que o Inferno da mitologia cristã é o sublime terrível: é perfeito enquanto lugar do mal ou seja maximamente imperfeito do ponto de vista do bem. Há portanto uma perfeição em dois sentidos: a perfeição do paraíso e do mundo dos arquétipos de Platão, perfeição do bem, em sentido positivo, e a perfeição dos infernos de Platão ou do catolicismo, com rios de lava levando as almas dos condenados e monstruosos diabos, perfeição do mal, em sentido negativo. Aparentemente pelo menos, o sublime é Yang, expansão, transcendência e o belo é Yin, contração, imanência.
Dentro do sublime, Kant distinguiu três modalidades: o sublime terrível que mistura a admiração da grandiosidade com o temor ou o horror (exemplo:um precipício imenso, a cratera de um vulcão a vomitar lava), o sublime nobre em que a admiração da grandiosidade se mistura com a nobreza assente na simplicidade, (exemplo: uma catedral gótica, sem decorações interiores) o sublime magnífico (exemplo: um palácio residencial recoberto a oiro e pedras preciosas). Escreveu:
«Os carvalhos altos e a sombra solitária no bosque sagrado são sublimes, as plantações de flores, sebes baixas, e árvores recortadas, formando figuras, são belos. A noite é sublime, o dia é belo. Os temperamentos que possuem o sentimento do sublime, quando a tremulante luz das estrelas rasga a parda sombra da noite e a lua solitária está no horizonte, são atraídos pouco a pouco pela calma silenciosa de uma noite de verão, a sensações supremas de amizade, de desprezo do mundo, de eternidade. O resplendor do dia infunde afãs de actividade e um sentimento de regozijo. O sublime comove, o belo encanta. O semblante do homem que se encontra em pleno sentimento do sublime é sério, às vezes rígido e ensombrado. Pelo contrário, a viva sensação do belo declara-se no olhar pela sua esplendorosa serenidade, por sorrisos rasgados e por um claro regozijo. » (Inmannuel Kant, Observaciones acerca del sentimiento de lo bello y de lo sublime, pag.32)
«O sublime há-de ser sempre grande, o belo pode também ser pequeno. O sublime há-de ser simples, o belo há-de ser limpo e adornado. Uma grande altura é sublime do mesmo modo que uma grande profundidade, só que esta vai acompanhada da sensação de estremecimento e aquela de admiração. Pelo que esta sensação pode ser sublime-terrível, e aquela nobre. A basílica de São Pedro em Roma é magnífica. Porque no seu desenho, que é grandioso e simples, está a beleza de tal maneira expandida, como o oiro, os mosaicos, etc, que, sem embargo, a sensação de sublime actua maximamente nele, dando um resultado magnífico. Um arsenal há-de ser nobre e simples, um palácio residencial magnífico, e um palácio de recreio belo e decorado.»
«Um longo período é sublime. Se se trata de um tempo passado é nobre; se se prevê para um futuro incalculável, tem então em si algo de terrível. Um edifício da mais remota antiguidade é venerável.» (Kant, ibid, pag 34-35; o destaque a negrito é posto por mim)
A AMIZADE, O MORENO E A VELHICE SÃO SUBLIMES, O AMOR SEXUAL, O LOIRO E A JUVENTUDE SÃO BELOS
«O entendimento é sublime, o engenho é belo. A audácia é sublime e grandiosa, a astúcia é pequena mas bela. Cromwell dizia que a precaução é virtude de alcaides. A veracidade e a sinceridade são simples e nobres, a piada e a lisonja complacente são delicadas e belas. (..)
«A amizade guarda em si principalmente o carácter do sublime, mas o amor sexual é do belo. (..) A tragédia distingue-se, em meu entender, da comédia principalmente porque na primeira desperta o sentimento do sublime, e na segunda o do belo.» (pag Kant, ibid, pag 37-38; o destaque a negrito é posto por mim).
«Com uma grande estatura ganha-se prestígio e respeito, com uma pequena gana-se melhor a confiança. Até a cor morena e os olhos negros estão mais vinculados ao sublime, e os olhos azuis e a cor loira ao belo. Uma idade um tanto avançada avém-se antes com as características do sublime, mas a juventude com as do belo. (...)» (Kant, ibid, pag 39; o destaque a negrito é posto por mim).
Se os velhos são, potencialmente, sublimes, devido à sua sabedoria, à profundidade da sua reflexão alicerçada em experiência de vida, há que ter presentes que neles o belo esbate-se, degrada-se, e uma certa fealdade física os caracteriza. Kant não parece ter sublinhado explicitamente esta relação inversamente proporcional entre a sublimidade e a beleza física, ou seja, a proporcionalidade directa entre a sublimidade e a fealdade, no caso dos seres humanos.
A FILOSOFIA, RACIONAL E METAFÍSICA, E O HOMEM SÃO SUBLIMES, O SENTIMENTALISMO E A MULHER SÃO BELOS
No caso da filosofia, considera sublime o seu pendor metafísico, noológico, e belo mas menor, o seu pendor lógico-sofístico, de que hoje no século XXI a filosofia analítica é o paradigma.
«A representação matemática da magnitude imensa do universo, as considerações da metafísica acerca da eternidade, da providência, da imortalidade da alma contêm certa sublimidade e dignidade. Ao contrário, a filosofia também se desfigura, em subtilezas muito vazias, e a aparência de solidez não impede que as quatro figuras de silogismo merecessem ser referidas como deformações grotescas de escola.»
«Entre as qualidades morais só é sublime a virtude verdadeira. (...) Certo sentimentalismo, que com facilidade se junta a um sentimento de compaixão, é belo e amável, pois manifesta uma benévola participação na sorte de outros homens, à qual levam igualmente os princípios da virtude. Só que esta paixão de bem natural é, sem embargo, débil e sempre cega.» (Inmanuel Kant, Observaciones acerca del sentimiento de lo bello y de lo sublime, pag. 43-44, Alianza Editorial; .o destaque a negrito é posto por mim)
A mulher é associada ao belo - basta pensar na maquilhagem, nos brincos, nos colares e pulseiras, nos cuidados do cabelo, na exuberância da roupa feminina - e o homem ao sublime - pense-se no homem de barba por fazer, desalinhado na roupa, mas com o pensamento em altos ideias abstractos.
«A mulher tem um sentimento inato mais intenso para tudo o que é belo, lindo e adornado. Já na sua infância, as meninas desfrutam ao ataviar-se e comprazem-se a embelezar-se. São muito limpas e muito sensíveis a respeito de tudo o que dá asco. (...) O belo sexo tem sem dúvida tanta inteligência quanto o masculino, só que é uma inteligência bela; a nossa deve ser uma inteligência profunda, como expressão para significar o mesmo que sublime .(Inmanuel Kant, Observaciones acerca del sentimiento de lo bello y de lo sublime, pag. 68-69, Alianza Editorial; o destaque a negrito é posto por mim) ».
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A estética é mais objetiva do que se pensa habitualmente. A catedral de Sevilha é um edifício muito belo. Gente sem religião e de todas as religiões partilha esta mesma opinião. Marilyn Monroe aos 20 anos de idade era bela e sedutora, muito acima do comum das mulheres - é uma opinião maioritária que prevalece. Há, portanto, um belo objetivo, provavelmente comum a todos os objetos belos, um belo estrutural, como o núcleo interior de uma esfera e depois há camadas de belo vibracional, menos estáveis, que constituem as camadas superficial e quase superficial da esfera, belo de que algumas pessoas se apercebem e outras não. Direi que o belo em si, nas coisas, é objetivo. Só é subjetivo, em certa medida, o modo como captamos a sua estrutura oscilante periférica. O belo é pelo menos tão objetivo quanto o átomo, se partimos do princípio que este existe.
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A tese de Schopenhauer sobre a beleza das coisas consiste em que esta só existe enquanto o ser humano possui uma relação impessoal, distanciada, desprendida, com essas mesmas coisas. Neste ponto, coincide com a estética de Kant: o desinteresse é a mola propulsora da apreensão do belo. Escreveu o filósofo alemão:
«Ao jovem, cujo intelecto intuitivo actua ainda com uma fresca energia, a natureza apresenta-se-lhe, amiúde, com uma completa objectividade e, por isso, com perfeita beleza. Mas o prazer dessa visão é perturbado às vezes pela entristecedora reflexão de que os objectos que tão belos se lhe apresentam não têm uma relação pessoal com ele em virtude da qual pudesse interessar-se ou alegrar-se com eles: com efeito, ele espera que a sua vida tenha a forma de uma interessante novela.»
(...)Tudo é belo enquanto não interferir connosco (Não falamos aqui da paixão amorosa mas do prazer estético). A vida nunca é bela, só o são as imagens da vida no espelho da arte ou da poesia que a transfigura; sobretudo na juventude, quando ainda não a conhecemos. » (Arthur Schopenhauer, El mundo como voluntad y representación, Complementos, pag 420-421, Editorial Trotta, Madrid)
Isto exprime e reforça a teoria do distanciamento físico e, sobretudo, económico-laboral-comercial como base para a fruição da beleza: ao longe e não utilitário é belo, ao perto, ao pormenor e utilitário é feio, quase poderia dizer-se.
As relações de dominação, de extracção de lucro sobre certas coisas, de vizinhança permanente, diminuem ou fazem desaparecer a intuição do belo nessas coisas: operários que fabricam alheiras ou hamburgers não acharão, provavelmente, belos estes alimentos, ao contrário dos clientes de restaurantes que solicitam pratos com esses alimentos.
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